- 29.08
- 2022
- 16:34
- Abraji
Insulto de Bolsonaro à Vera Magalhães reitera prática de ataques contra mulheres jornalistas
Bolsonaro no debate presencial da Band - Foto: Reprodução/Band
Alvos de ataques misóginos, repórteres e colunistas do Brasil enfrentam um cenário de hostilidade para o exercício da profissão. Levantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) mostra que 55 agressões com viés de gênero já foram registradas em 2022.
Quase metade dos casos (47%) se refere a ataques à reputação e à moral, usando a aparência, a sexualidade ou traços sexistas de personalidade para ofender as mulheres jornalistas. Em 43% dos alertas monitorados pela Abraji, a vítima cobre temas políticos.
O exemplo mais recente foi o ataque proferido no domingo (28.ago.2022) pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), durante o debate promovido por um pool de veículos liderado pela Band, TV Cultura, Folha de S.Paulo e UOL.
No segundo bloco do debate, Vera Magalhães, colunista de O Globo e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura, questionou Ciro Gomes (PDT) se as desinformações produzidas pelo próprio presidente contra a covid-19 podem ter tido impacto na queda vacinal no país. Instado a comentar as declarações de Ciro, Bolsonaro preferiu insultar a jornalista:
"Vera, eu acho que eu não podia esperar outra coisa de você. Acho que você dorme pensando em mim. Você tem alguma paixão em mim. Não pode tomar partido num debate como esse. Fazer acusações mentirosas a meu respeito. Você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro”.
Simone Tebet (MDB) foi a primeira a condenar, com veemência, a atitude do presidente da República, seguida de alguns candidatos. À Folha, Bolsonaro não viu motivos para se desculpar: "Ela [Vera] mentiu ao meu respeito. Fez uma acusação mentirosa. Só porque é mulher eu não posso falar que ela está mentindo? Eu tô agredindo as mulheres? Não tem cabimento isso".
Vera Magalhães afirmou ao UOL que a reação foi desproporcional e ofensiva: “Minha pergunta era sobre vacina, ele não falou nada sobre vacina, não respondeu. Não falou o motivo de ter demorado a comprar as vacinas contra a covid-19 nem a razão [pela qual] propagou fake news e desinformação a respeito da eficácia e segurança das vacinas. Ele preferiu me atacar pessoalmente, um ataque gratuito e despropositado, totalmente descontrolado”.
Em comentário publicado no Globo, Miriam Leitão, que já foi atacada pelo presidente e pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), lembra como a reação do presidente “foi totalmente sem sentido porque ela havia feito uma pergunta ao Ciro sobre a queda da cobertura vacinal no Brasil. E o fez com dados e precisão técnica”.
A Abraji se manifestou nas redes sociais ainda durante o debate e se solidarizou com a jornalista. “Infelizmente o caso da Vera não é isolado. O presidente se exalta e se irrita com o que desagrada. A intolerância à presença das mulheres nos espaços públicos se tornou um elemento fundamental para entender a natureza desses ataques”, assinala a presidente da Abraji, Katia Brembatti.
Bolsonaro tem se notabilizado por frases carregadas de preconceito contra mulheres da imprensa. O caso mais simbólico aconteceu em 2020, quando usou o termo "furo" para falar do corpo de Patricia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. O jargão é jornalístico, mas foi dito com malícia pelo presidente. Depois dessa declaração, Campos Mello foi atacada nas redes sociais por eleitores e aliados de Jair Bolsonaro, tendo seu nome associado a palavrões e memes com imagens de cunho sexual. O caso foi levado à Justiça, que deu ganho de causa à repórter, em decisão de segunda instância.
Ataques de domingo à Vera Magalhães e às senadoras candidatas também repercutiram entre veículos do exterior como CNN e Associated Press.
Ataques de Bolsonaro gera mais ataques
Seguidores e apoiadores do presidente continuaram os ataques contra Vera Magalhães após o debate do domingo. A deputada federal Bia Kicis, vice-líder do PL na Câmara dos Deputados, usou o episódio para comentar no Twitter que a jornalista “não era isenta”. Outros perfis tentaram descredenciar a colunista e gerar novas ofensas:
Foto: Reprodução/Twitter
Foto: Reprodução/Twitter
Foto: Reprodução/Twitter
Foto: Reprodução/Twitter
Foto: Reprodução/Twitter
Alertas da Abraji
Dos 453 alertas registrados contra jornalistas em 2021 pela Abraji, 45 (9,9%) foram classificados como ataques de gênero, isto é, apresentaram elementos ligados à sexualidade, orientação sexual ou identidade de gênero como recurso para agredir as vítimas, fossem homens ou mulheres, cis ou transgêneras, pessoas não-binárias ou meios de comunicação focados em pautas de gênero.
Entre os alvos desses ataques, em 35 (77,7%) casos foram mulheres, em 8 (17,7%) foram homens, vítimas de ataques homofóbicos, e em dois (4,4%) foram veículos midiáticos atacados por suas coberturas de perspectiva feminista.
A maior parte das vítimas mulheres teve sua moral e reputação postas em xeque durante as agressões, o que significa que foram ofendidas e humilhadas por questões conectadas a seu gênero e sua sexualidade e, por esses elementos, desacreditadas enquanto profissionais. Algumas foram alvos de violência física e de outras formas de opressão e censura, como hackeamento e ataques de negação de serviço na internet.
Debora Diniz, uma das maiores especialistas de estudos de gênero no Brasil e que hoje é professora visitante da Universidade Brown, em Rhode Island, nos Estados Unidos, disse à Abraji que a reação de Bolsonaro no primeiro debate entre os candidatos e candidatas à presidência reflete uma cultura machista e de ódio às mulheres.
"Bolsonaro fez um espetáculo de misoginia. Como? Ao desrespeitar Vera desqualificando sua pergunta. Mas importa seguir como Bolsonaro expressou seu ódio às mulheres: sexualizando a narrativa, insinuando que a motivação do trabalho investigativo de Vera teria origens eróticas, como “dormir pensando em mim”. A intenção de Bolsonaro é humilhar pelo sexo, pelo que considera ser seu poder de controle, o do macho que é objeto de desejo das mulheres”.
Em 2021, a violência de gênero contra jornalistas passou a ser registrada pela Abraji. A metodologia considera casos de agressões, ofensas, ameaças, intimidações e outras formas de ataque que envolvem identidade de gênero, sexualidade, orientação sexual, aparência e estereótipos sexistas contra comunicadores como um todo, bem como casos de agressão contra mulheres jornalistas – cis ou trans – de forma geral.
O projeto foi desenvolvido pela Abraji, com financiamento da UNESCO e parceria com Comitê para Proteção de Jornalistas (CPJ), Instituto Patrícia Galvão, Instituto Mulheres Jornalistas, Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Gênero e Número e Repórteres Sem Fronteiras (RSF).
Para acessar os dados de 2021, clique aqui.
Outros estudam trazem perspectivas complementares aos ataques de gênero. Investigação de dados feita pela Revista AzMina e pelo InternetLab, junto ao Volt Data Lab e ao INCT.DD, com apoio do International Center for Journalists (ICFJ) mostrou que as mulheres jornalistas recebem mais que o dobro de ofensas em seus perfis no Twitter, se comparado aos colegas homens. Uma pesquisa mundial encomendada pela UNESCO mostra que, em 125 países, três em cada quatro jornalistas mulheres foram alvo de ataques on-line.