• 14.07
  • 2005
  • 12:52
  • MarceloSoares

Os segredos de Santo Amaro

CAROLINA SALVATORE - REPÓRTER DO FUTURO

Do ponto inicial no Jabaquara, da espera por um ônibus qualquer até a chegada no ponto final em Santo Amaro foram aproximadamente uma hora e meia. A viagem foi longa, uma hora viajando no ônibus e infinitos personagens se sentando, indo e vindo. O destino ainda era incerto, até que uma jovem me disse que iria até o ponto final. Acabava de encontrar meu personagem.

Irene da Conceição Batista, 21 anos, auxiliar administrativa em um escritório de contabilidade e de seguros. Estava voltando para casa, tinha sido dispensada do trabalho mais cedo, iria aproveitar para descansar e terminar de ler um livro que havia retirado na biblioteca próxima ao seu trabalho: 1984, de George Orwell.

A escolha pelo livro não poderia passar despercebida. Uma moça simples, que trabalha para sustentar o filho de 4 anos, e que deixou a escola na oitava série estava lendo George Orwell. A primeira coisa que me veio a mente foi uma pergunta: eu estaria lendo esse livro se estivesse na situação dela? O que havia feito ela escolher esse título entre as várias opções que lhe foram apresentadas?

Irene disse que gosta de ouvir rádio e assistir televisão, “até gostaria de ler jornal, mas comprar todo dia representa um gasto que ainda não posso me dar ao luxo”, revelou ao descobrir que seria parte de meu texto. Mas e o motivo da escolha?, insisto. “Ouvi uma entrevista no rádio de um professor que dizia ser esse livro um clássico moderno. Confesso que me chamou mais atenção o ‘moderno’ do que o ‘clássico’”.

Mais uma pergunta me veio a mente após a resposta: quantos livros me foram recomendados e eu nem sequer anotei o nome, ou anotei e não tenho idéia de onde está o tal papel? Nada era mais instigante do que Irene.

Descemos no ponto final. Centro de Santo Amaro. No caminho vamos conversando sobre seu bairro, as dificuldades, o que há de bom e de ruim nas redondezas. Mais uma vez uma surpresa. “Ouço muita gente falar mal de Santo Amaro. Não posso dizer que não é violenta, mas, mesmo assim, ainda há muita coisa que faz com que os moradores mais antigos insistam em ficar”.

- Que tipo de coisa?

- Me sinto segura estando em um local onde todos se conhecem, onde uma pessoa estranha é estranha para todos, não só para alguns.

Já estávamos bem próximos de sua casa nesse momento. Senti-me estranha, afinal, eu era uma estranha acompanhado Irene.

- E o que mais te incomoda? Como é o serviço de saúde, educação...

- Isso realmente deixa a desejar. Não há vagas nas creches...Não é novidade. Meu filho está com quatro anos e sempre é um sofrimento deixá-lo com visinhos.” Me preocupo com seu aprendizado.

Irene disse que pretendia começar a ensinar o filho a ler e escrever em casa, quando tiver aproximadamente 6 anos.

Pergunto da saúde. A moça se cala, abaixa a cabeça. Os longos cachos não me permitem ver seus olhos. O “descaso com a saúde” havia causado a morte do irmão de Irene aos 16 anos. Depois de sofrer um acidente de moto Paulo Eduardo esperou por 4 horas atendimento no posto de saúde do bairro. Não havia médico para atendê-lo. “Não havia ninguém naquele pronto socorro preocupado com a vida do meu irmão!”, lembra inconformada.

A saúde era realmente um ponto que preocupava toda a vizinhança. A morte precoce de Paulo Eduardo chamou a atenção para o problema que já fazia novas vítimas. A dona-de-casa Iraci Sampaio, 54, confirma que o posto está abandonado. “Até tem médico para trabalhar aqui, mas eles desistem por que não há segurança nem equipamentos para atender os pacientes”.

Outro problema que causa muito incomodo aos moradores é a quantidade de lixo que se acumula nas vielas, muito comuns nos bairros de Santo Amaro. “Os lixeiros nem olham para as vielas, parece até que têm medo do lixo que vão encontrar”, disse Antonio Ferrari, 65, aposentado. O problema se agrava quando o aparecimento de ratos torna-se comum, o que revela os diversos visinhos que, a essa hora, já formam uma roda de conversa que, se não fosse pelos temas abordados, seria muito agradável.

O bairro é formado por pessoas de baixa renda no geral, todos muito solícitos, simpáticos e críticos. Parecia que os visinhos de Irene formavam uma espécie de “nova classe baixa”. Informados pelo Jornal Nacional e pelo rádio, mais especificamente pelo Heródoto Barbeiro, todos entendiam, pelo menos um pouco o que se passava pelo Brasil. Dos problemas mais corriqueiros, como a má qualidade dos transportes e a insuficiência do metrô, aos escândalos no Congresso e o tal mensalão.

Os vizinhos de Irene me fizeram querer ser jornalista. Os vizinhos de Irene me mostraram que sempre vale apostar no que não é provável, pois a surpresa é sempre extremamente agradável. Com absoluta certeza, Irene e seus vizinhos não terão que pedir licença a São Pedro bonachão.
Assinatura Abraji