Em tempos de desinformação, redações colaborativas sustentáveis devem se tornar uma prioridade
  • 26.11
  • 2018
  • 14:29
  • Claire Wardle

Formação

Liberdade de expressão

Em tempos de desinformação, redações colaborativas sustentáveis devem se tornar uma prioridade

Claire Wardle durante o lançamento do Comprova no 13º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo. Foto: Alice Vergueiro/Abraji

Publicado originalmente em 20.nov.2018 no Medium.

Não é todo dia que você ouve jornalistas experientes admitirem que algo reacendeu a paixão deles pelo ofício. Este ano tem sido muito difícil para jornalistas em todo o mundo, e a maior parte do que ouvimos diz respeito a jornalistas sob ataques físicos, verbais e on-line de políticos e trolls.

Então, no início deste mês, quando um fluxo de mensagens de WhatsApp de jornalistas brasileiros apareceu na minha tela, cheio de emojis de força e corações, ficou claro que algo estava acontecendo. As mensagens estavam sendo compartilhadas em um grupo de WhatsApp utilizado por 62 jornalistas que fizeram acontecer o nosso projeto colaborativo nas eleições, o Comprova. Diariamente, o grupo compartilhava centenas de mensagens de como eles decidiam quais partes da desinformação atacar, como verificar rumores, fotos adulteradas e memes enganosos, e como redigir as manchetes com responsabilidade. Mas com a votação encerrada e o projeto concluído, os jornalistas começaram a compartilhar uns com os outros o que o projeto significava para eles pessoalmente. E as mensagens eram surpreendentes.

Estes projetos de desmentir conteúdos enganosos são frequentemente julgados sobre sua eficácia em diminuir ou parar a desinformação. Entender esse impacto é quase impossível sem dados de outras plataformas, mas nós estamos no processo de medir e avaliar o impacto do projeto utilizando dados que nós coletamos (mais sobre isso em um texto futuro).

Mas, assim como o impacto na audiência, nós também precisamos reconhecer o que estes projetos fizeram para a indústria de notícias. Este tipo de projeto, como o CrossCheck, foi testado na França durante as eleições de 2017. Nossa avaliação pós-projeto mostrou que ele melhorou significativamente as habilidades de verificação em redações pequenas e grandes, mas talvez mais importante, construiu um significativo senso de confiança entre jornalistas de redações que geralmente competem entre si. O Comprova mostrou resultados similares.

Você pode ler mais detalhes sobre o Comprova aqui, mas a premissa básica é que jornalistas de 24 veículos brasileiros trabalharam colaborativamente todos os dias para achar, desmentir e reportar sobre diferentes rumores e conteúdo falso e enganoso que circularam na eleição brasileira. O Slack não pegou no Brasil, então os repórteres colaboraram em um grupo de WhatsApp chamado Comprova Verificadores (o apelido que eles mesmos se deram). O grupo estava tão ocupado que em alguns dias mais de 1000 mensagens eram compartilhadas. Um jornalista escrevia a reportagem, e os outros eram solicitados a fazer uma checagem cruzada das informações. Se eles concordassem com a qualidade do trabalho, eles adicionavam o logotipo de seu veículo, e quando três veículos faziam isso, a reportagem era publicada no site central.

A mágica do modelo do CrossCheck é que, enquanto o Comprova construiu alguma quantidade de seguidores, durante um período de três meses nós não poderíamos (e não deveríamos) competir com as redações que eram parte da coalizão. Assim, paralelamente à reportagem sendo vista no site do Comprova, os parceiros que estivessem satisfeitos com a checagem cruzada publicaram suas próprias versões em seus sites, ou transmitiram a histórias em seus canais de rádio ou televisão. Por exemplo, o site do Comprova teve cerca de um milhão de visualizações únicas da página. Somente um dos 24 parceiros reportou um tráfego de aproximadamente sete milhões de visualizações únicas. A máquina de amplificação é poderosa.

Ao todo, 147 checagens foram publicadas no site do Comprova, e muitas outras foram publicadas através dos parceiros (nós estamos no processo de coletar esse número final). O Jornal do Commercio, sediado no Recife, publicou uma coletânea de desmentidos em uma edição de final de semana várias vezes durante o projeto, replicando o conteúdo do site para o público do impresso.

Um dos elementos dos quais os jornalistas mais se orgulham é que nenhuma correção foi feita durante o projeto. Assim como nós vimos em nosso projeto anterior na França (que também não cometeu erros durante as dez semanas), forçar redações a trabalhar em conjunto eleva os padrões. Ser responsabilizado pelo seu editor é uma coisa, mas ser responsabilizado por colegas de redações concorrentes é outra.

Ter esses canais de comunicação entre as redações do projeto também nos levou a discussões aprofundadas sobre a ética de cobrir uma parte específica do conteúdo, ou como enquadrar a manchete. Nós tivemos as mesmas conversas durante o projeto na França. Fazer jornalismo em tempos de desinformação é cada vez mais desafiador. As redações estão tendo que descobrir isso enquanto fazem.

Nos EUA, as redações fazem julgamentos ruins diariamente em relação a dar oxigênio desnecessário a conspirações ou personalidades marginais, ou redigir uma manchete ou tweet de forma a reforçar algo falso. Esses conteúdos geralmente resultam em uma erupção de indignação no Twitter, mas poucas mudanças. Esses tipos de canais de apoio entre as redações permitem uma consideração cuidadosa desses problemas complexos e novos desafios.

A experiência esmagadoramente positiva dos jornalistas que fizeram parte do Comprova significa que a maioria deseja que o projeto continue. Nós viajamos para São Paulo na semana passada para uma bem sucedida “festa de encerramento” e para fazer planos de como estabelecer o Comprova 2.0 para um esforço colaborativo no combate à desinformação no Brasil. Sem surpresas, a desinformação não acabou com o fim da eleição.

Esse projeto foi ambicioso e em alguns momentos estivemos perto de desistir. Foram muitas noites sem dormir e cinco vôos noturnos para o Brasil. Mas tudo valeu a pena. O Comprova criou uma resposta sustentável para a desinformação, criou um time de jornalistas que pode treinar outros colegas sobre como descobrir, verificar e expor responsavelmente a desinformação. Para outros, ainda, reacendeu seu amor pelo jornalismo.

E para os acadêmicos na área, nós agora temos os mais incríveis conjuntos de dados sobre desinformação, o que sempre foi o ponto principal desses projetos. Levantaremos em nossa pesquisa como podemos fazer um bom trabalho no tema, um trabalho que em última instância ajude a comunidade acadêmica a aprender mais sobre o ecossistema de desinformação em diferentes plataformas.

O Comprova foi o sexto projeto do tipo que criamos; nós tentamos diferentes metodologias e aprendemos muito. Nossa principal lição depois do sexto projeto é: embora as eleições sejam o momento em que os financiadores e as redações estão animados com as possibilidades, precisamos construir colaborações sustentáveis e contínuas como uma preparação para quando as próximas eleições chegarem. A desinformação não é um problema só durante o período de eleições. Nós precisamos fornecer às redações treinamentos sobre descobertas sociais, verificação, e técnicas responsáveis de reportagem quando se trata de desinformação. Depois, precisamos estabelecer projetos colaborativos contínuos para que as novas habilidades recém-descobertas não morram, e precisamos construir redes de “embaixadores” dispostos a espalhar conteúdo de qualidade em grupos de WhatsApp. Nós temos muito trabalho a fazer, mas jornalistas no Brasil e na França, particularmente, mostraram que é possível.

Até eu tive meu entusiasmo por esse tema reacendido. E tem sido um ano difícil!

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Assinatura Abraji