• 18.02
  • 2005
  • 17:27
  • MarceloSoares

Vandeck Santiago fala sobre a apuração do livro "Francisco Julião, as Ligas e o Golpe de 64"

VANDECK SANTIAGO

O DIARIO DE PERNAMBUCO me liberou por 45 dias para que eu preparasse o caderno. A base foi um perfil biográfico que eu escrevera do Julião, em 2001 (circulação local; esgotado). Tive acesso aos discursos dele como deputado estadual e a cartas que enviou para familiares. Falei com filhos, com as mulheres (ele foi casado com três; a última é uma mexicana, Marta Rosas, que mora ainda no México), com pessoas que o conheceram pessoalmente e com políticos contemporâneos dele.

Li também as cartilhas que ele escreveu para os camponeses (numa delas, veja só, ele orienta o pessoal a deixar "a foice amolada atrás da porta" para lutar quando fosse preciso...) e os seus livros (um deles, Cambão, nunca publicado no Brasil). Consegui reunir também praticamente todos os livros que se escreveram sobre ele no Brasil (anote aí: nenhum personagem daquela época foi objeto de tantos livros quanto ele) e alguns no exterior.

Consultei também duas longas entrevistas inéditas dadas por ele: uma a Aspásia Camargo (acervo do CPDOC), no México, ele ainda como exilado, e outra à Fundação Joaquim Nabuco, daqui do Recife. Além disso, saí à procura dos personagens que participaram da movimentação daquela época. Entrevistei o Stédile, o Moniz Bandeira, um brazilianista americano que estuda as coisas daqui (Anthony Pereira) e, para não dizer que não falei das flores, o sujeito que foi carcereiro de Julião - uma figura, um capitão alagoano que foi amigo de um monte de gente de esquerda (como o Valdimir Palmeira). A maior parte das entrevistas fiz pessoalmente; outras por e-mail (como a do brazilianista) e outras por telefone (como a da última mulher dele, no México).

O livro é tudo que eu gostaria de ter tido em 10 de julho de 1999, quando Julião morreu, no México: eu estava de plantão na sucursal do Estadão e foi uma dificuldade para juntar os dados biográficos dele e compor a matéria (sofrível, aliás).

Creio que o livro serve pelo menos para ajustar as informações sobre ele. Quase nada se publicou sobre Julião, nos últimos 40 anos. E o que sai, muitas vezes tem incorreções. Dou dois exemplos (citados de cabeça), e não se trata aqui do poeta menor apontando o dedo para o poeta estadual enquanto o poeta federal coça o nariz, mas o negócio é o seguinte: na série de Elio Gaspari sobre o regime militar (primeiro volume), conta-se uma história de que Julião, durante viagem a Moscou, pedira armas a um integrantes do governo soviético. Gaspari não diz o ano (foi 1957). Esta informação aparece dada pelo próprio burocrata soviético, em livro de Geneton.

O problema: Julião sempre negou isso e não há nenhuma evidência além das palavras do soviético. E mais: em 57 as Ligas estavam engatinhando (surgiram em 1955), não tinha havido ainda a Revolução cubana e o foquismo nem existia. Como diabos Julião iria pedir armas aos soviéticos? Ou seja, é a palavra de um contra o outro, mas a perspectiva histórica contra a versão do soviético. O problema, repito, é que o livro de Gaspari não cita o ano - e aí o suposto pedido torna-se bem mais verossímil.

Outra informação, do mesmo teor: no livro do Percival de Souza (sobre o Fleury) diz-se que Julião foi preso na Câmara, em 9 de abril de 64. Foi Não. Dos principais líderes de esquerda daquela época, Julião foi o único que caiu na clandestinidade e tentou organizar a resistência. Ele foi preso em 3 de junho, na zona rural de Goías, onde vivia dizendo-se pastor protestante.
Agora, pelo amor de Deus (o resto vai em maiúscula para destacar o quanto esta ressalva é importante), ESTES REPAROS NÃO DESMERECEM NENHUMA DAS DUAS OBRAS CITADAS. SÃO NADA MAIS NADA MENOS DO QUE ISTO: REPAROS.

Entre o material inédito há uma lista com as matérias que o The New York Times publicou sobre Pernambuco e o Nordeste, na época. Larry Rohter? Que nada. Era o Tad Szulc quem estava por aqui. Uma matéria dele ganhou primeira página do NYT, dizendo: "Marxistas estão organizando os camponeses em Pernambuco". Hoje sai uma matéria no NYT falando de temas, digamos, mundanos e é aquele alvoroço. Imagine, no início da década de 60, matérias falando de comunistas agitando os canaviais do Brasil... A cobertura do NYT mexeu até com o John Kennedy: ele enviou aqui o irmão Edward, para ver as coisas, e também o Arthur Schlesinger (o próprio. O relato deste de suas andanças em Pernambuco aparece no célebre "Mil Dias").

Tem ainda uma série de entrevistas. Uma com o Stédile, contando que conheceu Julião no México, em 1976. Na época, Stédile ainda não era o Stédile, era só um bolsista em terras mexicanas; e, claro, também não havia MST. Conversaram um tempão,com base em duas perguntas feitas pelo Stédile a Julião: o que dera certo e o que dera errado nas Ligas. Outra entrevista é com a primeira mulher de Julião, Alexina Crespo, que participou do setor das Ligas que aderiu à Luta Armada. Ela diz, entre outras coisas, que ainda há armas enterradas no Rio de Janeiro. Onde? Aí talvez a gente só saiba numa próxima reportagem...

Outro tema, de alcance nacional: um dos filhos de Julião, Anatólio, conta que foi convidado por Marighella (em Cuba, 1967) para liderar a implantação da guerrilha no campo. O sobrenome Julião ajudaria no trabalho, disse Marighella a Anatólio.

E outra, para encerrar, que eu sei que vocês têm coisas mais importante para tratar: lembra aquele (excelente) documentário "Cabra Marcado pra morrer?", de 1984? Pois bem, Fui atrás de Elizabeth Teixeira, e de um dos filhos dela (que no filme ainda está estudando Medicina, em Cuba; hoje é médico numa cidadezinha cearense) e descobri que houve uma nova tragédia na família. É como se fosse um "Cabra Marcado", parte II, ainda mais pungente: depois do documentário, a família Teixeira se reuniu novamente e foram morar no local de onde havia saído após o golpe, Paraíba. Só que pelos mesmos motivos que, em 1962, levaram ao assassinato do marido de Elizabeth, João Pedro (presidente da Liga Camponesa de Sapé), algum tempo depois de a família reunir-se um irmão matou o outro e, meses depois, foi morto por pistoleiros. O último (último mesmo, prometo) detalhe: o filho que morreu chamava-se Lênin (no documentário ele aparece com outro nome) e voltara para Sapé para fazer a mesma coisa que o pai: organizar os camponeses.

Vandeck
Repórter especial do DIARIO DE PERNAMBUCO
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Assinatura Abraji