• 16.09
  • 2007
  • 11:50
  • -

'O Jornalismo de Precisão é ideal para descobrir a verdade', diz José Luis Dader

O jornalista José Luis Dader exerceu o jornalismo durante apenas dois anos, antes de se tornar um teórico da comunicação, o maior difusor do Jornalismo de Precisão na Espanha e uma das maiores referências mundiais no assunto. Em pouco tempo no dia-a-dia da profissão, incomodou-se com a acomodação da redação e resolveu se dedicar a “investigar por que os jornalistas sofriam tantas limitações ao seu trabalho”, como disse em entrevista ao jornalista Marcelo Soares, para o site da Abraji.

Ao descobrir o livro “Precision Journalism”, de Philip Meyer, na biblioteca de sua faculdade, Dader encontrou a alternativa mais concreta para “superar as grandes limitações do jornalismo convencional: a dependência de fontes amistosas e a subjetividade ou tendências ideológicas do próprio jornalista.” Essa forma de se fazer jornalismo, diz Dader, é o ideal “para tornar realidade um dos princípios mais nobres do jornalismo – descobrir a verdade (ou o mais próximo dela a que se possa chegar) nas questões mais graves que afetam o conjunto da sociedade, ajudando os aflitos a melhorar sua situação e afligindo os poderosos que se aproveitam dessas situações.”

Professor da Universidad Complutense de Madrid, na Espanha, Dader dará um curso para os sócios da Abraji, no dia 22 de setembro, em São Paulo. A Abraji, que está organizando a palestra com o Centro Cultural da Espanha, oferecerá a palestra gratuitamente para os sócios. Clique aqui para ler mais.

Leia a íntegra da entrevista com Dader:

Conte um pouco sobre sua carreira e de como conheceste o jornalismo de precisão. O que o encantou no livro de Philip Meyer?

O primeiro paradoxo é que eu só exerci o jornalismo como estagiário, numa agência de notícias espanhola, durante os verões de 1974 e 1975, nos meus dois últimos anos da faculdade de jornalismo. Embora eu tenha recebido ofertas muito tentadoras para exercer o jornalismo (era o começo da transição da Espanha para a democracia e surgiam jornais como El País), me interessou muito mais investigar por que os jornalistas sofriam tantas limitações ao seu trabalho – e não apenas políticas, mas, sobretudo, de preguiça mental e rotinas acomodadas –, que provocavam muitas vezes uma descrição superficial da atualidade. Eu me dediquei à docência e à pesquisa sobre a sociologia da comunicação, o papel do jornalismo na comunicação política, sua influência nos processos eleitorais, etc.

Já era professor universitário havia uns tantos anos quando quase por acaso descobri na biblioteca da minha universidade um livro em inglês com o estranho título “Precision Journalism”. Havia sido escrito em 1972 por um jornalista e professor também universitário chamado Philip Meyer, e trazia um montão de novas idéias para exercer a profissão. Ao mesmo tempo, dava muitas respostas à frustrante sensação de contradição que eu vinha sentindo entre a teoria sobre o jornalismo ou seu importante papel social e a prática rotineira e medíocre tão habituais. O livro de Meyer estava na nossa biblioteca havia muitos anos, e creio que, salvo mais um ou dois professores, ninguém o havia folheado ou tinha a menor idéia de seu conteúdo.

Pouco tempo depois, recebi um convite para participar como debatedor de um seminário na América Central sobre novas formas de entender o jornalismo. As idéias de Meyer e o seu Jornalismo de Precisão eram já desde então a forma mais inovadora e enriquecedora para tentar um jornalismo muito mais sólido.

O que desde então mais me atrai nesse tipo de jornalismo não é nem o trabalho com a matemática, nem a proximidade das novas tecnologias (que, ao fim e ao cabo, são ferramentas postas a serviço de um fim superior), e sim a capacidade do jornalismo de precisão de superar as grandes limitações do jornalismo convencional: a dependência de fontes amistosas e a subjetividade ou tendências ideológicas do próprio jornalista. No jornalismo convencional, toda afirmação ou declaração, por mais contundente que pareça, sempre pode ser respondida com outra afirmação ou declaração em sentido contrário. O jornalismo convencional mostra, mas não demonstra, e muitas vezes só mostra a parte que parece mais apetitosa ou simpática ao redator ou seu meio de comunicação. O jornalismo de precisão, por sua vez, mediante o emprego de muitas das ferramentas dos cientistas sociais e frente às crendices populares ou do senso comum, pretende demonstrar com dados bem contrastados e estruturados os fatos e problemas sociais que muitas vezes passam despercebidos e que os poderes públicos tendem a ocultar.

Que tipo de reportagem se faz, na Espanha, utilizando com mais efetividade o jornalismo de precisão?

Na Espanha, desgraçadamente, não podemos falar de nenhum repórter de prática constante e bem reconhecida de jornalismo de precisão. O jornalismo de precisão existe na Espanha, como vou demonstrar com uma série de exemplos no seminário que oferecerei na Abraji, mas trata-se de uma prática esporádica e que às vezes surge por intuição do repórter, que realiza uma reportagem nessa linha e no dia seguinte sua redação lhe pede que faça outra coisa completamente diferente. O jornalismo de precisão vem sendo conhecido nas faculdades de comunicação e jornalismo, e alguns grandes meios de comunicação, como El Pais e El Mundo, organizam alguns seminários monográficos onde eu, por exemplo, venho participando, e em outros que às vezes convidam alguns dos grandes mestres da especialidade, como o próprio Phil Meyer ou Steve Doig (que esteve no congresso da Abraji, em maio). Mas os mesmos jornalistas ou estudantes de jornalismo que assistem a esses cursos e te dizem que é a coisa mais extraordinária que já aprenderam sobre sua profissão também confessam que as oportunidades de praticá-lo em seus meios de trabalho serão limitadíssimas. As empresas consideram muito mais rentável o jornalismo convencional, sobretudo na nova formulação que dispõe inclusive de um rótulo atraente chamado “Jornalista Total” ou “Global”: o mesmo repórter é fotógrafo, tem que editar sua notícia para imprensa, rádio e televisão, talvez escrever uma adaptação para a edição eletrônica, manter um blog ativo, etc. Com toda essa carga de trabalho, espreme-se o jornalista ao máximo e não sobra tempo para a investigação serena e árdua que requer na maioria dos casos o jornalismo de precisão ou de rastreio de bases de dados.

Apesar de tudo isso, tem havido reportagens de grande impacto que alguns jornalistas espanhóis vêm obtendo graças a estratégias próprias do jornalismo de precisão ou de rastreio de dados, e que nunca teriam vindo à tona sem esse enfoque, como quando um jornalista da revista Interviú descobriu que o ministro da Agricultura era o principal sócio de várias empresas alimentícias, contra todas as normas de incompatibilidade política existentes. A informação foi convertida imediatamente em notícia de primeira página e seguida durante vários dias por El Pais e outros meios. E tudo surgiu por curiosidade do primeiro repórter de testar nos bancos de dados do Registro Mercantil Centralizado se um sobrenome escolhido a esmo, como o daquele ministro – que por sorte tinha um nome pouco comum –, podia estar em alguma das sociedades mercantis registradas.

No curso de verão de jornalismo investigativo promovido pelo Centre for Investigative Journalists em julho, em Londres, falou-se que a reportagem com o auxílio do computador não é uma prática muito constante para os jornalistas. Tal como no Brasil, os ingleses vêm tentando criar uma base dessa prática levando profissionais dos EUA e da Dinamarca para cursos. Como funciona em outras partes da Europa?

De fato, até onde eu saiba, em toda a Europa a RAC é uma prática minoritária ou não muito difundida. Uma das razões é o fato de a legislação sobre proteção de dados ser muito forte na maioria dos países europeus, e isso restringe em muito a possibilidade de acesso a muitos arquivos que permitiriam cruzar e descobrir coincidências documentais surpreendentes. Ainda assim, em alguns países como a Dinamarca e a Holanda, e também nos escandinavos – que têm uma legislação muito mais equilibrada entre os direitos de privacidade e acesso aos dados de importância geral –, existem jornalistas e associações de jornalistas investigativos que vêm praticando mais essa especialidade.

Conte um pouco sobre seu trabalho como divulgador do jornalismo de precisão. Como é a recepção dos livros que você escreveu e traduziu sobre o assunto?

De maneira sistemática, venho lecionando na Universidade Complutense de Madri uma disciplina de Jornalismo de Precisão desde 1996, aproximadamente. Antes (1990-1991), briguei duramente com os professores da minha faculdade de jornalismo para convencer-lhes da necessidade de incluir essa nova disciplina nos currículos que passariam a adotar. Na mesma linha, entre 1994 e 1996 lecionei também a nova disciplina na faculdade de comunicação da Universidade de Salamanca, onde eu me havia radicado como professor (regressando em 1996 a Madri). Entre 1988 e 1994 – os anos anteriores – dei seminários e realizei diversas atividades de divulgação desse tipo de jornalismo, como foi a tradução para o espanhol da segunda edição do livro de Meyer, em 1992 (“The New Precision Journalism”, de 1991, disponível na Internet em http://www.unc.edu/~pmeyer/book/ ), e a organização de um grande congresso internacional em Madri, onde explicaram seu trabalho os grandes mestres da especialidade, como Phil Meyer, Dwight Morris e Elliot Jaspin. Atualmente, além do curso regular que leciono na Complutense, costumo ser convidado a seminários monográficos em alguns dos mestrados profissionais que jornais como El Mundo e El País mantêm para a formação especializada de jornalistas.

A recepção quase sempre é semelhante. Em primeiro lugar, um assombro enorme perante a forma de trabalho e os resultados que esse tipo de jornalismo permite; uma vontade enorme de sair praticando, como repulsa e reação a muitas das limitações do jornalismo convencionais. Mas também isso se divide com a sensação de que faz falta um grande esforço autodidático para fazê-lo com qualidade (em conhecimentos de estatística e de softwares para análise de dados), e um grande desânimo perante as dificuldades que já comentei por parte das empresas para facilitar que alguns dos seus redatores possam praticá-lo.

Vários jornalistas dos EUA consideram que o conceito de jornalismo de precisão é datado, coisa dos “novos jornalismos” dos anos 70. O que consideras de mais atual no jornalismo de precisão?

Não acho estranha essa opinião, porque ela responde às tendências comerciais que se impõem com maior facilidade no mercado. O jornalismo contemporâneo, em todas as sociedades, vive cada vez mais ligado ao sensacionalismo, às “notícias rápidas”, ao “infoentretenimento”, e como único contraponto de suposta profundidade se tem uma crítica política mordaz, mas baseada apenas na subjetividade e no sectarismo de cada grupo midiático (um tipo de crítica que apenas requer que se seja brilhante e apaixonado na retórica, mesmo que os dados sejam incompletos ou provenham apenas de rumores). Em tais condições, não é raro que muitos jornalistas pensem que o jornalismo de precisão e de análise informatizada de dados esteja superado. Mas “superado” é uma palavra com duplo significado. Superado significa que já não se faz. Mas não se pode aplicar ao jornalismo de precisão a palavra superado no sentido de obsoleto por falta de utilidade ou de eficácia. Muito antes pelo contrário: o jornalismo de precisão é hoje tão necessário como sempre foi, ou até mais. Porque vivemos num mercado de informação supersaturado e cheio de frivolidade. Parece, então, que a melhor notícia é a mais sensacionalista e que os melhores jornalistas são os que gritam mais ou metem suas câmeras de vídeo nos lugares mais insólitos. Mas muitas vezes essa informação resultante não nos serve para compreender o que está acontecendo, quais são os problemas estruturais mais sérios da nossa sociedade, onde se produzem as decisões mais graves sem que às vezes nem as próprias autoridades estejam conscientes disso. E tudo isso pode voltar a vir à tona graças à colaboração do jornalismo de precisão (muito embora, é claro, outras formas e estratégias de fazer jornalismo também possam ajudar enormemente).

Como você avalia as mudanças por que passa a imprensa e a própria profissão de repórter com os avanços tecnológicos?

As novas tecnologias podem ser uma ferramenta de dois gumes para o serviço à sociedade que supostamente o jornalismo pretende realizar. Elas podem ser como um show pirotécnico que se dissipa poucos minutos depois de sua colorida encenação. As notícias vindas pelos celulares, as múltiplas redes de televisão, os blogs e até o chamado “jornalismo cidadão” podem nos inundar e rodear de informação da atualidade por todos os lados. Mas o cidadão pode nunca antes ter se sentido tão perdido no meio de tanto caos informativo. Para os profissionais do jornalismo, como eu disse antes, tantas novas tecnologias podem significar que ele precise ser capaz ao mesmo tempo de dominar ferramentas de informática, de edição eletrônica, de produção audiovisual, etc., mas o peso de tantos trabalhos diversos ao mesmo tempo pode obrigá-lo a contar apenas o que é mais óbvio e auto-evidente em tudo o que ocorre.

Por outro lado, essas mesmas tecnologias são as que permitem uma investigação muito mais depurada e inquestionável e que permitiria trazer à luz evidências de corrupção, irregularidades ou simplesmente de problemas sociais pendentes, com uma eficácia impossível de obter sem a colaboração da velocidade de processamento e análise das novas tecnologias. Mas essa outra forma de utilizar as novas tecnologias requer uma perspectiva intelectual e uma forma de organizar o trabalho do jornalista que muitas vezes vão na direção oposta do que se procura impor nas organizações midiáticas.

Que mensagem deixaria para os jornalistas brasileiros?

A mesma mensagem que exponho aos desiludidos jornalistas espanhóis quando vêem as dificuldades que se enfrenta no jornalismo de precisão e no rastreio informático de dados: que este é um tipo de jornalismo ideal para tornar realidade um dos princípios mais nobres do jornalismo – descobrir a verdade (ou o mais próximo dela a que se possa chegar) nas questões mais graves que afetam o conjunto da sociedade, ajudando os aflitos a melhorar sua situação e afligindo os poderosos que se aproveitam dessas situações.

A prática do jornalismo de precisão nos tempos atuais não é fácil, como nunca foi fácil o jornalismo de excelência. Mas precisamente graças às novas tecnologias e à aplicação à prática jornalística das estratégias de análise dos cientistas sociais, a excelência na explicação dos acontecimentos e problemas mais relevantes pode ser mais segura e indiscutível do que nunca.

Embora o jornalismo de precisão não possa ser aplicado todos os dias e nem a todo tipo de notícias, atrever-se a utilizá-lo quando o tema o requeira pode dar tanta satisfação ou mais (ao jornalista e à sociedade) que as mais espetaculares exclusivas dos correspondentes de guerra ou os jornalistas investigativos mais famosos da história.

Assinatura Abraji