PF mudou três vezes delegados responsáveis pela investigação das mortes de Bruno e Dom
  • 01.06
  • 2023
  • 09:00
  • Sérgio Ramalho (Atalaia do Norte), Imagens: Marcos Tristão (Atalaia do Norte), Caê Vatiero (São Paulo) e Angelina Nunes (Rio de Janeiro)

Liberdade de expressão

PF mudou três vezes delegados responsáveis pela investigação das mortes de Bruno e Dom

É de uma sala na Unidade de Repressão a Homicídios, na Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal, no Edifício MultiBrasil Corporate, em Brasília, a 2.281 quilômetros de distância de Atalaia do Norte (AM), que o delegado Francisco Badenes Júnior trabalha no inquérito que apura os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips. Em um ano, a investigação passou pelas mãos de três delegados, sem avançar na identificação e, sobretudo, no indiciamento de um mandante das execuções.

O delegado Badenes Júnior também atua à distância no inquérito relacionado ao assassinato de Maxciel Pereira dos Santos, ocorrido em 6.set.2019. Max, como era conhecido, trabalhou com o indigenista Bruno Pereira na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Ambos se tornaram conhecidos no Vale do Javari pela implacável fiscalização contra as expedições predatórias no território demarcado. Assim como o indigenista, Max foi assassinado depois de ter sido afastado da Funai durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).

Max foi executado com dois tiros de pistola na cabeça na frente da mulher e da enteada, em Tabatinga, cidade brasileira que faz fronteira com Letícia, na Colômbia, e Santa Rosa, no Peru. Dois dias antes do crime, ele havia comandado a apreensão de uma embarcação carregada com peixes e animais capturados ilegalmente na TI Vale do Javari. Apesar do sucesso da operação, Max foi afastado do Serviço de Gestão Ambiental e Territorial da Coordenação Regional do Vale do Javari, da Funai, onde atuou por cinco anos. O assassino de Maxciel dos Santos segue impune.

O caso do ex-funcionário da Funai voltou a ser investigado pela PF após as execuções de Dom Phillips e Bruno Pereira, em 5.jun.2022. A decisão de reabrir o inquérito foi tomada diante das evidências do suposto envolvimento de uma organização criminosa nas três mortes. Em out.2022, o corpo de Maxciel foi exumado e levado a Brasília, onde foi submetido a novas análises. As investigações seguem sob sigilo, mas sem resultados efetivos.


Agentes da PF apreendem canoas usadas para ocultar corpos de Dom e Bruno | Crédito: Pedro Prado

Três delegados em dez meses 
             
Badenes Júnior é o terceiro delegado designado pela direção da Polícia Federal para coordenar as investigações relacionadas às mortes do jornalista inglês e do indigenista. Nos primeiros dias após o crime, a Superintendência da PF de Manaus (AM) enviou o delegado Domingos Sávio a Atalaia do Norte. É no município de pouco mais de 18 mil habitantes, às margens do Rio Javari, que se concentra a maior parte do território demarcado que compõe a TI Vale do Javari.

Domingos Sávio assumiu a investigação, inicialmente conduzida pelo delegado Alex Perez, da Polícia Civil do Amazonas, em Atalaia do Norte. Nesse período, o trabalho conjunto, que contou com a participação da equipe de vigilância da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), levou à prisão de Amarildo da Costa de Oliveira, o Pelado. As suspeitas recaíram sobre o pescador devido ao seu histórico de invasões à Terra Indígena. Pelado também já havia feito ameaças de morte ao indigenista Bruno Pereira.

A partir da prisão de Pelado, os policiais chegaram a Jefferson da Silva Lima, o Pelado da Dinha, e a Oseney da Costa de Oliveira, o irmão de Amarildo, conhecido como Dos Santos. As investigações prosseguiram com a descoberta dos despojos de Bruno e Dom, enterrados numa área de mata fechada a pouco mais de um quilômetro da margem do rio Itacoaí, numa área próxima à casa de Oseney.

Após falhas na condução do inquérito envolvendo os três suspeitos, os desembargadores da 4ª Turma do TRF-1, em Manaus, decidiram retornar o processo à fase de instrução, em 16.mai.2023. Apesar de os procuradores terem oferecido a denúncia, a investigação não foi concluída. O inquérito original foi desmembrado em duas partes: uma destinada à identificação de outros envolvidos nos assassinatos de Dom, Bruno e Maxciel, que teve o nome incluído nessa nova fase.

Um segundo inquérito foi aberto para investigar a organização criminosa envolvida nas invasões para caça e pesca predatórias dentro da TI Vale do Javari. A partir do desmembramento, pouco mais de um mês depois das execuções de Bruno e Dom, os dois inquéritos passaram a ser de responsabilidade do delegado Lawrence Guimarães Cunha, que atuava no Amazonas — parte na PF de Tabatinga e outra na Superintendência em Manaus, que fica a 1.136 quilômetros.

O delegado Lawrence Cunha acabou transferido no fim de mar.2023 para uma unidade da PF na região Sul. Antes, relatou o inquérito sobre a organização criminosa que tem como suposto financiador Rubens Dário da Silva Villar, o Colômbia, que está preso e é suspeito de chefiar uma quadrilha transnacional envolvida no tráfico de drogas na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia.


Colômbia - Foto: divulgação; Amarildo Pelado - Foto/crédito: TV Globo

Às vésperas de completar dez meses dos assassinatos de Bruno e Dom, os inquéritos mudaram novamente de mãos, passando para o delegado Badenes Júnior, que despacha de sua sala a milhares de quilômetros de Atalaia do Norte, onde os crimes aconteceram. As constantes mudanças na condução das investigações só fizeram aumentar a descrença entre ativistas e indígenas do Vale do Javari sobre o desfecho do trabalho.

“No início, quando o delegado responsável pela investigação estava na região, falava-se em chegar ao mandante ou mandantes. A gente ouve que há políticos que mantinham relações com Amarildo Pelado e outros invasores da Terra Indígena, alguns lucram com esse comércio ilegal de animais, madeira e peixes extraídos clandestinamente do território demarcado”, relatou um ativista ao Programa Tim Lopes, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).

Amigo de Bruno Pereira e colaborador em várias das investigações conduzidas pelo indigenista desde os tempos de Funai e na Univaja, onde Pereira passou a atuar após ter sido exonerado do cargo no governo de Jair Bolsonaro, o ativista teme que as investigações da PF se limitem às prisões de Pelado, Pelado da Dinha e dos Santos. Os três suspeitos detidos logo no primeiro mês de trabalho.

“Pelado já não morava em São Gabriel. Por aqui todos sabiam da ligação dele com o Colômbia, tanto que ele se mudou com a mulher para Benjamin Constant. Ele era o elo do esquema com os ribeirinhos de São Gabriel e São Rafael, mas mantinha ligações com políticos de Atalaia do Norte. Basta ver que alguns parentes dele, envolvidos nas invasões predatórias, estavam nomeados no município”.

O ativista, não foi identificado por questões de segurança, esteve com a equipe de reportagem do Programa Tim Lopes nas duas vezes em que os jornalistas foram a Atalaia do Norte para acompanhar os desdobramentos em um ano de investigação. A equipe da Abraji retornou ao município em mar.2023. Nesse período, o coordenador da Unijava, Bushe Matis, afirmou que as invasões predatórias à TI continuavam acontecendo, mas em menor quantidade.

“Ainda mais agora, que a Polícia Federal enviou um barco de grande porte para ficar no porto. Lá no entroncamento entre os rios Javari e Itacoaí, no caminho para o território demarcado, o Exército está mantendo uma embarcação. Isso inibe a ação dos predadores”, afirmou Matis.


Embarcação do exército | Crédito: Marcos Tristão

A presença dos policiais e dos militares contribuiu para o aumento da sensação de segurança, especialmente entre os indígenas que vivem em Atalaia do Norte, mas não representa o fim das ações predatórias na TI — conforme a Abraji mostrou em reportagem publicada em 4.abr.2023, quando a equipe flagrou dois barcos carregados com tábuas de madeira nobre escondidos em meio à vegetação. 

Em geral, os envolvidos nas expedições predatórias conhecem bem a região e se utilizam dos furos, como ribeirinhos e indígenas se referem aos trechos de mata alagados nas cheias do rio, para driblar a fiscalização. No mesmo mês, agentes da PF orientados pela equipe de vigilância da Univaja encontraram e apreenderam parte das embarcações com madeira extraída da TI.

Horas após a apreensão, homens armados invadiram a TI e ameaçaram indígenas das etnias Kanamari e Marubo. Uma equipe da PF foi ao local, mas não conseguiu prender os agressores. A informação foi confirmada à Abraji em entrevista com a delegada Daniela Aparecida Martins Vales, que estava de plantão na embarcação Nova Era. Segundo Vales, as equipes da PF se revezam em escalas de serviço de 12 a 15 dias na região.

Bruno preparava equipe da Univaja para identificar biopirataria na TI

Assim que começou a trabalhar diretamente com a Univaja, após ter sido afastado da Funai, Bruno Pereira passou a treinar equipes de vigilância compostas por indígenas do Vale do Javari para mapear e georreferenciar a atuação dos invasores no território demarcado. O indigenista estava preocupado com a ação de biopiratas, que geralmente não despertam tanto a atenção quanto os envolvidos nas ações predatórias de caça, pesca e extração de ouro ou madeira.

Como a Abraji mostrou em reportagem em 28.jun.2022, o indigenista tinha o hábito de fazer investigações paralelas ao trabalho que desenvolvia na Funai, como o mapeamento dos comerciantes de Atalaia do Norte envolvidos em um esquema de retenção de cartões bancários e de benefícios sociais de indígenas. Antes de ser executado, Bruno estava apurando a suposta ligação de invasores da TI Vale do Javari dentro da administração municipal.

O indigenista empregava ferramentas tecnológicas na elaboração dos mapeamentos, usando na maioria das vezes o próprio telefone celular para georreferenciar pontos de interesse. Essas técnicas vinham sendo repassadas a indígenas das equipes de vigilância da Univaja. Dessa maneira, Bruno planejava transformar os integrantes do grupo em multiplicadores. 

Seu objetivo era determinar com maior precisão os locais de atuação dos invasores da TI, apontando em cada área registrada o tipo de atividade ilegal em andamento. Foi com essa técnica que o indigenista mapeou com exatidão dezenas de balsas de extração de ouro no rio Jandiatuba, afluente do Amazonas. O trabalho resultou em uma megaoperação de combate ao garimpo ilegal, desencadeada uma semana após a execução de seu amigo Maxciel dos Santos.

A Operação Korubo levou à destruição de 60 balsas usadas no garimpo clandestino, causando um prejuízo de milhões de reais aos financiadores da atividade predatória. Quinze dias depois, Bruno Pereira foi exonerado dos quadros da Funai pelo então secretário-executivo do Ministério da Justiça, Luiz Pontel, apontado em reportagem do UOL como homem de confiança do então ministro Sergio Moro. 

Um trecho da reportagem foi usado pelos advogados dos assassinos confessos de Bruno e Dom para justificar a convocação de Sergio Moro como testemunha de defesa dos réus, como mostra a página 14 da Questão de Ordem apresentada à Justiça Federal de Tabatinga. No mesmo documento, os advogados solicitam a inclusão do ex-presidente Jair Bolsonaro no rol de testemunhas de defesa. A Justiça indeferiu os pedidos.

Secretário Nacional de Justiça admite que mudança de delegados interfere
             
Em entrevista ao Programa Tim Lopes, da Abraji, o secretário Nacional de Justiça, Augusto de Arruda Botelho, disse que a mudança de delegados na condução de um inquérito pode interferir no andamento das investigações. “Num mundo ideal, você deve permanecer sempre com a mesma autoridade presidindo a investigação para que ela possa seguir uma mesma linha”, afirma.

Já em relação ao fato de o terceiro delegado designado para presidir os inquéritos das mortes de Dom Phillips, Bruno Pereira e Maxciel dos Santos estar a mais de 2 mil quilômetros dos locais dos crimes, Botelho disse que a distância não necessariamente interfere no caso. “Com as formas atuais de comunicação virtual, colheita de depoimentos e de outras diligências que não precisam ser feitas in loco, não necessariamente a distância traz algum prejuízo para a investigação”, aponta.

O secretário Nacional se referia ao uso da internet. Contudo, em Atalaia do Norte, a transmissão de dados pelas redes é extremamente instável — como afirmou a própria delegada entrevistada pela Abraji. Um exemplo da dificuldade de comunicação foi o cancelamento dos depoimentos de testemunhas no Tribunal de Tabatinga, que deveria ter acontecido em mar.2023. 

*A Abraji integrou uma investigação internacional colaborativa chamada Bruno and Dom Project, coordenada pelo Forbidden Stories que contou com mais de 50 jornalistas de dez países.                
 


  

Assinatura Abraji