Investigando estupros: o caminho para uma apuração impecável
  • 29.06
  • 2021
  • 12:30
  • Global Investigative Journalism Network (GIJN)

Formação

Investigando estupros: o caminho para uma apuração impecável

Texto originalmente publicado pela Global Investigative Journalism Network (GIJN).

O tema da violência sexual continua sendo delicado, se não tabu, em grande parte do mundo e frequentemente não é noticiado. O jornalismo de denúncia tem começado a investigar a fundo casos de violência sexual, mas essas investigações ainda são relativamente escassas, considerado o número estimado de casos mundiais. 

O guia a seguir é baseado em dicas e técnicas desenhadas durante o webinar Investigating Sexual Abuse (em português, Investigando o abuso sexual), realizado pela GIJN em nov.2020, e complementado por uma pesquisa do Centro de Recursos da GIJN que analisou casos relevantes, organizações úteis relacionadas e guias. O webinar apresentou, como palestrantes, Lénaïg Bredoux, editora de gênero da Mediapart; Sophia Huang, jornalista freelancer na China; Ashwaq Masoodi, jornalista freelance na Índia; e a moderadora Susanne Reber, produtora-executiva de podcasts na Scripps, empresa de mídia dos Estados Unidos.

Estudos de caso 

Confira agora uma seleção de histórias recentes sobre investigações de abuso ou violência sexual.

The French Journalists Behind Trail-Blazing Investigations into Sexual Violence (2020) ou, em português, Os jornalistas franceses responsáveis pelas investigações pioneiras sobre violência sexual. Marthe Rubio, editora francesa da GIJN, conversa com Lénaïg Bredoux e Marine Turchi sobre as metodologias e motivações por trás das investigações do site francês Mediapart sobre a violência sexual.

The Impact of #MeToo in France: An Interview with Lénaïg Bredoux (2019). Em tradução livre: O impacto do #MeToo na França: Uma entrevista com Lénaïg Bredoux. Em conversa com Aida Alami, para a New York Review of Books, Bredoux examina o seu trabalho na cobertura de alegações de má conduta sexual e a defesa do mesmo em tribunal.


Imagem: Screenshot

Verified (2020). Verificado, em português. O podcast investigativo com 10 episódios, da Investigative Reporting Network Italy (IRPI) e da empresa americana Stitcher, conta a história de um predador sexual que drogou e agrediu mulheres de férias na Itália. A RivistaStudio analisa o podcast no texto Lo Stupratore su Couchsurfing (O Estuprador no Couchsurfing, em tradução livre).

A #MeToo Awakening Stirs in Iran (2020) - Um despertar do #MeToo agita o Iran, em português. Acusações de má conduta sexual ao longo de 30 anos são apresentadas contra o artista iraniano Aydin Aghdashloo.

Rodney Edwards: How One Brave Man Walked into our Newspaper Office to Uncover Shocking Abuse Cases (2019) - Rodney Edwards: Como um homem corajoso entrou na redação para revelar chocantes casos de abusos, na tradução para o português. Edwards escreve sobre como ele e as vítimas de abuso infantil expuseram irregularidades em sua investigação premiada.

New York Times & New Yorker Series on Weinstein and Others (2018) - As séries do New York Times e New Yorker Series sobre Weinstein e outros. O Prêmio Pulitzer de Serviço Público foi dividido pelo The New York Times, pelas reportagens lideradas por Jodi Kantor e Megan Twohey, e pelo The New Yorker, pelas reportagens de Ronan Farrow, como reconhecimento de um jornalismo que expôs predadores sexuais poderosos e ricos.

"She Said" Recounts How Two Times Reporters Broke the Harvey Weinstein Story (2019). Em tradução livre, a reportagem “Ela disse” reconta como duas repórteres do Times deram o furo sobre Harvey Weinstein. 

Advice for Reporters Working with Survivors of Child Abuse (2019) - Conselhos para repórteres que trabalham com sobreviventes de abuso infantil. Dicas jornalísticas extraídas da Global Investigative Journalism Conference de 2019 (Conferência Global de Jornalismo Investigativo, no acrônimo em inglês GIJC 19) para conduzir investigações delicadas sobre abusos.

The Pathology of a Predator (2019) - em português, A patologia do predador. A série de quatro reportagens do site australiano Crikey denunciou a pedofilia na Igreja Católica por meio de entrevistas com padres, fiéis, seminaristas e vítimas. Suzanne Smith foi a autora de The Altar Boys (Os Rapazes do Altar, em tradução livre), um texto sobre pedofilia clerical, publicado em 2020.

Investigative Journalists Propel #MeToo Reporting at China’s Universities (2018) - ou, em português, Jornalistas investigativos impulsionaram a reportagem #MeToo em universidades da China. Três casos ocorridos nas principais universidades chinesas formaram a linha de frente da reportagem de Ying Chan, Siran Liang e Lizzy Huang, da GIJN, sobre o movimento #MeToo em território chinês.

How #MeToo China Inspired a User-Generated Model of Investigative Journalism (2018) - em tradução livre, Como o #MeToo China inspirou um modelo de jornalismo investigativo focado no conteúdo gerado pelo usuário. É a segunda de uma série de reportagens sobre a onda de matérias investigativas por trás do movimento #MeToo na China, por Ying Chan, para a GIJN. 

Belatedly, The Indianapolis Star Gets Its Due for Gymnastics Investigation (2018) - Tardiamente, The Indianapolis Star recebe o que merece pela investigação do caso da Ginástica. Essa peça explora os dois anos do projeto investigativo que levou à prisão do ex-médico da equipe nacional de ginástica dos Estados Unidos, acusado de molestar mais de 100 garotas, inclusive, atletas olímpicas.

What Happens When #MeToo Goes to Court (2018) - O que acontece quando o #MeToo acaba em julgamento. O jornalista Ashwaq Masoodi escreve sobre o longo caminho trilhado por vítimas de assédio sexual até a justiça, na Índia.

Politiken’s investigation of abuse of child actors in Danish film industry (2018) - Politiken investiga abuso de atores infantis na indústria cinematográfica dinamarquesa. 

Covering Sexual Assault: Reporting on rape and sexual assault challenges journalists to build trust with sources and avoid injecting bias into the story (2017) - em tradução livre, Cobrindo a agressão sexual: reportagens sobre estupro e agressão sexual desafiam os jornalistas a estabeleceram uma relação de confiança com as fontes e evitarem injetar preconceitos na história. No artigo do NiemanReports, Michael Blanding escreveu sobre a importância da cobertura das os casos de assédio sexual e sobre a melhor forma de fazê-la. 

No #MeToo in China? Female Journalists Face Sexual Harassment, but Remain Silent (2017) - Não há #MeToo na China? O silêncio das jornalistas diante do assédio sexual, em tradução livre. Um perfil da jornalista chinesa Sophia Huang Xueqin e as particularidades do assédio e abuso sexual na China.

Rolling Stone’s Investigation: "A Failure that was Avoidable" (2015) - em português, A investigação da Rolling Stone: "O erro que poderia ter sido evitado". A investigação conduzida pela Faculdade de Jornalismo da Columbia University sobre um estupro no campus que foi encerrada, devido a falhas em relatórios, na edição, na supervisão editorial e na verificação de fatos.

Bangladesh: Protests Erupt Over Rape Case (2020). Bangladesh: Protestos após caso de estupro, em português. Conforme o Human Rights Watch, estupradores raramente são incriminados em Bangladesh, que tem uma taxa de convicção por estupro menor do que 1%. Mulheres, frequentemente, confessam à imprensa que não se sentem confortáveis em formalizar a denúncia à polícia.

Sexual Violence: Uganda Police Should Support Victims, Not Blame Them (2020) - ou, em português, Violência sexual: A polícia de Uganda deve apoiar as vítimas, em vez de culpá-las. Em texto do Human Rights Watch.

Finding the Courage to Cover Sexual Violence (2014) - Encontrando coragem para cobrir a violência sexual, em português. Frank Smyth, da organização nova-iorquina Committee to Protect Journalists (Comitê para a Proteção de Jornalistas) revisa as estratégias e as repercussões na cobertura de assédio sexual.

Investigating Rape: An Examination of How the Police and Prosecutors Approach Rape Allegations (2014) - Investigando Estupros: Uma análise de como polícia e procuradores abordam as alegações de estupro, em português. As investigações da iniciativa britânica Bureau of Investigative Journalism incluem estudo de casos e relatórios de comitês independentes.

Catholic Church Abuses (2003) - em tradução livre: Abusos na Igreja Católica. O jornal The Boston Globe ganhou o Prêmio Pulitzer, na categoria Serviço Público, pela ampla cobertura do abuso sexual cometido por padres da Igreja Católica Romana (dramatiza pelo filme Spotlight). O Dart Center - Centro de recursos e estudos para jornalistas que cobrem violência, conflitos e tragédias em todo o mundo - conversou com a equipe envolvida em Spotlight, em 2016, sobre como foi criada a reportagem. Veja as oito lições de David E. Kaplan, da GIJN, sobre o jornalismo investigativo de Spotlight.

Organizações e Guias Úteis 


Image: Ra Dragon/Unsplash

O Dart Center for Journalism & Trauma: Reporting on Sexual Violence tem muitas fontes para a cobertura de violência sexual, incluindo rápidas dicas para cobertura (inclusive em Árabe) e como manter o limite entre fontes e colegas.

A Fundación Gabo, criada pelo jornalista colombiano Gabriel García Márquez para incentivar o jornalismo de excelência, traduziu para o Espanhol a lista de dicas do Dart Center para jornalistas que estejam cobrindo casos de estupro. A IJnet Español fez o mesmo.

Organização em prol da imprensa independente no Reino Unido, a Independent Press Standards Organisation (IPSO) estabelece as leis e orienta repórteres investigando casos de violência sexual. 

A Angles, também sediada no Reino Unido e que trabalha para gerar mais conscientização a respeito da violência ou abuso sexual e doméstico, oferece recursos, estatísticas, diretrizes de denúncia e contatos úteis para jornalistas.

A Comissão Africana de Direitos Humanos (African Comission on Human and Peoples’ Rights) foi criada fora dos países da África para enfrentar questões relativas aos direitos humanos, principalmente relacionadas à violência sexual. Leia aqui o manual elaborado pela Comissão para combater à violência sexual e suas consequências em toda a África.

O Africa’s Institute of Security Studies (Instituto para Estudos de Segurança na África, em tradução livre) divulga recursos para todo o continente, incluindo um resumo da política de violência sexual na África do Sul.

Safe Spaces (Espaços Seguros, em português) luta para ser um hub sul-africano de informações-chaves sobre recursos, boas práticas e divulgação de eventos que englobam todos os aspectos relacionados à segurança, bem como a prevenção de crimes e da violência, inclusive sexual.

O portal de notícias humanitárias ReliefWeb, do Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha, na sigla em inglês), produziu um manual para jornalistas que denunciam a violência contra mulheres e meninas.

A Sexual Violence Research Initiative (SVRI) é uma rede global de pesquisa sobre violência contra mulheres e crianças. 

A organização não governamental norte-americana National Sexual Violence Resource Center (NSVRC) trabalha para promover, na imprensa, denúncias de violência sexual.

Sediada nos Estados Unidos, a Rape, Abuse & Incest National Network (RAINN) é a maior organização de combate à violência sexual no país. E produz guias e manuais como o Dicas para Entrevistar Sobreviventes (em inglês, Tips for Interviewing Survivors), voltado para jornalistas, e um glossário com os principais termos e palavras.

A Promotoria e Investigação de Violência Sexual do Human Rights Center, na Faculdade de Direito de Berkeley, University of California, expõe as dificuldades que surgem na investigação de violência sexual.

Reporting on Rape & Sexual Violence: A Media Toolkit to Better Media Coverage (em tradução livre, Reportagens sobre estupro e violência sexual: um kit de ferramentas midiáticas para melhorar a cobertura jornalística), elaborado pela Força-Tarefa de Chicago para combater a violência contra meninas e jovens mulheres, inclui exemplos de boas e más reportagens sobre violência sexual, junto a dicas e notas sobre como entender as estatísticas.

Mesmo que os manuais a seguir tenham sido escritos para a imprensa norte-americana, elucidam uma série de dúvidas e processos: Denunciando Agressões Sexuais: Um Guia para Jornalistas, da Coalizão de Michigan para o Fim das Violências Doméstica e Sexual, e o Denúncia de Violência Sexual: Um Guia para Jornalistas, da Coalizão de Minnesota contra Agressão Sexual.

Dicas para denunciar

Pesquise leis e estatísticas 

Pesquise as condições locais e entenda o cenário cultural.

  • Reúna estatísticas para a sua região; encontre dados sobre a prevalência de violência sexual.
  • Reconheça que, segundo as estatísticas, a maioria das vítimas não denuncia agressões sexuais às autoridades legais.
  • Qual porcentagem foi denunciada à polícia? Qual não foi?
  • Quantos casos foram julgados? Quantos resultaram em condenação ou absolvição?
  • Compreenda as mais relevantes leis, regulações e definições de termos mais comuns.
  • Encontre especialistas, grupos ou organizações que ajudem a deixar a sua história mais consistente e a prover diferentes perspectivas. 

Encontre histórias

Na sessão de Investigação de Assédio Sexual na Conferência Global de Jornalismo Investigativo de 2019 (no original, 2019 Global Investigative Journalism Conference), Pascale Mueller, do BuzzFeed News Alemanha, listou as seguintes maneiras de encontrar histórias:

  • Dicas de fontes anônimas (via Signal ou SecureDrop);
  • Dicas de pesquisadores/sindicalistas;
  • Dicas dos próprios sobreviventes ou de testemunhas;
  • Entre em grupos específicos nas redes sociais e faça perguntas;
  • Mantenha informações de contato públicas, fáceis e seguras para as pessoas lhe encontrarem;
  • Procure e entre em contato com a comunidade que deseja cobrir.

Estabeleça uma relação de confiança 

Seja claro com os sobreviventes sobre o seu processo de trabalho e explique cada etapa.

  • Avise-os que o processo será longo e difícil e que a sua função é corroborar as informações.
  • Reconheça o risco que correm ao decidirem falar.
  • Explique a duração do processo, como você trabalha e como coleta evidências.
  • Entenda que o processo envolve um consentimento contínuo e que é um relacionamento, não uma transação.
  • Sobreviventes podem ter sido privados do próprio poder de ação; portanto, deixe-os decidir como se comunicar, onde se encontrar, quando falar e por quanto tempo.
  • Marine Turchi observa que há “um tempo para ouvir e um tempo para verificar os fatos”.

Reúna evidências

Não é apenas uma questão de “disse-me-disse”. Frequentemente, é possível reunir evidências tangíveis. Portanto, quando for informado de que "não há provas", procure pelo conjunto de evidências:

  • Documentos dos sobreviventes, mensagens de texto, emails, conteúdo de redes sociais, diários, cartas e fotos para provar que eram conhecidos;
  • Documentos da família, de amigos e colegas da vítima e do acusado;
  • Outras vítimas ou testemunhas, contas pessoais;
  • Vítimas podem ter apagado mensagens que enviaram ao autor do crime, mas frequentemente falariam com outras pessoas sobre o assunto;
  • Registros financeiro ou legal, como ações disciplinares, testemunhos, ações judiciais. Estes documentos podem revelar quem mais esteve envolvido no caso, quem mais sabia;
  • Verifique datas e locais para construir uma linha do tempo.

Identifique padrões

O abuso sexual tem a ver com poder e dominação.

  • As histórias são mais fortes quando envolvem múltiplas vítimas por, assim, revelarem um padrão.
  • Diferentes testemunhas podem ter falado com o perpetrador e podem informar se usou linguagem ou comportamento sexista, revelando padrões de conduta.
  • Compreenda os desequilíbrios relacionados a gênero, classe social e hierarquias.
  • Procure instituições acusadas de cumplicidade, mas não revele tudo o que sabe nem dê pistas sobre as suas fontes.

Use uma linguagem precisa 

Escolha cuidadosamente palavras e frases. Definições importam. Estupro é violência, nunca “sexo”.

  • Permita que os sobreviventes escolham as palavras que melhor se encaixam em seus casos (por exemplo, “sobrevivente” ou “vítima”).
  • Evite fazer aos sobreviventes perguntas do tipo “por quê?”, que implicam que eles foram, de alguma forma, responsáveis.
  • Questione falhas institucionais, não a vítima. Pergunte “O que o impede de ir à polícia?”, em vez de “Por que você não foi à polícia?”.

Reconheça a sua responsabilidade

Relatar histórias de agressão sexual exige uma combinação de compaixão, estômago forte, empatia, sensibilidade, respeito e consciência. Jornalistas relatam histórias que eram privadas, mas se tornaram questões públicas.

  • Respeite os sobreviventes, e o direito que têm de dizer não e de fazerem as próprias escolhas.
  • Equilibre constantemente empatia com fatos.
  • Após a publicação da história, mantenha contato com o sobrevivente. 
  • Com a história publicada, os sobreviventes podem encontrar consolo em outros ou em grupos de apoio.


Tradução: Raquel Lima

Foto de capa: Shamia Casiano/Pexels

Assinatura Abraji