Para especialistas, censura ao Intercept Brasil e a pesquisas eleitorais é ameaça à democracia
  • 18.11
  • 2020
  • 18:45
  • Maria Esperidião e Pedro Teixeira*

Liberdade de expressão

Acesso à Informação

Para especialistas, censura ao Intercept Brasil e a pesquisas eleitorais é ameaça à democracia

O primeiro turno das eleições municipais foi marcado por pedidos de retirada de conteúdo e proibição de divulgação de pesquisas. O caso mais recente envolveu o site Intercept Brasil, que denunciou ontem (17.nov.2020) as circunstâncias da censura imposta ao veículo por uma ação ajuizada por Ricardo Nicolau, candidato derrotado do PSD à prefeitura de Manaus.

"Não se trata apenas de limitar a liberdade de expressão, mas também a de informação. A população se vê privada de ter informações completas sobre os atores políticos. O processo de decisão sobre quem escolher no momento do voto pode ser impactado, com risco ao sistema democrático”, avalia Taís Gasparian, advogada especialista em liberdade de expressão.

No caso do Intercept, a coligação “Voltar a Acreditar”, encabeçada por Nicolau, pediu ao Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas que a reportagem “Candidato de Manaus conta com o hospital da família, a covid e o Judiciário para subir nas pesquisas” fosse derrubada, via antecipação de tutela.

O juiz coordenador da propaganda eleitoral Alexandre Henrique Novaes de Araújo acatou o pedido sem ouvir a defesa do Intercept Brasil. Ele determinou a remoção imediata da matéria do site, sob pena de multa diária de R$ 20 mil por descumprimento.

Nesta quarta-feira (18.nov.2020), o Intercept foi informado sobre uma nova petição do mesmo processo que concedeu a liminar original. Os advogados de Ricardo Nicolau alegam que o site descumpriu a ordem de retirar o link do ar e pediram também censura à matéria que mostrou as relações pessoais dos magistrados com o político.

Para o editor-executivo do Intercept Brasil, Leandro Demori, o impacto da decisão na imprensa é o que mais preocupa:

“Juízes, procuradores, promotores e políticos têm utilizado os Juizados Especiais Cíveis para processar jornalistas, o que é um absurdo por reduzir muito nossa capacidade de defesa. Além disso, uma decisão como essa, na qual o juiz diz que publicamos “fatos sabidamente inverídicos”, mas não aponta quais são, é perigoso. Mostramos a rede de amizade [do candidato] no Judiciário, as fragilidades da peça. Se isso virar regra, a liberdade de imprensa está em risco”.

A assessora jurídica da Abraji, Letícia Kleim, avalia que as semelhanças entre as quatro petições feitas pela coligação do deputado estadual Ricardo Nicolau podem indicar uma tentativa de controlar a livre distribuição dos processos. “Precisamos nos atentar aos princípios do juiz natural e da imparcialidade da justiça”, observa.

“Chama atenção também o pedido pela suspensão de todo o site do Intercept Brasil, que acabou por não ser concedido na liminar”, alerta Kleim. Para ela, a estratégia dos advogados de Nicolau partiu da premissa de que a reportagem era tendenciosa, influenciaria os eleitores e que, por isso, deveria ser considerada propaganda eleitoral negativa e retirada do ar.

A Abraji investiga pedidos de remoção de conteúdo feitos por políticos ou partidos de todo o Brasil, no âmbito do projeto Ctrl+X. A equipe do projeto revelou, em 16.out.2020, que 458 candidatos às eleições municipais pediram retirada de conteúdo. Neste mesmo levantamento, Manaus apareceu como a cidade com mais ações do tipo — 38 no total. O ex-governador Amazonino Mendes (Pode), que avançou ao segundo turno na disputa pela prefeitura, é responsável por 27 delas. Até então, Ricardo Nicolau não figurava na lista.


As pesquisas eleitorais

O cerco às pesquisas eleitorais também se disseminou no pleito de 2020. O juiz eleitoral Marco Antonio Martin Vargas aceitou, em 10.nov.2020, um pedido do então candidato à prefeitura de São Paulo Celso Russomanno (Republicanos) para impugnar, em caráter provisório, uma pesquisa de intenção de voto feita pelo Instituto Datafolha. Na decisão, o magistrado alegou que aspectos da pesquisa não estariam em conformidade com a legislação e a jurisprudência eleitoral.

O diretor de pesquisas do Datafolha, Alessandro Janoni, explicou em reportagem da Folha de S.Paulo que o instituto utiliza nos levantamentos eleitorais, há mais de 35 anos, as mesmas variáveis de planejamento amostral e ponderação dos dados. Foi a primeira vez desde a Constituição de 1988 que um juiz proibiu a divulgação de uma pesquisa do instituto em São Paulo.

Após decisão unânime do colegiado do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP), o Datafolha conseguiu divulgar os resultados da pesquisa contratada pela Rede Globo.

Em Blumenau, a juíza Simone Faria Locks proibiu, em 11.nov.2020, a divulgação de uma pesquisa sobre o pleito para a prefeitura na cidade, que seria difundida pelo NSC Total, o maior grupo de comunicação de Santa Catarina.

A magistrada concedeu liminar a pedido do candidato Ricardo Alba (PSL). A defesa de Alba alegou que faltavam documentos que comprovassem a contratação do levantamento. A NC Comunicações, holding que controla o NSC Total, recorreu junto ao TRE-SC e ganhou o direito de publicar os números da pesquisa.

No Paraná, a empresa IRG Pesquisas teve uma das 13 pesquisas registradas impugnadas. O levantamento foi liberado depois de um mês, o que inviabilizou sua divulgação. Ao menos outras duas pequisas foram impugnadas pela Justiça no estado, com decisões judiciais revertidas na sequência. O Instituto Paraná Pesquisas afirma que, embora a legislação eleitoral seja única para todo o país, juízes costumam aplicar exigências diferentes aos pedidos de registro.

A pedido da Abraji, Marcia Cavallari, diretora do Ibope Inteligência, contabilizou 56 pedidos de impugnação das 171 pesquisas eleitorais realizadas pelo instituto em todo o Brasil. Apenas uma teve sua divulgação suspensa, três dias após a circulação do conteúdo, em Rondonópolis (Mato Grosso). “Outras seis tiveram as simulações de segundo turno proibidas, e as demais conseguimos derrubar, sem prejuízo para a divulgação'', declarou Cavallari.


O que dizem os especialistas

Luís Francisco Carvalho Filho, articulista da Folha de São Paulo especializado em direito penal, eleitoral e constitucional, afirma que a base do problema é uma distorção do papel da Justiça Eleitoral, que considera ter legitimidade para decidir o que pode ou não ser dito pela imprensa e arbitrar sobre critérios metodológicos e científicos dos institutos de pesquisa.

“São atos de violência política incompatíveis com o regime democrático”, pontua. Para ele, a Justiça Eleitoral deveria se ater ao que sabe fazer muito bem: organizar a votação e não interferir em processos, ainda que se apresente como um órgão imparcial. Carvalho explica que magistrados pedem inclusão de campos de pesquisa inviáveis, como a situação econômica dos eleitores, cujos índices são mutáveis, ainda mais em ano de pandemia, com alto índice de desemprego e queda de renda.

Em artigo publicado na Folha, Carvalho Filho lembra que, no Brasil, “para combater abuso de poder político e econômico, o ano de eleições se converte em período de exceção, com drástica supressão de liberdades, como retirada de conteúdo”.

Na visão do advogado, a reportagem do Intercept que revelou as relações pessoais de magistrados que julgaram ações movidas por candidatos demonstra o cipoal de suspeição sobre os juízes. "Nas capitais maiores, você tem menos interferência pessoal. Quanto mais se avança para o interior, isso se torna mais visível. Um juiz pode comer uma pizza no fim de semana com um empresário ou um político, levantando suspeitas sobre a natureza das relações pessoais”, sublinha Carvalho Filho.

A advogada Taís Gasparian, citada no início desta reportagem, destaca que os diversos pedidos de remoção de conteúdo aumentam muito em ano eleitoral. E as pessoas que mais requerem a remoção são políticos. “Justamente quando a população deveria poder pesquisar sobre os candidatos, esses mesmos candidatos requerem que o conteúdo que lhes desagrada seja removido.”

De acordo com a Repórteres sem Fronteiras, que divulgou uma carta destinada a vereadores eleitos pedindo que se comprometam com a liberdade de imprensa, o aumento de processos judiciais abusivos contra jornalistas e a imprensa no Brasil, em sua maioria movidos por autoridades públicas, marcará o ano de 2020. “Infelizmente, estamos observando um acúmulo desses casos de censura judicial contra a imprensa”, afirma Emmanuel Colombié, diretor regional da RSF para a América Latina.

Para ele, o caso de censura ao Intercept ilustra essa tendência. “O então candidato Nicolau tentou se aproveitar de uma situação privilegiada para distorcer a realidade para fins eleitorais e, ao mesmo tempo, impedir a publicação de informações contrárias aos seus interesses individuais. As urnas falaram”. 

Na sua opinião, a ação inicial, que pedia a retirada de todo o site do Intercept do ar, sinaliza o desconhecimento da classe política sobre o funcionamento das instituições e da democracia. “A justiça, em nenhum momento, pode ser usada como instrumento para silenciar jornalistas no Brasil”, conclui.


Os envolvidos no pedido de censura ao Intercept

Procurada pela Abraji, a presidência do Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE-AM) declarou não poder se manifestar sobre uma decisão em primeira instância à qual não teve acesso. O órgão afirmou não ter recebido um pronunciamento do juiz Alexandre Henrique Novaes de Araújo até as 17h, quando foi novamente procurado pela reportagem.

O deputado Ricardo Nicolau perdeu o pai no dia 16.nov.2020 e está em luto com a família. Por isso, sua assessoria informou que o pedido de resposta não seria atendido até o prazo de publicação desta matéria.

*com colaboração de Katia Brembatti

Assinatura Abraji