Os furos na segurança e na investigação dez meses depois do assassinato de Dom e Bruno
  • 05.04
  • 2023
  • 10:00
  • Texto: Sérgio Ramalho - Atalaia do Norte (AM); Caê Vatiero - São Paulo (SP); Edição: Angelina Nunes e Tatiana Farah; Imagens: Marcos Tristão

Liberdade de expressão

Os furos na segurança e na investigação dez meses depois do assassinato de Dom e Bruno

Foto: Os chamados "furos" na vegetação / Marcos Tristão

Às vésperas de completar dez meses dos assassinatos do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira de Araújo, o porto de Atalaia do Norte (AM) amanheceu sob uma vistosa vigilância de embarcações da Polícia Federal e do Exército. A ação de visibilidade às margens do Rio Javari deu o que falar entre os pouco mais de 18 mil habitantes do município, onde fica localizada parte da Terra Indígena (TI) Vale do Javari.

A imponente embarcação preta da PF chamava logo a atenção de quem chegava ao mercado de peixe, um galpão erguido à frente do porto, onde pescadores e pequenos agricultores negociam as suas mercadorias. Sobre os azulejos do balcão destinado aos pescados, uns poucos matrinxãs, surubins e traíras eram oferecidos. Nenhum sinal dos valorizados pirarucus e tambaquis, tampouco dos tracajás, uma espécie de quelônio de carne muito apreciada na região.


Embarcação da Polícia Federal em Atalaia do Norte (AM) / Crédito: Marcos Tristão

A ausência das valorizadas espécies no mercado, entretanto, não está relacionada à  presença da PF e do Exército. Com o período de cheia, que se estende até junho, pirarucus, tambaquis e tracajás encontram refúgio nos igapós, também conhecidos como rios de raízes devido a grande quantidade de vegetação, e nos igarapés, canais que se formam em meio à floresta alagada.

Esse ambiente, entretanto, também serve de abrigo para integrantes da organização criminosa envolvida nas expedições predatórias na região. Chamados de furos por indígenas e ribeirinhos, esses atalhos por entre a vegetação são navegáveis apenas por pequenas embarcações e canoas e acabam escapando da imponente vigilância da PF. 

O Programa Tim Lopes, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), navegou por alguns desses furos nos rios Javari e Itacoaí nos dias 29 e 30 de março. Num deles, foram encontradas duas embarcações carregadas com tábuas de madeira nobre, como Angelim-Pedra e Sucupira. Os barcos estavam escondidos em meio à vegetação. Segundo o guia da expedição, que não será identificado por questão de segurança, os envolvidos na atividade clandestina agem à noite, derrubando madeira  ou caçando e pescando espécies proibidas. 

Todo o material extraído ilegalmente é acondicionado em pequenos barcos, escondidos nos furos. Na noite seguinte, os criminosos voltam para levar tudo, escapando da vigilância dos agentes da Polícia Federal e dos militares do Exército, baseados nas embarcações de grande porte, que não entram nesses atalhos criados pela cheia dos rios.

A ação de formiguinha dos envolvidos nas ações predatórias alimenta um mercado clandestino de madeira, peixes, caça e, especialmente, da biopirataria. De acordo com o guia local, esses produtos são levados rio abaixo diretamente para Benjamin Constant, cidade vizinha, de onde são enviados à Islândia, povoado na margem peruana do Javari, ou para Letícia, cidade colombiana que faz fronteira com Tabatinga.

As expedições predatórias que partem de Benjamin Constant foram constantemente denunciadas por Bruno Pereira de Araújo. A ação firme contra os criminosos o tornou alvo de ao menos três ameaças. O indigenista acabou afastado da coordenação da Funai, em Atalaia do Norte, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Ele seguiu vigilante na região, mas como colaborador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).

Em 5 de junho de 2022, Bruno e o jornalista britânico Dom Phillips foram perseguidos enquanto seguiam de barco da comunidade ribeirinha de São Rafael com destino à Atalaia do Norte. Atingidos por tiros de arma de caça, eles foram mortos e tiveram os corpos esquartejados, queimados e enterrados em meio à mata, numa área próxima à casa de Oseney da Costa Oliveira.

Conhecido como dos Santos, Oseney é irmão do assassino confesso Amarildo da Costa Oliveira, o Pelado, que tinha um histórico de confrontos com Bruno Pereira. Em depoimento, Pelado admitiu ter matado Bruno e Dom, juntamente com Jefferson da Silva Lima. Os três foram denunciados pela Procuradoria da República à Justiça Federal por duplo homicídio qualificado por motivo fútil e ocultação dos corpos.

Recém-eleito coordenador da Univaja, Bush Matis defende a adoção de uma parceria entre a associação indígena com a PF e o Exército para o enfrentamento às ações predatórias. “Precisamos trabalhar juntos para impedir a ação desses invasores, que conhecem a região e usam esse conhecimento para driblar a lei”, defende o indígena, formado em Administração, com pós-graduação em Políticas Públicas.


Membros do Exército no município / Crédito: Marcos Tristão

Para Bush Matis, o lugar ideal para que a embarcação da Polícia Federal fique baseada não é o porto de Atalaia do Norte, mas o entroncamento entre os rios Javari e Itacoaí, que liga a região à TI Vale do Javari. A partir da base, agentes da PF poderiam receber auxílio de indígenas para realizarem patrulhamento com pequenas embarcações nos furos. 

Foi esse tipo de ação conjunta que possibilitou a prisão de Pelado horas após os assassinatos, além da descoberta dos corpos e do local onde havia sido afundada a embarcação usada pelo indigenista e pelo jornalista na manhã do crime, como mostrou a Abraji em reportagem publicada em 28.jun.2022. Na ocasião, a participação dos indígenas da Univaja foi fundamental para as investigações da Polícia Civil do Amazonas e, posteriormente, da Polícia Federal, que assumiu o caso por envolver a ação de invasores na Terra Indígena.

Bush Matis coordenou o grupo de buscas que localizou as valas onde foram queimados e enterrados Bruno e Dom. Na opinião do líder indígena, a mobilização de grandes embarcações pela PF e o Exército tem um efeito prático sobre os ribeirinhos, que dependem da pesca para a sobrevivência: “Esses ficam com medo de serem presos e acabam passando fome. Enquanto que os verdadeiros envolvidos nas expedições predatórias continuam agindo”, diz Matis.

De acordo com o líder indígena, a atuação dos invasores se intensifica a partir de junho, quando inicia o período de vazante dos rios. É nessa época que pirarucus,  tambaquis e tracajás saem de seus abrigos direto para as mãos dos invasores. As investigações da PF confirmaram que as expedições capitaneadas por Amarildo Pelado eram financiadas por Ruben Dario Villar, o Colômbia.

Suspeito de envolvimento com o narcotráfico, Colômbia tinha como reduto as cidades de Benjamin Constant e Islândia, respectivamente, nas margens brasileira e peruana do Rio Javari. Além de controlar o tráfico de drogas, ele estaria envolvido no financiamento das expedições predatórias à TI Vale do Javari. 

A partir dos indiciamentos dos réus, o Ministério Público Federal instaurou dois inquéritos. Num deles, os três denunciados figuram juntamente com Ruben Villar no rol de citados por participação nas mortes. A investigação, entretanto, segue sob sigilo e pode chegar ao elo político do bando.

Já o segundo inquérito trata especificamente da atuação da organização criminosa envolvida nas invasões predatórias à TI Vale do Javari. O trabalho tem por objetivo traçar um organograma da quadrilha, apontando os envolvidos, a hierarquia, as fontes de financiamento e elos com comerciantes e políticos de Atalaia do Norte, Benjamin Constant e Tabatinga.


Um dos chamados "furos" no rio Javari / Crédito: Marcos Tristão 

Os furos na investigação 

Passados dez meses das mortes de Dom e Bruno, os furos não se limitam apenas aos atalhos usados pelos invasores para escapar da fiscalização da PF e do Exército. As investigações caminham em ritmo lento, com diversas lacunas que seguem sem respostas.

Em 22.mar.23, a Justiça Federal adiou pela quarta vez consecutiva as audiências de instrução dos três réus confessos: Amarildo da Costa Oliveira, o Pelado, seu irmão Oseney da Costa de Oliveira e Jefferson da Silva Lima. Problemas de internet, energia e a falta de salas disponíveis foram os motivos que levaram ao adiamento dos julgamentos em Tabatinga, no Amazonas.

Ainda no começo do ano, a Polícia Federal apontou Villar, o Colômbia, como o mandante dos assassinatos. Ele havia sido preso pela primeira vez em junho de 2022 ao se apresentar à PF portando documentos falsos. À época, Colômbia disse em depoimento que nasceu em Benjamin Constant e depois afirmou ter nascido em território colombiano. As autoridades então identificaram que ele teria três identidades: uma brasileira, uma colombiana e outra peruana. 

O inquérito da PF e o Ministério Público Federal ainda não responderam a uma série de  perguntas sobre a relação de Colômbia com a morte de Dom e Bruno. Entre elas, está a sua verdadeira identidade e a motivação do crime. Pouco se sabe sobre o traficante, que ainda responde a um processo por liderar uma associação criminosa de pesca ilegal na TI Vale do Javari. Até o momento, as autoridades também não confirmaram qual o envolvimento de Colômbia com o narcotráfico na fronteira, mesmo ele já sendo alvo de suspeitas antes do duplo homicídio.

Outra ponta solta nas investigações diz respeito aos ataques envolvendo Bruno Pereira. O indigenista, que era ativo na defesa dos povos originários, chegou a receber ao menos três ameaças de morte quando ainda ocupava o cargo de coordenador regional da Funai em Atalaia do Norte. Ele tinha costume de realizar investigações paralelas e recebia constantes ameaças por parte de criminosos envolvidos na extração e pesca ilegal na região. Desde então, não foram realizadas investigações para apurar os casos. 

A Abraji também questionou, em reportagem publicada em 5.set.2022, a relação de investigados no assassinato de Dom e Bruno com a prefeitura de Atalaia. Jânio Freitas de Souza e Otávio da Costa Oliveira, ambos da família de Pelado, foram contratados na gestão do prefeito Dênis Linder Rojas de Paiva (União Brasil). Eles ocuparam as funções de auxiliar de serviços gerais e microscopista, respectivamente. A PF e o MPF não se manifestaram sobre o envolvimento de políticos locais com a família de Pelado.
 

Assinatura Abraji