- 26.04
- 2022
- 12:56
- Abraji
Liberdade de expressão
Inquérito sobre perseguição contra jornalista é concluído sem indiciamento de suspeitos
O inquérito que investigava ameaças e tentativas de incriminar e difamar o jornalista Alexandre Aprá, fundador do site Isso É Notícia, de Cuiabá, foi encerrado pela Polícia Civil do Mato Grosso, sob a alegação de não ter sido possível identificar o mandante do crime. Os principais suspeitos de envolvimento no caso eram o atual governador, Mauro Mendes (União Brasil), a primeira-dama Virgínia Mendes, o publicitário Ziad Fares e o detetive particular Ivancury Barbosa. Nenhum deles foi indiciado.
Enquanto as autoridades policiais alegam não ser possível dar prosseguimento à investigação por falta de provas, Alexandre Aprá foi indiciado em outro inquérito, instaurado a partir da “Operação Fake News”, deflagrada também pela Polícia Civil.
Segundo nota divulgada pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), o novo processo contra Aprá é uma "nova forma de perseguição" contra o profissional. O desfecho do caso, com o jornalista passando de vítima a acusado, foi rejeitado pelo Sindicato dos Jornalistas do MT, que criticou a “perniciosa malemolência” das autoridades locais para apurar os fatos. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) também anunciou que acompanha o indiciamento e diz que tomará providências.
O governador Mauro Mendes acusa o jornalista de disseminar informações enganosas contra sua família. Além de Aprá, também foram denunciados um empresário e irmão do prefeito de Cuiabá Emanuel Pinheiro (MDB) e dois ex-servidores da prefeitura da capital mato-grossense.
Entenda histórico das acusações
Em setembro do ano passado, Alexandre Aprá apresentou queixa-crime à Polícia Federal sob a alegação de estar sendo perseguido pela família do governador. Relatou que, desde 2013, o blog criado por ele publica reportagens que citam suspeitas de ilegalidade nos gastos do Executivo com publicidade. Os envolvidos nas supostas irregularidades seriam o próprio governador, a primeira-dama, a ZF Comunicação, empresa de Ziad Fares, e uma outra agência contratada pelo governo com dispensa de licitação.
De acordo com Aprá, incomodados com essas matérias, o governador, a primeira-dama e o publicitário Ziad Fares criaram um plano de difamação e incriminação e contrataram o detetive particular Ivancury Barbosa para tentar forjar um flagrante e associar o jornalista ao tráfico de drogas ou à pedofilia.
No depoimento à PF, Aprá anexou vídeos e áudios nos quais o detetive revela ter prestado serviços para uma pessoa que tem "poder no estado inteiro". Nessas gravações, Barbosa afirma também que “trabalha para a primeira-dama de Mato Grosso”, mas diz que o nome de Virgínia Mendes não poderia ser mencionado. Em um dos áudios, o detetive insinua que poderia ganhar dinheiro caso matasse Alexandre Aprá.
As gravações foram obtidas com a ajuda de um amigo do jornalista, que fingiu ser inimigo de Aprá para se aproximar do detetive como informante. À época, o jornalista disse à Abraji que apelou para essa estratégia por temer que a influência do governo estadual poderia impedir uma investigação independente - e também para salvar sua vida. As ameaças o levaram a deixar o Mato Grosso.
Além das gravações, um vídeo mostrou o momento em que Barbosa instala um rastreador no carro do jornalista. Os registros feitos pelo GPS também foram apresentados à Polícia.
Uma semana após a notícia-crime ter sido protocolada, a corregedoria da PF de MT encaminhou o caso para a Polícia Civil e ao Ministério Público Estadual. No despacho, o corregedor Renato Dias alegou que as provas apresentadas não comprovaram indício de crime cometido pelo governador, que tem foro especial. E remeteu a denúncia para ser apurada pelas instâncias estaduais.
A denúncia foi distribuída ao promotor de justiça André Luis de Almeida, que o encaminhou à Direção Regional da Polícia Civil para a instauração de procedimento investigatório dos fatos narrados. O caso foi repassado à 3ª Delegacia de Polícia do Coxipó, que já havia recebido uma denúncia feita pelo advogado do governador por calúnia contra o jornalista Alexandre Aprá.
A defesa de Mauro e Virgínia Mendes chegou a se manifestar nos autos pedindo que fossem reunidos os dois inquéritos - a denúncia movida por eles e a denúncia feita por Aprá - para a tramitação em conjunto, tendo em vista a conexão dos fatos.
Em 28.set.2021, o procedimento chegou aos cuidados do delegado Ruy Guilherme Peral da Silva, da Delegacia Especializada de Repressão a Crimes Informáticos - DRCI, que conduziu o caso até sua conclusão. Da parte do Ministério Público, quem passou a acompanhar o caso foi o promotor Mauro Poderoso.
Andamento da investigação
À Polícia Civil, Ivancury Barbosa afirmou que foi contratado por um cliente em Campo Grande (MS) para investigar Alexandre Aprá e que não revelaria o nome em razão do sigilo da profissão.
O detetive sustenta que os áudios divulgados teriam sido manipulados e editados para constar apenas suas respostas às indagações do informante. E negou que teria o objetivo de forjar flagrantes ou mesmo atentar contra a vida do jornalista.
O delegado solicitou a um juiz de direito para que fossem autorizadas medidas cautelares como a busca e apreensão na casa de alguns dos envolvidos, além da quebra de sigilo dos dados telefônicos para a extração de dados dos materiais coletados.
No entanto, o promotor Mauro Poderoso, considerou o pedido inviável e pediu o retorno dos autos para a conclusão da investigação pela delegacia de polícia.
Nos autos, a defesa de Alexandre Aprá destacou os pontos mais críticos das gravações dos áudios que deveriam ser esclarecidos e, em especial, a necessidade de apurar uma visita realizada pelo detetive ao Centro Político Administrativo, sede do governo estadual do Mato Grosso, conforme mostram imagens obtidas da Secretaria de Estado de Segurança Pública.
O Sindicato dos Jornalistas do MT afirma que seria “óbvia” a quebra do sigilo bancário do detetive para a identificação dos contratantes.
A defesa de Aprá também lembrou que não foram realizadas outras diligências para apuração do caso, sobretudo contra outros suspeitos que constavam nos despachos iniciais do procedimento, como Ziad Fares. O jornalista identificou nas redes sociais pessoais do atual promotor do caso, Mauro Poderoso, fotos tiradas com o publicitário.
O relatório conclusivo do inquérito afirmou que não encontrou “elementos informativos robustos e concretos” de que Ziad Fares, Mauro e Virgínia Mendes tenham contratado o detetive particular Ivancury Barbosa.
A conclusão foi fundamentada pelos depoimentos dos envolvidos e teve como base o entendimento de que as gravações que comprovariam a contratação eram precárias e duvidosas. O delegado também decidiu por não indiciar o detetive particular pelo crime de perseguição, com o argumento de que não foi possível identificar o elemento da vontade do autor em relação ao crime e os excessos que ele tivesse cometido em sua conduta, justamente pela incapacidade de identificar o mandante do crime.
Investigação contra o jornalista
Registrado em 5.set.2021, o Boletim de Ocorrência apresentado pelo advogado Hélio Nishiyama, em nome de Mauro e Virginia Mendes, coloca o casal como “vítima do crime de calúnia”. Alexandre Aprá aparece como suspeito de disseminar desinformação sobre a possível relação do governador e a mulher com a contratação de detetive.
O documento detalha ainda que estaria sendo disseminada, via WhatsApp, a suspeita de contratação de detetive particular para grampear a Assembleia Legislativa do MT desde o ano de 2019, com apoio da secretaria do governo do estado, policiais e delegados de polícia. O jornalista também aparece como suspeito, por suposta proximidade com o irmão do prefeito de Cuiabá, Emanuel Pinheiro que favoreceria o site Isso É Notícia com verbas publicitárias.
A denúncia deu início ao inquérito policial 38/2021, em que foram pleiteadas quebras de sigilos de dados telefônicos e telemáticos dos números associados às ofensas investigadas, busca e apreensão domiciliar, além de terem sido ouvidas as vítimas e os suspeitos. Nos depoimentos, o empresário e os servidores públicos afirmaram que apenas participam de um grupo de WhatsApp em que se compartilham notícias da cidade, não tendo caráter de ofensa à honra, mas apenas manifestação de opinião política.
Os indiciados também foram investigados por “associação criminosa com viés político”, com o objetivo de praticar disseminação de “fake news”. O texto ressalta que as manifestações dos investigados ultrapassaram os limites da liberdade de expressão.
No dia 6.abr.2022, o delegado Ruy Guilherme Peral da Silva e o delegado adjunto João Paulo Firpo Fontes indiciaram Aprá pelos crimes de calúnia e difamação majoradas, além de associação criminosa. Os outros suspeitos também foram indiciados pelos crimes de calúnia, difamação e injúria majoradas, além de perseguição, falsa identidade e associação criminosa.
Outro lado
A Abraji procurou a Assessoria de Comunicação Social da Polícia Civil do MT, que confirmou a instalação de dois inquéritos envolvendo Alexandre Aprá - um em que ele aparece como vítima e o outro como suspeito. Na resposta encaminhada à reportagem, não há, no entanto, qualquer menção às acusações feitas por Aprá se houve uma suposta interferência política por parte do governador para o encerramento do caso.
Ainda segundo a nota enviada à Abraji, o detetive particular foi identificado por autor da perseguição, mas, “por se tratar de crime de menor potencial ofensivo, não há indiciamento do investigado, sendo o procedimento encaminhado ao Juizado Especial Criminal (Jecrim)”.
Os representantes do Ministério Público do MT também foram questionados pela Abraji sobre denúncias de perseguição contra o jornalista, alvo de preocupação de entidades da sociedade civil. A Assessoria de Imprensa do MPE limitou-se a informar que os autos do arquivamento do processo não foram encaminhados ao promotor Mauro Poderoso de Souza.
Programa de Proteção Legal para Jornalistas
Alexandre Aprá é um experiente jornalista investigativo e um dos profissionais acolhidos pelo Programa de Proteção Legal para Jornalistas, da Abraji. Alvo de diversos processos movidos por pessoas ligadas ao grupo político do governador, já enfrentou a Justiça para fazer valer a Lei de Acesso à Informação e chegou a ser agredido fisicamente em 2015.