- 29.10
- 2012
- 13:04
- Karin Salomao
Uma pauta de três anos: o trabalho por trás da reportagem premiada “Filho da Rua”
Da pauta à publicação do caderno especial O Filho da Rua, a repórter do jornal Zero Hora, Letícia Duarte, percorreu diversos obstáculos, angústias e conflitos. Durante três anos, acompanhou a trajetória de Felipe, garoto de rua em Porto Alegre. O resultado, um caderno especial de 16 páginas, recebeu o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, na categoria especial Criança em situação de rua. Em entrevista à Abraji, a repórter conta sobre o processo de apuração do especial.
A ideia inicial da pauta era mostrar como nasce uma criança de rua. A primeira fonte de Letícia foram os próprios meninos de rua. Porém, ela logo percebeu que eles contavam muitas histórias inventadas e mentiam sobre o nome, idade e família. Para obter informações mais precisas, entrou em contato com as redes de assistência para crianças de rua.
Leia aqui as quatro reportagens da série. O especial também foi acompanhado de um vídeo-reportagem e de uma galeria de fotos.
Foi assim que ela conheceu Felipe (nome fictício). Identificado entre 383 crianças e adolescentes em situação de rua em censo realizado na capital do Rio Grande do Sul em 2008, sua história era simbólica. Ele já passara por todos os projetos e redes de assistência possíveis e sobre ele, havia mais de 300 folhas de documentos. A mãe procurava continuamente nas esquinas o garoto que começou a sair de casa com cinco anos, mas, apesar disso, ele continuava analfabeto e viciado em crack e estava há um ano longe de casa.
Antes de se encontrar com Felipe, Letícia já o conhecia pelos documentos e pelas conversas com a mãe. Segundo ela, o menino viu na repórter um contato com sua mãe. Gravou inclusive um recado para a mãe no gravador. “Ele gostou de ser personagem, porque alguém prestou atenção nele”, disse ela.
Com autorização do Juizado da Infância e da Juventude, a jornalista acompanha Felipe desde março de 2009. Ao longo da apuração, Letícia percebeu que muitas crianças moradoras de rua tinham família. A partir de então, ela acrescentou uma nova pergunta à pauta: por que as crianças continuam na rua, apesar de todos os programas de assistência e recuperação?
A pauta, inicialmente programada para dois meses, levou três anos para ser publicada. O menino mudava continuamente de lugar e a mãe não tinha telefone. Durante a apuração, a família mudou três vezes de endereço. Também havia falhas nas redes de atendimento. Restava apelar para vizinhos e conhecidos. “Cada nova apuração era uma nova busca”, diz ela. “Eu tinha muito medo de perder o contato, porque era uma conexão muito tênue com a mãe e com o menino”. Às vezes, a repórter saía pelas ruas sem saber se ia encontrá-lo.
Outro desafio que Letícia enfrentou foram as mentiras contadas pelo menino. Em diversos momentos, Felipe recontou seu passado de formas diferentes. Para chegar a uma história mais precisa, a repórter se cercou de diversas outras fontes, como documentos, informações de conselhos tutelares e escolas, relatos de familiares, educadores ou vizinhos.
Ao mesmo tempo em que a jornalista estava bem perto da história e da família, ela tentava se distanciar para não comprometer emocionalmente a reportagem. Ao longo da apuração, ela se tranquilizou ao perceber que a maior ajuda que poderia oferecer era contar a história de Felipe.
Hoje, Felipe tem 14 anos. Ainda cede à fissura pelo crack, tem medo de morte e da prisão. Porém, foi incluído em outro programa de recuperação. Sempre que se encontra com a repórter, mostra suas mãos limpas – o menino ficou com vergonha de suas unhas e dedos sujos na capa do caderno especial. “O que a gente sonha é que o jornalismo possa ter esse papel transformador”, completa Letícia.