- 02.12
- 2010
- 10:51
- O Globo
Regulação da mídia: a favor ou contra?
O jornal "O Globo" publicou na edição desta quinta-feira, 2 de dezembro, dois artigos sobre a proposta de regulação da mídia do governo federal. O advogado Pedro Dutra é contra o projeto e enxerga risco de controle de conteúdo; o ex-ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, classifica a legislação atual de atrasada e defende um novo marco regulatório. Leia abaixo a íntegra dos textos:
O controle do pensamento
PEDRO DUTRA
O atual governo deixará para o próximo o projeto de lei instituindo a regulação do setor de mídias, cuja ideia central é outorgar a uma agência poderes para fiscalizar o setor, informou o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, Franklin Martins. Seriam várias as razões a recomendar a edição de uma nova lei, e não só a idade da atual. Entre elas, a disciplina da convergência das mídias para evitar abuso de poder econômico possível de ocorrer devido ao desequilíbrio de porte entre as empresas de telecomunicações e de radiodifusão. E a proteção à geração de conteúdo, indispensável pois a estrutura da mídia impressa e televisiva seria excessivamente concentrada, o que afetaria a sua capacidade de difundir, com a amplitude devida, os muitos aspectos da vida do país. Negando o ministro ser a proposta uma ameaça à liberdade de imprensa, pediu que se “deixassem de lado os fantasmas e preconceitos”, que perturbariam o debate do tema .
Devemos esperar que o projeto do governo respeite o direito à liberdade de expressão. Mas o ministro há de convir que ações do próprio governo, sem dúvida concretas, não cessam de gerar inquietações. À parte o que seja a função social da mídia, a multiplicidade social do país e a forma devida de tratá- la e divulgá-la, um fato é incontestável: a estrutura desses setores não é concentrada, pois neles vêm ingressando novos concorrentes que, ao lado dos existentes, disputam a preferência do consumidor.
A televisão viu surgir um vigoroso competidor, que segue os passos da líder de mercado e assim vem se consolidando. A imprensa escrita ganhou novos jornais e revistas e os existentes aperfeiçoam e diversificam seus serviços, em uma disputa cada vez mais intensa entre si, e entre outros segmentos, sobretudo a internet, que com eles concorrem. Monopólios ou oligopólios cerrados barram a entrada ou a subsistência de novos competidores e não investem na melhoria de seus negócios. Justamente o oposto vem ocorrendo, e por pressão de uma demanda cada vez mais ampla e exigente por parte dos consumidores.
A possibilidade assustadora e indesejável é a nova agência ser tentada a regular o conteúdo.
O mesmo se verifica no setor conexo ao de mídia, a reunir a telefonia, fixa e móvel, televisão por assinatura e internet banda larga. Em todos eles, a concorrência e portanto a oferta são crescentes, e, apesar do porte desse setor, o seu relacionamento com o setor de mídia harmoniza- se uma vez que são eles serviços convergentes.
Todos esses setores já são regulados, e a lei de defesa da concorrência se aplica a todos eles. As normas recentes vieram disciplinar um mercado privatizado, que não para de crescer. Claro está, subsistem antigos e surgem novos problemas, e as leis defasadas devem ser atualizadas a esse fim, assim como para atender à constante inovação tecnológica.
Nesse ponto, porém, há uma rude inflexão, e ela se deve às ações do governo, responsáveis pela insegurança existente entre as empresas e os cidadãos mais atentos às discussões em curso. Essas ações não se referem a um anteprojeto redigido por uma comissão de especialistas e aberto ao público, como devem ser redigidas as normas mais complexas, mas a seminários capitaneados por integrantes do Executivo, que neles avançam seus pontos de vista e rebatem, por vezes com um vigor despropositado, opiniões contrárias.
As recentes intervenções do governo no setor de telecomunicações e mídia vêm criando um clima de justificada inquietação, como mostram a recriação da Telebrás e a instituição do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), por um simples decreto, sem audiência do Congresso.
A Telebrás, em sua primeira ação, contrariou o propósito de implantar rede de internet em municípios carentes, preferindo despejar os recursos públicos onde a rede já existe, ofertada pelo setor privado.
O PNBL sequer é um plano: é uma lista breve de intenções, presas a definições inexistentes.
A Anatel, a quem cabe regular o setor de telecomunicações, fecha-se em reuniões e decisões secretas, o que lhe permite sofrer a aberta pressão de novos e desembaraçados centros de formulação da política de telecomunicações, localizados na assessoria da Presidência da República e expressa nas ações da Telebrás.
A Ancine, que deveria limitar-se a fomentar a produção audiovisual, ganha poderes continuamente, e avança na disciplina da produção de conteúdo.
A isso tudo soma-se o fato de o atual governo, já ao seu início, haver declarado ser contra o regime de agências reguladoras dotadas de independência hierárquica e decisória, mesmo tendo ele a si assegurada prerrogativa de fixar a política para o setor por meio de decretos do presidente da República.
Nesse contexto, qual será a agência reguladora proposta pelo governo para fiscalizar mídias, inclusive mídias que não são “boas”, como observou o ministro? A possibilidade, assustadora e fantasmagórica nesse contexto, é essa agência extravasar os limites técnicos a que deve ser vinculada e vir-se tentada a regular não o setor de mídia, mas o seu conteúdo. Isto é, regular o pensamento.
É preciso avançar na regulação
JOSÉ DIRCEU
A realização do Seminário Internacional Comunicações Eletrônicas e Convergência de Mídias, nos dias 9 e 10 de novembro, em Brasília, teve uma importância que vai muito além das exposições apresentadas por reguladores e especialistas de países como França, Inglaterra, Portugal, Espanha, Estados Unidos e Argentina, de organismos como Unesco e União Europeia e dos debates ocorridos. O encontro serviu para jogar uma pá de cal na confusão — real para alguns poucos, conveniente para muitos — que a mídia brasileira pretende impor à sociedade entre o estabelecimento de um marco regulatório moderno para os meios de comunicação e a ameaça à democracia e à liberdade de imprensa.
O seminário revelou o que estudiosos, especialistas e aqueles que acompanham o que ocorre no mundo na área da mídia já sabiam. Todos os países desenvolvidos têm seu marco regulatório da mídia, com regras para a promoção da pluralidade, diversidade cultural nacional e regional e imparcialidade jornalística; para a proteção da privacidade e das crianças e adolescentes (contra a violência e as drogas); para a garantia do direito de resposta dos cidadãos em casos de injúria, calúnia ou simplesmente informações erradas; para o combate à discriminação.
Em 2008, o Parlamento Europeu aprovou uma diretiva, longamente debatida, com o objetivo de atualizar o marco regulatório de seus países-membros frente ao fenômeno da convergência das mídias. Seu objetivo, como destacou Harald Trettenbein, diretor adjunto de Políticas de Audiovisual e Mídias da Comissão Europeia, é “promover a diversidade cultural europeia, garantir a circulação de conteúdo plural e estimular a competitividade da indústria audiovisual”. Assim, rádios e TVs dos países- membros estão obrigados a veicular produção independente e conteúdo europeu, e o tempo máximo de publicidade que podem veicular é de 20% da grade.
Também para garantir a pluralidade de opiniões, há regulamentações, como a dos Estados Unidos, para ficar num exemplo, que limitam a propriedade cruzada e a concentração do controle dos meios de comunicação nas mãos de alguns poucos grupos econômicos.
Tenho defendido o fomento à livre concorrência nos meios de comunicação, muito especialmente na rádio e na televisão, que são concessões públicas, pois a livre concorrência é fundamental para que os cidadãos tenham acesso a diferentes fontes de informação e possam, assim, formar o seu juízo a respeito dos fatos, debates, propostas e polêmicas.
Como bem disse o professor e jornalista Venício A. de Lima, no artigo “Marco regulatório vs. Liberdade de imprensa”, “regular a mídia é ampliar a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a pluralidade e a diversidade. Regular a mídia é garantir mais — e não menos — democracia. É caminhar no sentido do pleno reconhecimento do direito à comunicação como direito fundamental da cidadania”.
Temos uma legislação atrasada na radiodifusão, dos anos 1960, e até hoje não regulamentamos dispositivos fundamentais da Constituição de 1988, estabelecidos em seus artigos 221 e 222, para garantir a efetiva democracia na comunicação social. Não resolvemos ainda esses desafios e já temos outros pela frente decorrentes da convergência das mídias.
É preciso se preparar para o futuro, como alertou o ministro Franklin Martins, na abertura do seminário: “Cada vez mais as fronteiras entre radiodifusão e telecomunicação vão se diluindo. Em pouco tempo, para o cidadão, será indiferente se o sinal que recebe no celular ou no computador vem da radiodifusão ou das teles. A convergência de mídia é um processo que está em curso e ninguém vai detê-lo. Por isso, é bom olhar pra frente, este é o futuro. E regular esta questão será um desafio, porque sem isso não há segurança jurídica nem como a sociedade produzir um ambiente onde o interesse público prevaleça sobre os demais.”
A importância do seminário foi qualificar o debate público, afastando o fantasma, criado pelos que querem defender seus privilégios, de que regular a mídia é atentar contra a liberdade de imprensa. O legado do governo Lula nessa área foi abrir a discussão, enfrentar as resistências e preparar um anteprojeto de regulação da mídia que terá que ser levado em frente pelo governo da presidente Dilma Rousseff e pelo Congresso Nacional.
O debate da democratização da comunicação social, iniciado com a 1a- Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009, está colocado. É preciso avançar e construir um marco regulatório que existe, como lembrou Wijayananda Jayaweera, diretor da Divisão de Desenvolvimento da Comunicação da Unesco e um dos palestrantes do seminário, “para servir ao interesse público, e não necessariamente ao interesse dos radiodifusores. (Ele) Deve garantir a pluralidade e promover a diversidade de ideais, de opiniões, de vozes numa sociedade”.