Com a participação de Cármen Lúcia, Abraji debate soluções para a violência de gênero contra jornalistas
  • 10.03
  • 2022
  • 14:20
  • Abraji

Formação

Liberdade de expressão

Com a participação de Cármen Lúcia, Abraji debate soluções para a violência de gênero contra jornalistas

“Quando se ataca a jornalista mulher, não se ataca apenas uma pessoa. Esse ataque se volta contra a verdade dos fatos, o princípio da Justiça e a prática da democracia”.

Com declarações que reforçaram a importância do jornalismo na democracia, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), defendeu, nesta quarta-feira (9.mar.2022), a implementação de mecanismos jurídicos que protejam as mulheres jornalistas de ataques misóginos, lembrando que esse tipo de agressão visa silenciar a mulher na discussão pública.

A ministra participou de webinar realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) em parceria com a UNESCO para o lançamento do relatório da Abraji sobre violência de gênero contra jornalistas. O evento contou com a presença de representantes do poder Legislativo e da sociedade civil organizada na discussão de medidas de combate a agressões que ocorrem sobretudo contra as mulheres.

“O que faz a jornalista é dar voz a uma cidadania que não tem condições de exercer o direito fundamental democrático de ser livre, com capacidade crítica. (...) Eu não imagino que seja livre alguém que não possa sequer se manifestar criticamente porque não se dá conta do que está acontecendo”, afirmou a ministra.

Para Cármen Lúcia, o papel de proteger as comunicadoras deve ser não só dos órgãos de imprensa, mas da sociedade. “Por exemplo, estabelecendo como se faz no Direito do Trabalho, que, diante de qualquer tipo de situação, salvaguardamos a obrigatoriedade de se manter naquela função durante um determinado período. Quem praticar um tipo de ação violenta sabe que, se continuar, vai fazer com que ela tenha uma estabilidade especial decorrente de um dano que, além de profissional e material, é moral”, sugere.

O silenciamento histórico das mulheres, por muito tempo relegadas às margens das esferas política e social, foi outro ponto importante abordado pela magistrada. “Eu sou de uma geração que escutou histórias como a da Gata Borralheira sem ter a capacidade crítica de me dar conta de que a mulher era equiparada a um animal que ficava no borralho e que só sairia dali se um príncipe aparecesse”, criticou. 

Com uma anedota, a ministra expôs as amarras que, por muito tempo, restringiram a liberdade feminina de escolha e pensamento: “lembro de uma vez que, menina, fiquei de castigo na sala de aula porque, tendo que interpretar a tal da [história da] Chapeuzinho Vermelho, disse que queria passar pela estrada da floresta porque eu gosto de lobo mau. Mas é claro que eu fiquei de castigo, você não pode gostar de nada diferente”. Ela narra o fato como um exemplo de que as mulheres tiveram seus direitos de expressão cerceados, tendo que cumprir determinados papéis sociais. Em suma, a elas sempre foram negados caminhos diferentes daqueles pré-estabelecidos.

A ministra compôs o quadro de convidadas do webinar ao lado de Leonor Costa, coordenadora de comunicação do mandato da deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ); de Laura Tresca, integrante do Comitê Gestor da Internet no Brasil; e de Leticia Kleim, assistente jurídica e coordenadora do relatório da Abraji. A mediação foi de Patricia Campos Mello, jornalista e diretora da Abraji.


Destaques do webinar

Campos Mello iniciou o debate relembrando os principais resultados do relatório: foram 119 casos de agressão contra mulheres jornalistas e/ou ataques de gênero contra profissionais e veículos da imprensa. Isso representa, em média, 1 episódio a cada 3 dias. A própria jornalista foi vítima de cinco ataques somente em 2021. “Anos atrás, a gente não falava desse tipo de agressão especificamente misógina contra jornalistas mulheres. Ocorria, mas, com certeza, as redes sociais e um certo perfil de governante favorecem isso”, disse Campos Mello.

A jornalista Leonor Costa, representante da deputada Talíria Petrone, destacou a seriedade do problema discutido e sua conexão com o contexto político do país, que ela apontou como, possivelmente, “o momento mais difícil da história democrática recente”. Costa citou dados do relatório que colocam as autoridades estatais como autores de 52% dos ataques registrados. Inclusive, muitas das agressões monitoradas partiram do próprio presidente Jair Bolsonaro (PL), de seus aliados políticos e de seus filhos detentores de cargos públicos.

“Estamos falando de uma violência que tem a chancela dos representantes do poder público, de quem está à frente do Estado brasileiro. E, à medida que esses agentes reforçam esse tipo de prática, eles também estão dando autorização para que outros setores da sociedade ajam de forma violenta e intolerante com quem eles não concordam”, afirma a jornalista.

Para ela, é clara a necessidade de elaborar ações dentro do Congresso Nacional para que a questão seja efetivamente combatida. Do seu ponto de vista, esse enfrentamento é tarefa do Parlamento, das organizações da sociedade civil e das empresas de comunicação, que precisam garantir a segurança de suas profissionais. “Ataque à imprensa é um ataque frontal à democracia. Não existe a possibilidade de uma democracia plena se jornalistas são, em grande medida, atacados e impedidos de exercer sua função”.

Laura Tresca, integrante do Comitê Gestor da Internet no Brasil, destacou os ataques fomentados por atores políticos. Para ela, esse tipo de violência ganha amplitude em um contexto social que não constrange certos comportamentos agressivos, que é marcado pela conivência de instituições estatais e que não tem mecanismos adequados para lidar com tais violações da liberdade de expressão.

Diante dessa conjuntura, Tresca deixou uma provocação: “quais são os mecanismos administrativos efetivos que temos hoje para a responsabilização dos agentes políticos por seus discursos de ódio?”. Ela destaca a criação de tais mecanismos como algo essencial para controlar a violência de gênero contra jornalistas, além da formação de redes de apoio para acolher vítimas e da elaboração de ciclos informativos saudáveis, impulsionados por organizações sociais e de mídia e moldados por questões de interesse público.

Leticia Kleim, assistente jurídica da Abraji e coordenadora do relatório sobre violência de gênero contra jornalistas, também dedicou parte de sua apresentação para fazer recomendações ao poder público, às empresas noticiosas, às plataformas de redes sociais e à sociedade civil. "As organizações devem proteger suas profissionais, criando canais que sejam seguros para que elas possam denunciar esse tipo de violência. Que proporcionem assistência jurídica para essas jornalistas, para quando precisarem recorrer a alguma medida dessa forma, e, com isso, construir uma cultura dentro da organização de combate à violência", defendeu.

Outras sugestões também foram levantadas, como o investimento em treinamentos voltados à segurança digital para profissionais da imprensa e a moderação de conteúdos nos sites de redes sociais. “As plataformas precisam qualificar profissionais para lidar com questões de igualdade de gênero e direitos humanos, ter políticas e procedimentos eficazes para detectar esses casos [de ataques] e impedir que voltem a acontecer”, disse Kleim.

Quem não conseguiu assistir ao evento ao vivo pode conferir tanto o primeiro encontro, de 8.mar.2022, quanto o segundo em uma plataforma on-line. O conteúdo ficará disponível por 30 dias; e aqueles que assistirem os dois encontros na íntegra receberão certificado de participação.


Primeiro dia de evento

No Dia Internacional da Mulher, 8.mar.2022, pesquisadoras e jornalistas discutiram a violência de gênero contra profissionais de imprensa e os ataques direcionados às comunicadoras no cotidiano de sua profissão. Durante o webinar, foi lançado o relatório “Violência de Gênero contra Jornalistas”.

O debate foi mediado pela jornalista Jéssica Moreira, cofundadora do Nós, mulheres da periferia, e teve a participação de Marlova Noleto, diretora e representante da UNESCO no Brasil; Verônica Toste, professora da Universidade Federal Fluminense e consultora de gênero do projeto da Abraji; Julie Posetti, vice-presidente de Pesquisa Global do Centro Internacional de Jornalistas (ICFJ); e Mariliz Pereira Jorge, colunista da Folha de S.Paulo.

No encontro, as convidadas apresentaram dados do relatório, debateram os tipos de ataques a mulheres jornalistas, além do cenário internacional de violência de gênero contra as profissionais mulheres. Para conferir mais destaques do primeiro dia de evento, acesse esta matéria.

O painel também foi promovido pela Abraji, com apoio da UNESCO. 


Sobre o relatório

Resultado do monitoramento da Abraji, o relatório “Violência de Gênero contra Jornalistas: dados sobre os ataques com viés de gênero e casos que vitimaram mulheres no Brasil em 2021” pode ser conferido neste link. O documento foi produzido com financiamento do Global Media Defence Fund, da UNESCO. As versões em inglês e em espanhol também estão acessíveis ao público.

Outros dados e informações sobre o monitoramento estão disponíveis no site violenciagenerojornalismo.org.br. A Abraji mantém um canal de denúncias para que o público possa comunicar casos de agressões físicas e verbais, ameaças, intimidações, insultos e assédio a mulheres jornalistas ou a profissionais da imprensa de modo geral, quando há o fator gênero envolvido.


Foto de capa: Captura de tela da transmissão da mesa “Violência de gênero contra jornalistas: o que pode ser feito a respeito?”.

Assinatura Abraji