- 17.08
- 2004
- 12:40
- MarceloSoares
Palestra de Frederico Vasconcellos sobre investigação de financiamento de campanha
OS LIMITES DA INVESTIGAÇÃO JORNALÍSTICA NA ÁREA DO FINANCIAMENTO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS
Palestra de Frederico Vasconcelos
Congresso de Direito Eleitoral
Tribunal Regional Federal-SP – 11.set.2002
Todos nós sabemos que o financiamento de campanha tem dois aspectos perversos. O mais exposto durante o período eleitoral é o risco de desequilíbrio na disputa, com a eventual concentração de financiamentos submersos em determinadas candidaturas. A desembargadora Suzana Camargo, do Tribunal Regional Federal de São Paulo, defende, com razão, a tese de que a forma mais prática de diminuir a corrupção e o abuso do poder econômico nas eleições seria reduzir o período das campanhas e da propaganda eleitoral.
Não menos nocivo, contudo, é o processo que antecede as eleições, com as formações antecipadas de caixas de campanha, e as práticas viciadas que se estendem após o pleito, com o "cumprimento" de compromissos assumidos muito antes da contagem dos votos. Os acordos firmados durante as campanhas estão na origem da maioria dos escândalos com o uso de dinheiro público. Refiro-me às contratações dirigidas, às licitações fraudadas e às obras superfaturadas, pautas permanentes do chamado jornalismo investigativo.
Essas apurações são demoradas. Requerem a checagem de documentos e informações, espécie de auditoria, e uma dedicação exclusiva, muitas vezes incompatível com o acúmulo de assuntos diários tratados pelos jornalistas. Quando essas revelações são bem fundamentadas, o desafio seguinte é acompanhar os desdobramentos nas esferas administrativa e judicial. Nessa etapa, a dificuldade maior é compatibilizar o tempo do processo, necessariamente mais lento, com a velocidade da mídia, pressionada cada vez mais pela concorrência e pela competição em tempo real.
A experiência numa investigação jornalística que se prolongou por mais de três anos, o caso das importações superfaturadas de equipamentos de Israel no governo Quércia, uma operação com fortes suspeitas de formação de caixa eleitoral, deixou alguns ensinamentos úteis. Quanto mais complexa a investigação jornalística, maior a possibilidade de que outros veículos se abstenham de tratar do assunto. A persistência isolada do jornalista que revela e dá seqüência a um fato relevante pode ser interpretada, injustamente, como ânimo persecutório, interesse político ou interesse pessoal.
A rememoração dos detalhes, necessária para contextualizar o fato e permitir o melhor entendimento do caso a cada volta ao assunto nos jornais, dá margem a que as partes atingidas aleguem, depois, terem sido vítimas de uma "campanha" sistemática da imprensa.
Se a Justiça eleitoral precisa ser rápida em suas decisões, a imprensa, por sua vez, também é levada nos períodos de eleição a fazer avaliações sob a pressão do tempo escasso. É nesse ambiente que proliferam os "dossiês" e os arquivos sujos. O tempo trabalha a favor dos interessados em aproveitar as lacunas da legislação e a incapacidade da imprensa, em geral, de fazer um exame prévio mais detido dessas revelações no curso de uma campanha eleitoral.
Quando falamos dos problemas no financiamento de campanha estamos tratando principalmente de contabilidades clandestinas, a partir de recursos em geral provenientes de caixa-dois das empresas. A identificação segura desses desvios depende de investigações mais profundas, com a quebra de sigilo bancário, como ocorre nos trabalhos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito.
Os esquemas de sustentação de campanhas também estão ligados aos esquemas de corrupção nos anos em que não há eleições. O grau de promiscuidade, antes, durante e depois das eleições, leva a supor que as apurações jornalísticas, em sua grande maioria, alcançam apenas a superfície desses negócios.
Em 1998, um empreiteiro fez um raciocínio exemplar sobre as chamadas "reciprocidades eleitorais". Dizia ele que, devido à maior fiscalização da sociedade, a possibilidade de uma empresa da construção vir a ganhar uma obra depois das eleições seria maior se ela não contribuísse durante a campanha. Ela estaria acima de qualquer suspeita para vencer, posteriormente, uma licitação dirigida, preterindo as que contribuíram. Em contrapartida, seria um alvo mais fácil para a cobrança seguinte de "pedágios" e comissões.
Certa vez, tive conhecimento, sem intermediários e sem dossiês, de um curioso caso de financiamento irregular de campanha por uma construtora, uma empresa de capital aberto, com ações em Bolsa. Devido à habitual leitura de atas, balanços e editais, descobri que o ex-vice-presidente e sócio dessa empreiteira questionara na Comissão de Valores Mobiliários a contribuição dada pela empresa à campanha do candidato a prefeito Celso Pitta, no valor de R$ 164 mil, uma doação sem autorização do Conselho de Administração, como manda a lei. Além de superar os dividendos distribuídos pela companhia no exercício, aqueles recursos, segundo suspeitava o ex-diretor, seriam provenientes de um caixa-dois.
Ouvidas as partes, publicada a reportagem, a empresa ofereceu queixa-crime e moveu uma ação de indenização contra o acionista, tendo este jornalista sido arrolado como testemunha. As partes se entenderam, houve conciliação e a disputa judicial foi encerrada. Mas o advogado e os diretores da empresa não se convenceram de que a reportagem nascera na simples leitura de uma ata de assembléia publicada na imprensa. Essa desconfiança deve ser atribuída ao fato de que as redações, em período eleitoral, costumam receber inúmeros dossiês e denúncias dirigidas. Além desse material pré-fabricado, há esquemas disfarçados de financiamento eleitoral, nem sempre captados pela vigilância da imprensa. São apoios sob a forma de material útil à campanha, sem registros comprometedores.
Algumas doações são feitas muito antes do período eleitoral. Usineiros paulistas, por exemplo, constroem creches, doam máquinas e ambulâncias para prefeituras cujos titulares são afinados com a bandeira da defesa do Proálcool, não importando a sigla partidária do beneficiado. Essas doações materiais também permitem aos coordenadores das campanhas ajustar a contabilidade, na conhecida conta de chegar. Como admitiu, em 1994, um dos coordenadores da campanha de Fernando Henrique Cardoso, ao comentar as doações em material (móveis, imóveis e veículos): "Foi por aí, apesar dos bônus, que os valores foram sub ou superfaturados, conforme a conveniência do momento ou a geração de sobras de campanha", afirmou.
Em 1998, graças à confirmação de alguns empresários, pude revelar como a indústria automobilística ajuda os candidatos de sua preferência, preservando o nome das empresas montadoras. O esquema utilizado é o empréstimo, pelas concessionárias, de carros seminovos ou usados aos candidatos e aos comitês de campanha, a pedido das montadoras. Em contrapartida, as concessionárias recebem das montadoras veículos zero quilômetro, em número igual aos emprestados, que são faturados em condições especiais.
Esse grande lobby é espalhado nos vários Estados, obedecendo a um mapeamento da rede de concessionárias, muitas delas de propriedade de conhecidos políticos, atendendo aos interesses locais. O rastreamento dessas operações, quando há papel assinado, levaria, no máximo, ao nome do concessionário que assinou o contrato de comodato ou a uma locadora. Nas eleições de 1998, o governador Mario Covas circulou durante a campanha eleitoral a bordo de uma moderna van emprestada pelo presidente da Toyota. A assessoria do candidato confirmou o empréstimo. A empresa alegou que era uma "manifestação de amizade" e o reconhecimento pelo esforço de Covas ao instalar uma fábrica da montadora no Estado.
Há outros mecanismos de apoio disfarçado.
Em 1998, revelei que grandes grupos empresariais privados decidiram, numa estratégia coordenada pelo movimento "Ação Empresarial", enxertar nos anúncios de suas empresas e de seus produtos mensagens subliminares de apoio às ações do governo Fernando Henrique Cardoso, então candidato à reeleição. Era a chamada "Campanha do Bom Astral". À parte esses casos isolados, a limitação maior para o trabalho da imprensa é a mesma, acredito, que enfrenta o fiscal do Tribunal de Contas ou o juiz eleitoral: as prestações de contas da arrecadação e dos gastos de campanha são sabidamente um artifício, uma formalidade para que os partidos e os candidatos cumpram a lei. Terminada a eleição, os prazos para a prestação de contas nem sempre são obedecidos. As contas ficam abertas e novas doações paralelas são colhidas por candidatos já eleitos e empossados. Como os doadores não têm noção do que já foi coletado, candidatos mais espertos podem alegar necessidades inexistentes para continuar passando o chapéu.
Durante cerca de dois meses, acompanhei o reexame da prestação de contas formal dos candidatos tucano e petista nas eleições presidenciais de 1998, avaliação que solicitamos a uma firma de auditoria independente. Paralelamente, conferi algumas contribuições listadas. Selecionamos, por exemplo, cheques de valores iguais, de um mesmo contribuinte, até com repetição de centavos quebrados. Desconfiávamos de eventual direcionamento de cheques pré-datados, emitidos por pessoas físicas, e usados em contribuições eleitorais por pessoas jurídicas.
Tive o trabalho de telefonar para cerca de 50 pessoas, em vários Estados, checando os valores daquelas doações. Todos os consultados confirmaram a regularidade dos registros. Esse inútil esforço de reportagem, que não gerou nenhuma linha publicada, apenas confirmou o que já era sabido: as prestações de contas oficiais obedecem à formalidade da lei.
Em novembro de 2000, os jornalistas Wladimir Gramacho e Andréa Michael, da Folha de S.Paulo, publicaram reportagem revelando planilhas eletrônicas sigilosas do comitê eleitoral do presidente Fernando Henrique Cardoso. Esses documentos sugeriam que a campanha pela reeleição -aquela mesma sobre cuja prestação formal havíamos nos debruçado- havia sido abastecida por um caixa-dois. Pelo menos R$ 10 milhões não haviam sido declarados ao Tribunal Superior Eleitoral.
Segundo a avaliação de Gramacho, um dos autores da reportagem, além das informações dos nomes dos doadores e dos valores, não houve acesso a outra base de dados para fazer comparações. "Isso é fruto da pouca credibilidade que se empresta a esses dados. No TSE e nos TREs não há auditoria sobre as prestações de contas", diz ele. A maior dificuldade, de acordo com o jornalista, foi chegar à planilha contábil e checar a sua consistência. "Foi um trabalho braçal, com muitos telefonemas para empresários, políticos e executivos, e longas esperas por respostas".
Os efeitos desse levantamento, ainda segundo o profissional, foram reduzidos. O procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, não ofereceu nenhum procedimento ao TSE. A Receita Federal e o Ministério Público, de primeira instância, investigam os arrecadadores. "Em resumo, é tudo um grande faz-de-conta", concluiu Gramacho.
No outro lado do espectro político, aquela mesma checagem da prestação de contas do candidato petista à Presidência, em 1998, que solicitamos a uma auditoria privada, também não revelaria distorções. Despertara minha atenção o cuidadoso registro das muitas contribuições em valores ínfimos. Esse aspecto também ficou evidente ao examinar, nas eleições de 2000, as prestações de contas dos candidatos a prefeito e a vereador em Santo André. Aparentemente, os valores maiores eram compatíveis com o porte das empresas do município. Naquela ocasião, contudo, já eram fortes os rumores de que tinha havido fartura de recursos movimentando as eleições municipais. Eram conhecidas, também, as denúncias de contratos com suspeitas de irregularidades naquela administração tida, até então, como modelo de gestão do Partido dos Trabalhadores.
Em janeiro último, revelei que observadores tucanos desde o pleito de 2000 vinham investigando, por conta própria, os bastidores das eleições em Santo André, numa tentativa de mapear os esquemas de financiamento de campanha do PT. Aquelas contratações suspeitas, levantadas muito antes pelo jornalista Luiz Maklouf Carvalho, no "O Estado de S.Paulo", e reforçadas por reportagem da Folha na eleição de 2000, só viriam a merecer uma investigação mais ampla, na esfera do Judiciário, depois do brutal seqüestro e assassinato do prefeito Celso Daniel. Alertado, dois anos antes, o PT aparentemente não se preocupou em esclarecer suficientemente aquelas suspeitas.
Outra contribuição importante da imprensa sobre as eleições de 2000 veio do jornalista Fernando Rodrigues, da Folha, que trouxe à tona a contabilidade da campanha do PFL para a prefeitura de Curitiba, revelando a suspeita de um livro-caixa secreto com pagamentos não informados ao TRE. Essas iniciativas da imprensa, num legítimo serviço de interesse público, ao revelar as movimentações suspeitas e as trocas de favores entre candidatos e contribuintes, sempre geram a antipatia dos atingidos e a crítica de seus correligionários.
A reação mais incisiva ocorreu com a revelação de contratos sem licitação, no início do governo Fernando Collor de Mello, beneficiando agências de publicidade que haviam trabalhado na sua campanha eleitoral. Fato inédito, o episódio motivou uma ação criminal do presidente eleito contra quatro jornalistas da Folha, entre os quais o diretor de redação, Otavio Frias Filho, acusados de crime de calúnia. A ação foi uma tentativa de intimidação que não prosperou, e Collor não recorreu da decisão que absolveu os jornalistas. Collor sentiu-se ofendido com duas notas que redigi numa coluna de bastidores informando as suspeitas, dentro do próprio governo, de que as contratações compensariam dívidas de campanha com a agência Setembro Propaganda, de Minas Gerais.
Essa informação, reproduzida também nos jornais da família do presidente, contrastava com a confirmação posterior de que sobraram recursos na campanha eleitoral. Curiosamente, num levantamento que fiz, depois, em Belo Horizonte, constatei que a citada agência publicitária passara a operar na mesma época com duas grifes: uma empresa, sem dívidas na praça nem cadastro desabonador, assinava os contratos com o governo; a outra, dos mesmos sócios, acumulava títulos protestados em cartório. Ou seja, saíra da campanha endividada.
Houvesse mecanismos oficiais para fiscalizar com eficiência e inibir os crimes eleitorais naquela ocasião, talvez PC Farias não viesse a contabilizar os muitos milhões achacados de grupos empresariais interessados em auferir vantagens no governo Collor. De lá para cá, os avanços foram insuficientes para transformar a Justiça Eleitoral num poder auditor de fato. Ainda são muito precários os mecanismos de atuação dessa instância.
Com a criação do "Controle Público", serviço oferecido pela Folha e pelo Universo Online, a sociedade pode ter acesso pela internet aos dados pessoais patrimônio informado e às declarações de bens de 1.019 políticos brasileiros, a partir de documentos entregues aos tribunais eleitorais, mas cuja divulgação era restrita.
Apenas a título de ilustração: recentemente, solicitei por telefone ao TRE paulista a declaração de bens de um ex-governador de São Paulo. Recebemos por fax, no mesmo dia, a cópia do documento. Interessado nas declarações de bens de um ex-governador do Ceará, enviei solicitação por fax, com duas semanas de antecedência ao TRE local. Ao buscar os documentos, pessoalmente, em Fortaleza, fui surpreendido com a alegação de extravio do pedido e a impossibilidade de fornecimento das declarações, por falta de "protocolo". Dias depois, o mesmo funcionário alegou que o pedido havia sido parcialmente indeferido pelo presidente do órgão. Só obtive esses documentos públicos quando pedi cópia do alegado despacho com o tal indeferimento do presidente do tribunal.
Para concluir, entendo que a imprensa, apesar dos seus desacertos –e nós erramos muito-, tem exercido um papel relevante, diante das limitações dos mecanismos institucionais para exigir dos candidatos e dos eleitos a indispensável prestação de contas. Especificamente com relação às distorções nos financiamentos de campanhas eleitorais, acredito que a sociedade tem procurado na mídia respostas que não são dadas satisfatoriamente pelos órgãos de fiscalização e pela Justiça.
Muito obrigado pela atenção.
Palestra de Frederico Vasconcelos
Congresso de Direito Eleitoral
Tribunal Regional Federal-SP – 11.set.2002
Todos nós sabemos que o financiamento de campanha tem dois aspectos perversos. O mais exposto durante o período eleitoral é o risco de desequilíbrio na disputa, com a eventual concentração de financiamentos submersos em determinadas candidaturas. A desembargadora Suzana Camargo, do Tribunal Regional Federal de São Paulo, defende, com razão, a tese de que a forma mais prática de diminuir a corrupção e o abuso do poder econômico nas eleições seria reduzir o período das campanhas e da propaganda eleitoral.
Não menos nocivo, contudo, é o processo que antecede as eleições, com as formações antecipadas de caixas de campanha, e as práticas viciadas que se estendem após o pleito, com o "cumprimento" de compromissos assumidos muito antes da contagem dos votos. Os acordos firmados durante as campanhas estão na origem da maioria dos escândalos com o uso de dinheiro público. Refiro-me às contratações dirigidas, às licitações fraudadas e às obras superfaturadas, pautas permanentes do chamado jornalismo investigativo.
Essas apurações são demoradas. Requerem a checagem de documentos e informações, espécie de auditoria, e uma dedicação exclusiva, muitas vezes incompatível com o acúmulo de assuntos diários tratados pelos jornalistas. Quando essas revelações são bem fundamentadas, o desafio seguinte é acompanhar os desdobramentos nas esferas administrativa e judicial. Nessa etapa, a dificuldade maior é compatibilizar o tempo do processo, necessariamente mais lento, com a velocidade da mídia, pressionada cada vez mais pela concorrência e pela competição em tempo real.
A experiência numa investigação jornalística que se prolongou por mais de três anos, o caso das importações superfaturadas de equipamentos de Israel no governo Quércia, uma operação com fortes suspeitas de formação de caixa eleitoral, deixou alguns ensinamentos úteis. Quanto mais complexa a investigação jornalística, maior a possibilidade de que outros veículos se abstenham de tratar do assunto. A persistência isolada do jornalista que revela e dá seqüência a um fato relevante pode ser interpretada, injustamente, como ânimo persecutório, interesse político ou interesse pessoal.
A rememoração dos detalhes, necessária para contextualizar o fato e permitir o melhor entendimento do caso a cada volta ao assunto nos jornais, dá margem a que as partes atingidas aleguem, depois, terem sido vítimas de uma "campanha" sistemática da imprensa.
Se a Justiça eleitoral precisa ser rápida em suas decisões, a imprensa, por sua vez, também é levada nos períodos de eleição a fazer avaliações sob a pressão do tempo escasso. É nesse ambiente que proliferam os "dossiês" e os arquivos sujos. O tempo trabalha a favor dos interessados em aproveitar as lacunas da legislação e a incapacidade da imprensa, em geral, de fazer um exame prévio mais detido dessas revelações no curso de uma campanha eleitoral.
Quando falamos dos problemas no financiamento de campanha estamos tratando principalmente de contabilidades clandestinas, a partir de recursos em geral provenientes de caixa-dois das empresas. A identificação segura desses desvios depende de investigações mais profundas, com a quebra de sigilo bancário, como ocorre nos trabalhos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito.
Os esquemas de sustentação de campanhas também estão ligados aos esquemas de corrupção nos anos em que não há eleições. O grau de promiscuidade, antes, durante e depois das eleições, leva a supor que as apurações jornalísticas, em sua grande maioria, alcançam apenas a superfície desses negócios.
Em 1998, um empreiteiro fez um raciocínio exemplar sobre as chamadas "reciprocidades eleitorais". Dizia ele que, devido à maior fiscalização da sociedade, a possibilidade de uma empresa da construção vir a ganhar uma obra depois das eleições seria maior se ela não contribuísse durante a campanha. Ela estaria acima de qualquer suspeita para vencer, posteriormente, uma licitação dirigida, preterindo as que contribuíram. Em contrapartida, seria um alvo mais fácil para a cobrança seguinte de "pedágios" e comissões.
Certa vez, tive conhecimento, sem intermediários e sem dossiês, de um curioso caso de financiamento irregular de campanha por uma construtora, uma empresa de capital aberto, com ações em Bolsa. Devido à habitual leitura de atas, balanços e editais, descobri que o ex-vice-presidente e sócio dessa empreiteira questionara na Comissão de Valores Mobiliários a contribuição dada pela empresa à campanha do candidato a prefeito Celso Pitta, no valor de R$ 164 mil, uma doação sem autorização do Conselho de Administração, como manda a lei. Além de superar os dividendos distribuídos pela companhia no exercício, aqueles recursos, segundo suspeitava o ex-diretor, seriam provenientes de um caixa-dois.
Ouvidas as partes, publicada a reportagem, a empresa ofereceu queixa-crime e moveu uma ação de indenização contra o acionista, tendo este jornalista sido arrolado como testemunha. As partes se entenderam, houve conciliação e a disputa judicial foi encerrada. Mas o advogado e os diretores da empresa não se convenceram de que a reportagem nascera na simples leitura de uma ata de assembléia publicada na imprensa. Essa desconfiança deve ser atribuída ao fato de que as redações, em período eleitoral, costumam receber inúmeros dossiês e denúncias dirigidas. Além desse material pré-fabricado, há esquemas disfarçados de financiamento eleitoral, nem sempre captados pela vigilância da imprensa. São apoios sob a forma de material útil à campanha, sem registros comprometedores.
Algumas doações são feitas muito antes do período eleitoral. Usineiros paulistas, por exemplo, constroem creches, doam máquinas e ambulâncias para prefeituras cujos titulares são afinados com a bandeira da defesa do Proálcool, não importando a sigla partidária do beneficiado. Essas doações materiais também permitem aos coordenadores das campanhas ajustar a contabilidade, na conhecida conta de chegar. Como admitiu, em 1994, um dos coordenadores da campanha de Fernando Henrique Cardoso, ao comentar as doações em material (móveis, imóveis e veículos): "Foi por aí, apesar dos bônus, que os valores foram sub ou superfaturados, conforme a conveniência do momento ou a geração de sobras de campanha", afirmou.
Em 1998, graças à confirmação de alguns empresários, pude revelar como a indústria automobilística ajuda os candidatos de sua preferência, preservando o nome das empresas montadoras. O esquema utilizado é o empréstimo, pelas concessionárias, de carros seminovos ou usados aos candidatos e aos comitês de campanha, a pedido das montadoras. Em contrapartida, as concessionárias recebem das montadoras veículos zero quilômetro, em número igual aos emprestados, que são faturados em condições especiais.
Esse grande lobby é espalhado nos vários Estados, obedecendo a um mapeamento da rede de concessionárias, muitas delas de propriedade de conhecidos políticos, atendendo aos interesses locais. O rastreamento dessas operações, quando há papel assinado, levaria, no máximo, ao nome do concessionário que assinou o contrato de comodato ou a uma locadora. Nas eleições de 1998, o governador Mario Covas circulou durante a campanha eleitoral a bordo de uma moderna van emprestada pelo presidente da Toyota. A assessoria do candidato confirmou o empréstimo. A empresa alegou que era uma "manifestação de amizade" e o reconhecimento pelo esforço de Covas ao instalar uma fábrica da montadora no Estado.
Há outros mecanismos de apoio disfarçado.
Em 1998, revelei que grandes grupos empresariais privados decidiram, numa estratégia coordenada pelo movimento "Ação Empresarial", enxertar nos anúncios de suas empresas e de seus produtos mensagens subliminares de apoio às ações do governo Fernando Henrique Cardoso, então candidato à reeleição. Era a chamada "Campanha do Bom Astral". À parte esses casos isolados, a limitação maior para o trabalho da imprensa é a mesma, acredito, que enfrenta o fiscal do Tribunal de Contas ou o juiz eleitoral: as prestações de contas da arrecadação e dos gastos de campanha são sabidamente um artifício, uma formalidade para que os partidos e os candidatos cumpram a lei. Terminada a eleição, os prazos para a prestação de contas nem sempre são obedecidos. As contas ficam abertas e novas doações paralelas são colhidas por candidatos já eleitos e empossados. Como os doadores não têm noção do que já foi coletado, candidatos mais espertos podem alegar necessidades inexistentes para continuar passando o chapéu.
Durante cerca de dois meses, acompanhei o reexame da prestação de contas formal dos candidatos tucano e petista nas eleições presidenciais de 1998, avaliação que solicitamos a uma firma de auditoria independente. Paralelamente, conferi algumas contribuições listadas. Selecionamos, por exemplo, cheques de valores iguais, de um mesmo contribuinte, até com repetição de centavos quebrados. Desconfiávamos de eventual direcionamento de cheques pré-datados, emitidos por pessoas físicas, e usados em contribuições eleitorais por pessoas jurídicas.
Tive o trabalho de telefonar para cerca de 50 pessoas, em vários Estados, checando os valores daquelas doações. Todos os consultados confirmaram a regularidade dos registros. Esse inútil esforço de reportagem, que não gerou nenhuma linha publicada, apenas confirmou o que já era sabido: as prestações de contas oficiais obedecem à formalidade da lei.
Em novembro de 2000, os jornalistas Wladimir Gramacho e Andréa Michael, da Folha de S.Paulo, publicaram reportagem revelando planilhas eletrônicas sigilosas do comitê eleitoral do presidente Fernando Henrique Cardoso. Esses documentos sugeriam que a campanha pela reeleição -aquela mesma sobre cuja prestação formal havíamos nos debruçado- havia sido abastecida por um caixa-dois. Pelo menos R$ 10 milhões não haviam sido declarados ao Tribunal Superior Eleitoral.
Segundo a avaliação de Gramacho, um dos autores da reportagem, além das informações dos nomes dos doadores e dos valores, não houve acesso a outra base de dados para fazer comparações. "Isso é fruto da pouca credibilidade que se empresta a esses dados. No TSE e nos TREs não há auditoria sobre as prestações de contas", diz ele. A maior dificuldade, de acordo com o jornalista, foi chegar à planilha contábil e checar a sua consistência. "Foi um trabalho braçal, com muitos telefonemas para empresários, políticos e executivos, e longas esperas por respostas".
Os efeitos desse levantamento, ainda segundo o profissional, foram reduzidos. O procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, não ofereceu nenhum procedimento ao TSE. A Receita Federal e o Ministério Público, de primeira instância, investigam os arrecadadores. "Em resumo, é tudo um grande faz-de-conta", concluiu Gramacho.
No outro lado do espectro político, aquela mesma checagem da prestação de contas do candidato petista à Presidência, em 1998, que solicitamos a uma auditoria privada, também não revelaria distorções. Despertara minha atenção o cuidadoso registro das muitas contribuições em valores ínfimos. Esse aspecto também ficou evidente ao examinar, nas eleições de 2000, as prestações de contas dos candidatos a prefeito e a vereador em Santo André. Aparentemente, os valores maiores eram compatíveis com o porte das empresas do município. Naquela ocasião, contudo, já eram fortes os rumores de que tinha havido fartura de recursos movimentando as eleições municipais. Eram conhecidas, também, as denúncias de contratos com suspeitas de irregularidades naquela administração tida, até então, como modelo de gestão do Partido dos Trabalhadores.
Em janeiro último, revelei que observadores tucanos desde o pleito de 2000 vinham investigando, por conta própria, os bastidores das eleições em Santo André, numa tentativa de mapear os esquemas de financiamento de campanha do PT. Aquelas contratações suspeitas, levantadas muito antes pelo jornalista Luiz Maklouf Carvalho, no "O Estado de S.Paulo", e reforçadas por reportagem da Folha na eleição de 2000, só viriam a merecer uma investigação mais ampla, na esfera do Judiciário, depois do brutal seqüestro e assassinato do prefeito Celso Daniel. Alertado, dois anos antes, o PT aparentemente não se preocupou em esclarecer suficientemente aquelas suspeitas.
Outra contribuição importante da imprensa sobre as eleições de 2000 veio do jornalista Fernando Rodrigues, da Folha, que trouxe à tona a contabilidade da campanha do PFL para a prefeitura de Curitiba, revelando a suspeita de um livro-caixa secreto com pagamentos não informados ao TRE. Essas iniciativas da imprensa, num legítimo serviço de interesse público, ao revelar as movimentações suspeitas e as trocas de favores entre candidatos e contribuintes, sempre geram a antipatia dos atingidos e a crítica de seus correligionários.
A reação mais incisiva ocorreu com a revelação de contratos sem licitação, no início do governo Fernando Collor de Mello, beneficiando agências de publicidade que haviam trabalhado na sua campanha eleitoral. Fato inédito, o episódio motivou uma ação criminal do presidente eleito contra quatro jornalistas da Folha, entre os quais o diretor de redação, Otavio Frias Filho, acusados de crime de calúnia. A ação foi uma tentativa de intimidação que não prosperou, e Collor não recorreu da decisão que absolveu os jornalistas. Collor sentiu-se ofendido com duas notas que redigi numa coluna de bastidores informando as suspeitas, dentro do próprio governo, de que as contratações compensariam dívidas de campanha com a agência Setembro Propaganda, de Minas Gerais.
Essa informação, reproduzida também nos jornais da família do presidente, contrastava com a confirmação posterior de que sobraram recursos na campanha eleitoral. Curiosamente, num levantamento que fiz, depois, em Belo Horizonte, constatei que a citada agência publicitária passara a operar na mesma época com duas grifes: uma empresa, sem dívidas na praça nem cadastro desabonador, assinava os contratos com o governo; a outra, dos mesmos sócios, acumulava títulos protestados em cartório. Ou seja, saíra da campanha endividada.
Houvesse mecanismos oficiais para fiscalizar com eficiência e inibir os crimes eleitorais naquela ocasião, talvez PC Farias não viesse a contabilizar os muitos milhões achacados de grupos empresariais interessados em auferir vantagens no governo Collor. De lá para cá, os avanços foram insuficientes para transformar a Justiça Eleitoral num poder auditor de fato. Ainda são muito precários os mecanismos de atuação dessa instância.
Com a criação do "Controle Público", serviço oferecido pela Folha e pelo Universo Online, a sociedade pode ter acesso pela internet aos dados pessoais patrimônio informado e às declarações de bens de 1.019 políticos brasileiros, a partir de documentos entregues aos tribunais eleitorais, mas cuja divulgação era restrita.
Apenas a título de ilustração: recentemente, solicitei por telefone ao TRE paulista a declaração de bens de um ex-governador de São Paulo. Recebemos por fax, no mesmo dia, a cópia do documento. Interessado nas declarações de bens de um ex-governador do Ceará, enviei solicitação por fax, com duas semanas de antecedência ao TRE local. Ao buscar os documentos, pessoalmente, em Fortaleza, fui surpreendido com a alegação de extravio do pedido e a impossibilidade de fornecimento das declarações, por falta de "protocolo". Dias depois, o mesmo funcionário alegou que o pedido havia sido parcialmente indeferido pelo presidente do órgão. Só obtive esses documentos públicos quando pedi cópia do alegado despacho com o tal indeferimento do presidente do tribunal.
Para concluir, entendo que a imprensa, apesar dos seus desacertos –e nós erramos muito-, tem exercido um papel relevante, diante das limitações dos mecanismos institucionais para exigir dos candidatos e dos eleitos a indispensável prestação de contas. Especificamente com relação às distorções nos financiamentos de campanhas eleitorais, acredito que a sociedade tem procurado na mídia respostas que não são dadas satisfatoriamente pelos órgãos de fiscalização e pela Justiça.
Muito obrigado pela atenção.