Veja como o jornalismo utilizou técnicas forenses no recente desastre aéreo do Irã
  • 20.01
  • 2020
  • 12:00
  • Redação

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Veja como o jornalismo utilizou técnicas forenses no recente desastre aéreo do Irã

Os recentes ataques e controvérsias diplomáticas entre Estados Unidos e Irã tiveram um momento de comoção e mistério quando o voo 752 da Ukraine International Airlines caiu em solo iraniano, em 8.jan.2020. Os 176 passageiros morreram e uma onda acusações teve início. Quem teria sido o responsável de fato pelo trágico acidente?

Este caso foi solucionado com investigações de diversos jornalistas, entre elas as da equipe de Visual Investigations do New York Times. No texto abaixo, traduzido*, Amanda Darrach, do Columbia Journalism Reviewentrevistou Malachy Browne, produtor sênior de histórias da equipe de Visual Investigations. Ele detalha as técnicas de investigação forenses aplicadas ao jornalismo que possibilitaram checar e confirmar o teor das imagens relacionadas ao acidente. Esta foi uma dica do Farol Jornalismo.


Confira a versão traduzida do texto, publicado originalmente no Columbia Journalism Review:

Em 8 de janeiro, o voo 752 da Ukraine International Airlines pegou fogo no céu acima de Teerã. Todas as 176 pessoas a bordo do voo morreram no incidente, cuja causa não era conhecida imediatamente. No dia seguinte, o New York Times publicou um videoclipe de 20 segundos que mostrava que a explosão foi causada por um míssil iraniano. O vídeo refutou declarações de autoridades iranianas de que tal causa era "cientificamente impossível".

"Soubemos pela primeira vez que era um míssil que derrubou um avião ucraniano sobre o Irã por causa deste vídeo mostrando o momento do impacto", explicou um funcionário do Times em uma cobertura subsequente.

Na noite de terça-feira, a equipe do Times atualizou seus relatórios com base em novas evidências em vídeo, das quais concluíram que dois mísseis haviam sido disparados no avião.

A verificação do vídeo ficou a cargo de uma equipe de repórteres do Times que incluía Malachy Browne, um produtor sênior de histórias da equipe de Visual Investigations. Browne aplica técnicas de investigação à evidência visual, a fim de apresentar o que sua equipe chama de "uma explicação definitiva das notícias".

Reportagem anterior da equipe de Browne — que atualmente inclui seis repórteres e especialistas em edição de vídeo e motion graphics usados para manipular imagens — revelou os esforços da Síria e da Rússia para desencadear o ataque com armas químicas em abril de 2017 em Khan Shaykhun e envolveu agentes de segurança que trabalhavam para o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, em um ataque em maio de 2017 a manifestantes em Washington, DC, entre outras histórias.

Browne conversou com a CJR sobre como sua equipe obteve e verificou o vídeo do ataque com mísseis contra o voo 752. A conversa foi editada para melhor duração e clareza.

CJR: Como você obteve o vídeo do míssil?

Malachy Browne: Existem vários canais do Telegram que foram criados para tentar descobrir o que estava acontecendo. É basicamente como um grupo do WhatsApp: as pessoas podem participar para compartilhar informações. Na verdade, isso estava em um dos canais de Parand, que é a cidade perto do aeroporto de Teerã, onde o avião perdeu o sinal. E pessoas no Twitter e no Telegram relataram ter ouvido uma forte explosão perto de Parand. Christiaan Triebert, que senta duas mesas distante de mim, viu esse vídeo aparecer. Passou um dia e meio depois que o avião foi abatido e pretendia mostrar um míssil atingindo o avião. Você pensa em descartar, mas conseguimos encontrar a pessoa que postou isso. Foi filmado por outra pessoa, e verificamos com ele.

Havia também fotos circulando nas mídias sociais, não verificadas, de restos de foguetes que, segundo as pessoas, foram encontrados no Parand. Não seguimos nesta linha porque não pudemos verificar. Não conseguimos encontrar onde essas fotografias foram tiradas. E a fonte parecia um pouco desonesta.

Como você verificou o vídeo?

Já tínhamos coletado muitos vídeos. Tínhamos mapeado onde o avião caiu, onde estavam os destroços, tudo no Google Earth. Conseguimos a trajetória de voo, sua altitude e todo o resto do FlightRadar24. Estávamos mapeando possíveis locais de lançamento de mísseis na área.

Para a localização geográfica: no vídeo, você pode ver uma pessoa ao lado do que parece uma pequena cabana. E há uma pequena torre de metal com uma espécie de seção transversal, quase como uma escada, com uma luz no topo. Parece uma luz de segurança iluminando a área. E há fileiras muito distintas de edifícios que são todos idênticos à distância. Foi a sombra daquele poste que a denunciou. Não era possível ver o poste de luz nas imagens de satélite, mas a sombra ao lado daquela pequena cabana e os edifícios à distância. Assim, pudemos verificar rapidamente que o vídeo foi gravado no Parand. E somos capazes de identificar o canto em que a câmera foi localizada rapidamente, em poucos minutos.

Não apenas foi filmado lá, mas podemos também ver que o avião está voando da direita da tela, para a esquerda, e coincidindo com o caminho do avião, basicamente.

Mas, como esse era um problema tão grave, ainda queríamos ver se havia alguma maneira de ser falsificado. Nossos editores de vídeo analisaram e diminuímos a velocidade da imagem. Fomos quadro a quadro através dele. Também observamos o brilho do míssil e o momento da explosão para ver se tudo isso resistia.

Além disso, havia o som. Houve um atraso de ver a explosão e o som atingir a câmera. Sabíamos a altitude aproximada em que o avião estava voando a partir das informações do voo. Sabíamos a localização da trajetória de voo. Assim, conseguimos calcular a distância e a altitude — e, portanto, a hipotenusa entre eles e a câmera — e calcular quanto tempo o som de uma explosão levaria para percorrer essa distância. E foi aproximadamente o que estávamos vendo e ouvindo no vídeo, cerca de 10 ou 10,5 segundos.

Que outras ferramentas um repórter investigativo visual usa?

Muito disso se resume ao cultivo tradicional de fontes. Nossa equipe vem realizando uma série de investigações sobre a Síria, sobre bombardeios de hospitais e outros locais civis na Síria, principalmente por pilotos russos. Temos milhares de gravações de pilotos e elas são codificadas em relação ao tempo. Ao fazer tipos semelhantes de geolocalização, localização temporal, estabelecendo o minuto em que ocorreu um ataque ou um vídeo foi gravado, podemos ver o que os pilotos estão fazendo nos céus naquele momento. Em um conflito em que é muito difícil atribuir a culpa por ataques específicos, podemos dizer definitivamente que esse piloto, neste minuto, bombardeou o hospital. Às vezes, eles estão até compartilhando as coordenadas dos hospitais.

Publicamos em junho uma investigação sobre um ataque aéreo em uma casa de família na região talibã do Afeganistão. Esse pobre coitado estava trabalhando fora no campo e recebeu uma ligação de sua esposa de que havia um ataque. E ele diz: “Ok, estou voltando para casa agora”. Ele chega lá e sua família está morta e enterrada. Os EUA estão negando que realizaram, e os afegãos também.

Trabalhamos com o Bureau of Investigative Journalism em Londres para obter fontes na vila que filmaram as consequências do ataque. Meus colegas Christiaan Triebert e John Ismay analisaram os restos de armas que estavam lá. Por meio de nossos correspondentes em Washington e do escritório de Cabul, conseguimos identificar que essa era uma arma usada apenas pela Força Aérea Americana no Afeganistão.

É apenas um exemplo de fazer as forças armadas dos EUA admitir que haviam realizado esse ataque aéreo. Eles não admitiram baixas civis.

Esse tipo de reportagem é possível para um repórter freelancer que não está ligado a um meio de comunicação como o Times?

Sim, é. Há um coletivo fantástico chamado Bellingcat, e são essencialmente investigadores independentes que fazem investigações on-line e de código aberto, assim como nós. Um de nossa equipe, Christiaan Triebert, trabalhou no Bellingcat antes de se juntar a nós. Também tem o Storyful, onde eu trabalhava.

Existem outros grupos como o Centro de Direitos Humanos da UC Berkeley. Eles têm muitos alunos que realizam trabalhos de investigação semelhantes ou de código aberto usando imagens de satélite, imagens encontradas, análise de armas e assim por diante. E há uma comunidade on-line realmente forte de pessoas que compartilham habilidades e informações. Muitos deles tendem a gravitar em direção a denúncias de conflitos.

 

(*) Tradução por Reinaldo Chaves.

Foto: Iranian Red Cross/Fotos Públicas.

Assinatura Abraji