Os documentos da ditadura brasileira agora no Pinpoint
  • 31.03
  • 2022
  • 15:25
  • Alice de Souza e Eduardo Goulart de Andrade

Acesso à Informação

Os documentos da ditadura brasileira agora no Pinpoint

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) publica mais duas coleções de documentos de interesse público no Pinpoint. Neste oitavo mês de parceria com o Google, a Abraji disponibiliza arquivos que jogam luz sobre um dos períodos mais tenebrosos da história do Brasil: a ditadura militar, instalada a partir de um golpe há exatos 58 anos, cujo fim se deu em 1985.

Em parceria com o projeto Brasil: Nunca Mais Digit@l (BNM Digit@l), a Abraji traz para o Pinpoint uma coleção com os 710 processos do Superior Tribunal Militar, documentos integrantes do acervo “Brasil: Nunca Mais”. São 2.052 itens com processos judiciais movidos contra presos políticos, que retratam torturas e violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura. A outra coleção consiste em 46 arquivos de relatórios da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de nove comissões estaduais e de uma comissão temática.

Os arquivos do “Brasil: Nunca Mais” fazem parte daquela que é considerada a maior pesquisa já realizada pela sociedade civil sobre tortura política no país, fruto de um trabalho realizado em sigilo, nos anos 1980, pelo Conselho Mundial de Igrejas e a Arquidiocese de São Paulo. Para realizar o trabalho, foram necessários cinco anos e a análise de 850 mil páginas de processos, que deram origem a relatórios e a um livro. À época, temendo a destruição do material pelos órgãos de repressão política, os microfilmes de toda a documentação foram enviados inicialmente para Genebra, na Suíça, e depois para o Center for Research Libraries, nos Estados Unidos. 

Os documentos disponíveis no Pinpoint fazem parte do trabalho de digitalização dos microfilmes, iniciado em 2011 com a repatriação das cópias do material e coordenado pelo Armazém Memória e pelo Ministério Público Federal, em parceria com o Arquivo Público do Estado de São Paulo. “Nosso objetivo foi preservar a integralidade desses documentos e dar a eles o amplo acesso possível, para que as pessoas saibam o que ocorreu durante a ditadura. Por isso, agora vamos disponibilizar parte desse acervo digitalizado também no Pinpoint”, afirma um dos coordenadores do BNM Digital, o procurador regional da República Marlon Alberto Weichert.

Materiais que evidenciam os crimes cometidos na época da repressão militar estão sempre sob ameaça de desaparecimento. No início deste mês, a Carta Capital publicou reportagem em que servidores do Arquivo Nacional denunciaram odescarte de provas documentais de crimes cometidos pela ditadura, que deveriam estar nos documentos analisados pela Comissão Nacional da Verdade. A denúncia em questão foi negada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública

Um dos objetivos do BNM Digital é evitar que os processos judiciais por crimes políticos sejam destruídos ou se tornem indisponíveis para ampla consulta da sociedade civil, já que há sempre um risco à integridade deles. Em out.2021, por exemplo, a Justiça Federal de Pernambuco determinou que trechos do relatório final da CNV deveriam ser eliminados. As passagens que mencionavam o ex-coronel da Polícia Militar de Pernambuco Olinto de Sousa Ferraz foram tarjadas de preto. Sete organizações que compõem o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas - entre elas a Abraji repudiaram a decisão judicial.

Já a coleção das comissões da Verdade traz três volumes do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que somam 3.388 páginas, além dos relatórios da Comissão Camponesa da Verdade e das seguintes comissões estaduais: Amapá, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.

Criada pela lei 12.528/2011, a CNV iniciou os trabalhos em mai.2012. O objetivo da comissão era apurar graves violações aos Direitos Humanos ocorridas entre 18.set.1946 e 5.out.1988. Em dez.2014, entregou o relatório final de seu trabalho. As comissões estaduais e temáticas vieram na esteira da nacional, com foco regional ou de determinado tema, como o campo.


Uso dos acervos no Pinpoint

Os processos do Superior Tribunal Militar são fonte permanente de pesquisa e reportagem desde que foram disponibilizados, seja na produção de conteúdos sobre o período do regime militar ou na busca por informações de brasileiros julgados nessa época, de militares responsáveis pela repressão política e no histórico de presos políticos. Por meio deles, se tem acesso, entre outras informações, a julgamentos e depoimentos. Nas últimas décadas, várias matérias foram produzidas a partir desses documentos. 

Entre as mais recentes, consta esta, produzida pela jornalista Amanda Rossi para o UOL, que mostra que a ditadura levou para manicômios 24 presos políticos. Também serviram de base para esta coluna de Guilherme Amado, publicada em 2020, que apresenta como familiares do ex-prefeito de São Paulo Bruno Covas, falecido no ano passado, e de Guilherme Boulos, candidato que disputou o segundo turno da prefeitura contra Covas, se opuseram à ditadura. Outra coluna que usa dados do STM e do Brasil Nunca Mais é esta, publicada no Congresso em Foco, por Luiz Cláudio Cunha, por ocasião da morte do ex-delegado do DOPS Pedro Carlos Seelig.

Buscando por “Stanislaw Szermeta OR Stanislaw OR Szermeta”, o Pinpoint retorna 19 arquivos citando nome e/ou sobrenome do sogro de Boulos. Dentre eles, o arquivo BNM_384_2-3 (pages 342 to 1002).pdf, que traz a partir da página 28 o auto de qualificação e interrogatório de Stanislaw Szermeta.

Entre as pessoas mais citadas nos documentos, estão Lenin, Karl Marx e Fidel Castro. Há 1.557 documentos citando o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), centro de repressão aos movimentos sociais e de tortura durante o regime militar. Em um deles, o BNM_568_STM_41593_1-10 (pages 349 to 664).pdf, a partir da página 39 está o depoimento do professor de história Ademir Gebara, cuja prisão ocorreu em função das retaliações aos protestos pela morte do jornalista Vladimir Herzog. 

35 documentos citando "Vladimir Herzog OR Herzog". Um deles, o BNM_568_STM_41593_1-10 (pages 349 to 664).pdf, traz o auto de qualificação e de interrogatório do também jornalista Anthony Jorge Andrade de Christo, que trabalhou na TV Cultura com Herzog. Ao todo, há 310 documentos mencionando “auto de qualificação e de interrogatório” e 1.193 mencionando o termo “jornalista”.

Para o correto uso do acervo do BNM Digital disponível no Pinpoint, é fundamental considerar que “parcela expressiva dos depoimentos de presos políticos e das demais informações inseridas nos processos judiciais foi obtida com uso de tortura e outros meios ilícitos e não pode ser considerada como absoluta expressão da verdade”, ou seja, pode demandar mais pesquisa, checagem e investigações. O recomendado é ler o arquivo LEIA ME antes de usar as informações disponíveis. 

O Pinpoint é um motor de busca que usa tecnologia OCR, reconhecimento óptico de caracteres, e está passível a erros da transcrição dos áudios e palavras. A ferramenta, por exemplo, identificou erroneamente a artista “Linn da Quebrada” entre os filtros disponíveis no acervo publicado. As consultas ao banco de documentos também podem ser feitas diretamente na página do BNM Digital, onde estão disponíveis também outras coleções de documentos de interesse público relativos à época do regime militar no Brasil.

Já na coleção das comissões da Verdade, o termo censura aparece em 40 documentos. Um deles, produzido pela CNV, traz o seguinte trecho: "Por causa da repressão generalizada do regime pós-1964, que dificultava qualquer possibilidade de organização de gays, lésbicas e travestis nos anos 1960 e no começo dos anos 1970 não surgiu uma rede bem estruturada de ativistas para monitorar a situação, documentar as violações de direitos humanos quando elas ocorreram e mesmo fazer as denúncias públicas, afinal, a censura não permitia esse nível de liberdade de expressão e de ação política. Este processo de acompanhamento das agressões homofóbicas somente aconteceu a partir dos anos 1980, quando coletivos como Grupo Gay da Bahia (GGB) começaram a coletar e divulgar, sistematicamente, dados sobre as mortes violentas de gays, lésbicas e travestis."

O político Leonel Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, é o nome mais citado nessa coleção, seguido pelo ditador-general Emílio Garrastazu Médici. Considerado um líder da esquerda, Brizola aparece neste documento da Comissão da Verdade em Minas Gerais: "Antônio Ribeiro: ex-perito criminal, foi 'acusado de pertencer a um grupo de extrema direita' e de ser o responsável por no mínimo dois atentados, o primeiro ao 'Dr. Célio de Castro' e o segundo no Instituto de Educação, 'quando Brizola veio a Belo Horizonte', nessa ocasião sendo identificado e preso, como autor, pelo delegado Santos Moreira'".

Novidade: agora é possível adicionar rótulos aos arquivos do Pinpoint. Quando o usuário abre uma coleção, na lista de documentos há dois ícones ao lado de cada arquivo: uma lixeira e uma etiqueta ("Label Document"), com a qual dá para rotular cada arquivo.

Foto de capa: Tanques em frente ao Congresso Nacional após o golpe militar de 1964/  Arquivo Público do Distrito Federal

   

Assinatura Abraji