Dicas para investigar o futebol e a Copa do Mundo no Catar
  • 24.11
  • 2022
  • 13:00
  • Rowan Philp*

Formação

Dicas para investigar o futebol e a Copa do Mundo no Catar

Publicado originalmente no site da Global Investigative Journalism Network (GIJN) em inglês e em português.
Tradução: Ana Beatriz Assam

Este post é baseado no webinar da GIJN sobre como investigar o futebol e a Copa do Mundo de 2022 no Catar. Você pode assistir ao webinar completo no canal da GIJN no YouTube ou no final deste post.

O foco investigativo no futebol profissional – e a escolha do Catar para sediar a Copa do Mundo da FIFA no final deste ano – gira em torno da corrupção nas licitações de construção e hospedagem. Nesse caso, isso é compreensível dada a série de escândalos de tirar o fôlego no “jogo bonito” durante os últimos 12 anos, que incluem a compra de votos desenfreada e a prisão de nove funcionários da FIFA pelo FBI em um único dia em 2015. (A FIFA é o órgão global do futebol, com 211 federações nacionais.)

Entretanto um painel de investigadores experientes em um webinar da GIJN enfatizou que existem outros tópicos relacionados ao futebol para os repórteres investigarem em 2022 e 2023 – incluindo sexismo sistêmico e abuso sexual (encoberto), “sportswashing” (um termo usado para descrever regimes antidemocráticos que usam o esporte para aumentar sua reputação e legitimidade), abusos de trabalho letais, lavagem de dinheiro, segurança de estádios e até o abandono silencioso de objetivos nobres e declarados por órgãos locais de futebol.

O painel contou com a ex-denunciante da FIFA e autora Bonita Mersiades, o especialista em investigação de futebol Romain Molina e David Conn – um repórter esportivo do Guardian, no Reino Unido, que é autor de “The Beautiful Game?” e “The Fall of the House of FIFA”.

“É muito bom que as pessoas entendam que esporte e futebol são áreas de jornalismo investigativo”, disse Conn. “É claro que a grande maioria das pessoas que amam futebol quer assistir a ação, apoiar seu clube, amar os jogadores e até mesmo jogar. Eu mesmo sou um amante do futebol. Mas é em parte por causa dessa popularidade que o esporte tem sido pouco reconhecido como foco de investigação ao longo dos anos”.

Quão importante – para um autocrata – é sediar uma Copa do Mundo de futebol? De acordo com Conn, a controversa oferta vencedora da Rússia para sediar a Copa do Mundo da FIFA de 2018 “impulsionou muito o perfil de Vladimir Putin e sua própria sensação de importância – e acredito que ajudou a encorajar Putin a iniciar uma guerra horrível” na Ucrânia.

Molina, que contribuiu com histórias sobre abusos no futebol para o The New York Times, o Guardian e a BBC, encorajou os jornalistas a abandonarem até mesmo suposições básicas sobre normas éticas e legais entre os organizadores do jogo profissional. Em vez disso, ele pediu aos investigadores que mantenham a mente aberta com relação às alegações mais obscuras vindas de fontes – seja denunciandoo que o esporte permite abuso sexual generalizado ou tem conexões criminosas.

Da mesma forma, Mersiades – ex-executiva do órgão regulador do futebol da Austrália e autora de “Whatever It Takes: the Inside Story of the FIFA Way” – alertou que os jornalistas não devem ignorar ou minimizar o clientelismo que levou ao controverso papel da Rússia como anfitriã do Copa do Mundo FIFA de 2018.

“Enquanto todos estão focados no Catar agora, não vamos esquecer que essas foram duas decisões [de nação anfitriã] tomadas em conjunto, e eles foram os maiores facilitadores da Rússia e do Catar ao longo de um período de 12 anos”, argumentou Mersiades. “A Rússia foi tão corrupta quanto o Catar – provavelmente ainda mais corrupta, mas todos foram à Rússia em 2018 e gostaram. Jornalistas: não se esqueçam – as coisas não mudaram”.

Conn disse que é importante, até para jornalistas não esportivos, entender a estrutura básica do futebol profissional: níveis “base” com poucos recursos; federações nacionais de futebol sem fins lucrativos; clubes de propriedade privada e as ligas mundialmente populares que eles efetivamente administram; proprietários e agentes; e confederações continentais, que são filiadas ao órgão global FIFA.

Conn também fez uma observação importante sobre o público potencial para essas investigações. Ele disse que o comportamento antiético no futebol é pior para muitas pessoas do que o comportamento ilícito semelhante nos negócios, porque os torcedores investem muito mais do que seu dinheiro nos clubes que torcem.

“O futebol não é apenas um negócio”, destacou Conn. “Digamos que você esteja investigando a corrupção. Acredito que seja mais ruim no futebol do que se a corrupção estivesse na indústria siderúrgica ou automobilística. É um esporte, um jogo, e é a vida inteira de algumas pessoas”.

Conn enfatizou que as histórias básicas de responsabilidade não criminal, portanto, têm mais peso, mesmo que envolvam simplesmente verificar as declarações de missão das federações de futebol locais e revelar como esses objetivos foram abandonados.


Investigando abusos trabalhistas na Copa do Mundo de 2022 no Catar

O painel concordou que o abuso de trabalhadores migrantes no Catar – de condições inseguras de trabalho a trabalho praticamente escravo – continuará sendo um importante tópico de investigação durante a Copa do Mundo deste ano.

“Lembre-se de que a FIFA concedeu um grande projeto de construção a um país que não tinha boas condições ou direitos para seus trabalhadores da construção”, observou Conn.

“É simplesmente muito quente e não é seguro, mesmo para jovens saudáveis, trabalhar por horas nessas condições, e eles estão fazendo o trabalho mais difícil”, explicou ele. “Como a Anistia Internacional destacou, os jovens migrantes estão morrendo, alguns em seus quartos. E os catarianos não estão dando explicações adequadas – como ‘foi um ataque cardíaco’ ou ‘ele teve problemas respiratórios'”.

Originalmente agendada para o verão, a Copa foi transferida para a temporada de inverno do Catar (de novembro a dezembro), devido a preocupações com a saúde dos jogadores e torcedores que sofrem com o calor sufocante da região. No entanto, isso torna mais difícil para os repórteres cobrirem os abusos trabalhistas da Copa do Mundo durante o evento real.

Para combater isso, Conn disse que os repórteres presentes no evento – ou, idealmente, visitando com antecedência – podem reportar nos campos residenciais de trabalho migrante do país para coletar informações sobre vítimas e condições de trabalho.

“Os qataris realmente abrirão campos de trabalho para jornalistas, porque agora melhoraram as condições e estão muito orgulhosos”, explicou. “Veja as divisões na sociedade lá. Estes são lugares muito grandes, e você pode conversar com as pessoas desavisadas, mas não necessariamente com as autoridades observando você”.

Os palestrantes deram uma série de sugestões para jornalistas que buscam se aprofundar no esporte.


Dicas gerais para investigar o futebol

  • Procure fontes oficiais em países menores. Essas fontes podem ter contatos globais profundos, mas geralmente menos camadas para serem acessadas. “Concentre-se em pequenas nações”, disse Molina. “Lembre-se de que o voto do Laos tem o mesmo peso da França ou da Inglaterra – e entre em contato com os jornalistas locais dessas nações que conhecem essas autoridades. Você encontrará algumas coisas surpreendentes que se conectam a grandes questões. Eles conhecem os peixes grandes; talvez um dia eles possam ser denunciantes, como Bonita (Mersiades)”.
  • Verifique as condições dos estádios, políticas de segurança e alterações nos orçamentos. “O enorme dinheiro no futebol pode ajudar com coisas como estádios inseguros e degradados – essa é uma área importante para investigação hoje”, explicou Conn. “Recentemente, em Paris, quase vimos outro desastre para os torcedores do Liverpool e outros, e vimos um desastre fatal em um estádio em Camarões – apenas este ano. Conversei com pessoas dizendo que a segurança dos estádios é um problema crescente. Os clubes estão roubando dinheiro das áreas de segurança?”
  • Atraia denunciantes publicando histórias iniciais e menores sobre irregularidades. Ecoando o mantra “histórias trazem histórias” de outro palestrante recente da GIJN – o repórter do Financial Times, Dan McCrum – Mersiades disse que as histórias publicadas inicialmente sobre práticas questionáveis são especialmente eficazes para desenterrar fontes internas na indústria do futebol. “Em 2016, publiquei uma história em meu próprio site para testar as águas, e ninguém me processou; ninguém disse que eu estava errado – e muitas pessoas me contataram e disseram: ‘Ah, você entendeu, e é isso que eu sei sobre esse assunto.’”
  • Comece com a declaração de missão do seu órgão de futebol local. “Estas são organizações sem fins lucrativos, e você encontrará em seus documentos fundadores uma declaração de nobre intenção: ‘Estamos aqui para promover este jogo maravilhoso para o bem de todos’”, disse Conn. “Há também um elemento central na cobertura do esporte que é apenas responsabilizar o esporte por suas próprias reivindicações”.
  • Investigue a distribuição cada vez mais desigual de dinheiro no futebol – incluindo ligas femininas e escolas do interior. “Esta é uma questão viva: para onde está indo o dinheiro?” perguntou Conn. “Por que algumas pessoas estão jogando em instalações terríveis, ou não têm acesso algum, quando há bilhões e bilhões de dólares em jogo em todo o mundo?”.
  • Fique atento aos padrões de abuso sexual e encobrimentos no esporte – e envolva-se com as vítimas individuais com sensibilidade. Considere guias como este.
  • Reexamine as evidências à vista de todos – como fotos e relatórios anuais. O futebol contém um enorme arquivo de imagens de elites de diversos setores interagindo – de oligarcas a financistas e presidentes – e Mersiades disse que olhar fotos a ajudou a reunir importantes linhas do tempo investigativas. E, simplesmente lendo os relatórios anuais, ela descobriu que um membro do conselho da federação estava recebendo um salário anual de US$ 600.000 como voluntário em um segundo conselho administrativo. “Ninguém se preocupou em olhar para isso antes, mas isso estava lá, totalmente público”, disse ela.

“É extremamente importante que, quando a Copa do Mundo começar no Catar, o primeiro apito não soe e o momento de cobrir todas essas questões sérias acabe e nos concentremos apenas no futebol”, disse Conn. “Porque então o Catar receberá os direitos de transmissão internacionais, que foi a razão pela qual eles se candidataram em primeiro lugar”.

Ele acrescentou: “Lembre-se de seguir seus instintos: se há algo que você sente que não está certo – mesmo que vá contra o que todo mundo está dizendo – você pode estar certo”.

 

Recursos adicionais

8 Lições de Investigações sobre as Olimpíadas

Reportando sobre Migração no Golfo: Um Guia GIJN

Dicas para Denunciar Tráfico de Pessoas e Trabalho Forçado

 

*Rowan Philp é repórter da GIJN. Rowan foi repórter-chefe do Sunday Times na África do Sul. Como correspondente estrangeiro, ele relatou sobre política, corrupção e conflitos em mais de duas dezenas de países ao redor do mundo.

Assinatura Abraji