- 16.02
- 2011
- 17:25
- Millos Kaiser
O CARA SEM CARA DA GLOBO
Publicado na revista "Trip" de fevereiro de 2011:
AVISO
As Páginas Negras que você vai ler a seguir são diferentes do habitual. Você não irá conhecer a fundo a vida pessoal de nosso personagem, tampouco verá fotos de seu rosto. Essas foram as condições para que esta entrevista acontecesse. A razão de elas existirem é simples: a identidade de Eduardo Faustini deve permanecer em sigilo absoluto. Suas próximas matérias e sua própria vida dependem disso.
Você nunca viu seu rosto, no máximo escutou sua voz. Mas puxe na memória as matérias de televisão mais chocantes que você viu nos últimos 15 anos, aquelas em que criminosos confessavam tudo que fizeram ou eram pegos no ato sem perceber que estavam sendo filmados – com grandes chances, nos créditos delas estava “Reportagem: Eduardo Faustini”. Em imagens escuras, sem enquadramento e com áudio embolado, ele flagrou o pior lado do Brasil. Fingiu ser um idoso para delatar os maus-tratos em asilos; passou-se por caminhoneiro para mostrar os esquemas de propina nas rodovias; foi secretário interino na prefeitura de São Gonçalo (RJ) para escancarar a corrupção no município; deu provas definitivas para as prisões de Comendador Arcanjo, chefão do crime organizado em Mato Grosso, e de Hildebrando Pascoal, o deputado da motoserra. Políticos, traficantes, empresários, pedófilos, médicos... Faustini já denunciou desonestos das mais variadas espécies. Já mandou mais gente para o xadrez do que muito policial, mas afirma: “Não investigo para punir, mas para informar”.
Seu golpe mais recente foi na segurança de nosso sistema aéreo. Faustini embarcou em voos domésticos nos seis maiores aeroportos brasileiros despachando uma mala com uma réplica de AR-15, um pacote de açúcar simulando cocaína e R$ 100 mil em dinheiro cenográfico. Em uma das viagens, chegou a entrar na aeronave com o fuzil falso e exibiu-o para o cinegrafista. Não foi pego. Dias antes de as cenas irem ao ar, a Infraero ligou para o Fantástico pedindo seu cancelamento, mas foi ignorada. Com Olimpíada e Copa do Mundo a caminho, a reportagem foi como uma bomba cujos efeitos ainda se faziam sentir até o fechamento desta edição.
Desde 2002, ano do assassinato de Tim Lopes, a Globo mantém oito seguranças em sua cola. Seus deslocamentos são feitos sempre em carro blindado e, vez ou outra, Faustini tem que usar um colete à prova de balas por cima da camisa social. Duas vezes, ele e sua família foram obrigados a sair do país da noite para o dia e passar um mês fora do mapa. No condomínio onde residem, moradores receosos reuniram-se para tentar expulsá-lo do prédio. Ele sequer lembra quando foi a última vez que foi à praia. “Meu lazer”, ele diz, “é em casa.” Faustini papou praticamente todos os prêmios que existem no jornalismo brasileiro (Esso, Líbero Badaró de Telejornalismo, Embratel de Imprensa, Direitos Humanos de Jornalismo, entre vários outros), mas não pôde ir ao palco pegar nenhum deles. “Eu fico sentadinho na plateia enquanto um amigo recebe por mim. Mas eu prefiro assim. Sou tímido.”
A conversa que você lê a seguir foi fruto de duas tardes que passei com ele na sede de jornalismo da Rede Globo, no Jardim Botânico. Duas semanas antes, o país havia parado para assistir às imagens feita pela emissora de traficantes do Complexo do Alemão fugindo encurralados pelo Bope. Claro que Faustini estava lá. Na correria dos tiroteios, machucou o joelho e ainda estava andando meio manco. O profissional mais durão da casa chama a todos de “queridão” e é tratado da mesma forma. Ao cruzarmos por Régis Rösing, o jornalista esportivo diz para mim: “Você está entrevistando Deus”.
Faustini é congratulado o tempo todo nos corredores pelo seu trabalho, mas diz que muitos colegas têm medo de, por exemplo, acompanhá-lo para almoçar – justamente o que estou fazendo no momento. Assim que colocamos o pé para fora do prédio noto dois homens nos olhando de soslaio. Faustini parece não perceber e continua andando, enquanto um deles caminha na direção oposta e o outro vai para o lado, como se quisesse se posicionar atrás de nós. Medo. As pernas já começavam a bambear, e as histórias que acabara de escutar não ajudavam em nada. Até que. “Calma. São os seguranças”. Era a voz de Deus ao meu lado.
Como você virou jornalista?
Comecei como fotógrafo na revista O cruzeiro, moleque. De lá passei por vários veículos, mas não posso citar todos para não dar pistas da minha vida. Meu primeiro emprego na TV, que foi quando começou essa história de repórter sem rosto, no Documento especial, na Manchete. Não tinha repórter ancorando, apresentando a notícia, e aquilo caiu como uma luva para o tipo de reportagem que gosto de fazer.
Que tipo de reportagem?
De denúncia. De jogar luz em uma zona que está escura.
Mas não dá para fazer isso como os outros jornalistas fazem?
Eu admiro muito os profissionais que trabalham pela via formal, mostrando a cara, pesquisando documentos oficiais, recorrendo ao Ministério Público... O Caco Barcellos e o Marcos Uchôa, por exemplo, são assim, sou fã deles. Mas eu não trabalho dessa forma. Prefiro resolver a questão em uma filmagem. No dia seguinte, a casa do cara já caiu.
Quando você percebeu que seria um repórter investigativo?
Antes de tudo, acho bom dizer que, a meu ver, todo bom jornalismo deve ser investigativo. O que faço é, digamos, jornalismo com câmera escondida. Mas, voltando à pergunta, acho que foi n’O cruzeiro, quando fui cobrir uma apreensão de leite em pó. Voltei para a redação com as fotos, encontrei com meu editor no elevador e disse: “Não era nada de mais. Era só uma apreensão de leite em pó a granel”. E ele: “Sei, sei... Mas vem cá: você já viu leite em pó a granel?”. Fiquei com aquilo na cabeça e comecei a fuçar. Descobri que as sacas de leite haviam sido contrabandeadas de uma multinacional do Uruguai, uma puta história surreal. Foi ali que aprendi que, na maioria das vezes, o furo de reportagem não está na informação em si, mas no quão fundo você investiga ela.
Assumir outra identidade e usar câmeras escondidas não é “roubar no jogo”? Você não está cometendo uma ilegalidade para denunciar outra?
Acredito que a relevância de um fato é sempre mais importante que a infração que estou cometendo. Já tomei diversos processos, mas nenhum me acusando de criminoso. O interesse público é o meu foco. Pra mim, ele é mais importante que qualquer lei ou regra de etiqueta.
Você se sente prestando um serviço à população? Algo como um justiceiro social?
Não gosto desse termo. Quando cruzo com alguém aqui no corredor da emissora, perguntam: “E ai, vai foder quem esta semana?”. Ou: “Quem é que vai engasgar com a pizza de domingo desta vez?”. Mas eu juro para você que não tenho prazer em fazer a casa do cara cair. Não comemoro a prisão de um pedófilo ou a falência da empresa de um babaca qualquer. Comemoro, sim, uma reportagem bem-feita. Tenho amor pelo meu trabalho e o meu objetivo é fazê-lo da melhor forma possível.
Mas não dá uma pontinha de felicidade ver o cara no Jornal Nacional na segunda-feira de mãos algemadas?
Tudo bem. Tem uns caras que são filhas da puta demais. Vou lá numa escolinha no Nordeste, as crianças estudando sentadas em caixotes de feira, cheios de pregos saindo, os professores sem giz, sem merenda no almoço... e o prefeito desviando R$ 50 milhões. Sou ser humano, não dá para não sentir raiva.
Prefeitos e políticos em geral são alvos comuns seus. Por quê?
Os políticos não têm medo nenhum da Justiça, mas respeitam muito a imprensa. Eles preferem responder a um processo por 20, 30 anos a aparecer com a cueca cheia de dinheiro por 30 segundos na TV. A Justiça é muito lenta, ineficiente. Tanto que eles são os primeiros a falar: “Tô errado? Então me processa!”. Fora o absurdo que é o Segredo de Justiça. Isso não protege a dona Maria ou o seu João, protege apenas o milionário corrupto.
Já se arrependeu de alguma matéria?
Eu miro sempre nos peixes grandes, mas é aquela história: às vezes você quer pegar o tubarão e acaba pegando vários bagrinhos. Acontece de um laranja pegar cinco anos de cadeia e um assassino sanguinário pegar dois. É engraçado no Brasil: quando um crime vira escândalo nacional, parece que as penas aumentam. Mas aì eu não tenho o que fazer. Não costumo nem acompanhar o desenrolar de cada caso, já foco na próxima reportagem.
Já denunciou alguém que depois provou ser inocente?
Jamais. Não posso me dar ao luxo de errar. Tenho plena consciência de que, o dia que isso acontecer, vou para a rua. Perco todo o prestígio, todos os prêmios que já ganhei num piscar de olhos.
Você já se passou por caminhoneiro, dentista, político, empresário, médico... Faustini, você é, antes de tudo, um bom ator?
Realmente, mais fácil perguntar o que eu nunca fui. Mas o macete é controlar o corpo, o movimento. Fico mais nervoso dando uma palestra, dando esta entrevista aqui para você do que conversando com um traficante de fuzil nas costas. Na hora H, sei que não posso errar. O leão está vindo na minha direção e eu tenho apenas uma bala. Se eu não tiver as respostas certas e prontas, eu danço, como muitos dançaram. Não sinto fome, frio ou medo. No dia seguinte, tenho 40 graus de febre, mas na hora nada.
Você tem algum ritual antes de ligar a câmera? Faz alguma reza?
Sou católico, fui batizado. Mas não rezo, não. O que me protege mesmo e ampara são as cartas que recebo, de gente que nunca me viu, falando que estou na oração delas, que pedem pela minha proteção, para que eu não sinta medo.
Algum dos seus denunciados já desmascarou você?
Uma vez estava investigando médicos que davam laudos falsos para receberem reembolso do SUS. Um rapaz tinha caído de moto, quebrado um dente e o laudo dizia que ele havia feito uma cirurgia no cérebro, quebrado costelas, o diabo. Levei esse cara para o mesmo médico e registrei tudo com uma caneta filmadora. Eu estava tão à vontade que de vez em quando ainda abria a maleta onde estava o vídeo para checar o enquadramento. Ele examinou o rapaz e disse que ele não tinha nada na cabeça. Quando eu ia sacar o laudo anterior, o falso, um capitão da polícia entrou na sala. O médico, desconfiado, havia chamado-o sem eu perceber. Gelei e disse: “Capitão, só me diga uma coisa: você está em missão oficial aqui? Pois, se não estiver, pode sobrar para você”. Ele simplesmente saiu, o outro repórter da Globo entrou na sala e nós demos a matéria.
“A morte do tim foi um tapa na cara. pena ele ter tido de pagar com a própria vida para a gente aprender a lição”
Então, além de fingir que é você é outra pessoa, ainda tem que pensar na pauta, no enquadramento, no som...
Tenho que pensar em tudo isso. Quando acuso alguém de aceitar propina, preciso da imagem dele recebendo o pacote de dinheiro, entendeu? Depois aprendi que era mais fácil dar nota por nota para ficar mais claro para o espectador. Eu tenho que fingir que sou muito burro. Pergunto exatamente o que o cara acabou de me dizer para fazer ele se entregar: “O quê? Quer dizer que podemos resolver isso se eu te der X reais nesse lugar em tal hora?”.
A tecnologia de hoje não facilita o trabalho?
Claro, as câmeras estão muito menores, mais leves. Antigamente eu tinha que carregar uma mala de viagens com um furo pra uma filmadora Betacam, um trambolho dentro. Mas, cara, a quantidade de furos de reportagem que já perdi porque essas coisinhas deram pau... Desenvolvi até úlcera gástrica. E é foda porque a grande maioria das matérias não dá para repetir, é tentativa única. Fora isso ainda tem uma leve rixa com o pessoal da engenharia aqui, que exige padrão de qualidade de imagem que nem sempre é possível em certas condições.
Há outras exigências na Globo?
Não posso falar muito. Mas garanto que tenho liberdade. Cada vez mais. Mas sei que se quiser falar o que quero, do jeito que quero, tenho que ter minha própria emissora. Não é puxação de saco, mas sou muito grato à Globo. Sou um profissional muito caro, dou muito trabalho.
Quão caro?
Posso dizer que ganho um bom salário. Mas eles gastam mesmo é com a minha segurança. Tenho oito seguranças cuidando de mim há oito anos, 24 horas por dia. Eles se revezam, tem sempre três trabalhando. Só ando de carro blindado, tenho que usar colete à prova de balas de vez em quando. A Globo é mais preocupada com a minha vida do que eu. Acho que ninguém melhor do que eu mesmo para medir o risco que eu corro. Mas respeito a decisão deles.
A preocupação aumentou depois da morte do Tim Lopes?
Aumentou, mas, por incrível que pareça, a morte do Tim teve um lado bom. O jornalismo investigativo no Brasil melhorou muito, nos tornamos um dos melhores do mundo. Saímos da sombra, fundamos a Abraji [Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo]. A morte do Tim foi um tapa na nossa cara. Pena ele ter tido de pagar com a própria vida para a gente aprender a lição.
Que lição?
Nós éramos cúmplices dos criminosos que estávamos denunciando. Só subíamos morro depois de falar com as associações de moradores, que falavam com os traficantes. A gente aceitava que aquele território não era nosso, pedia autorização para entrar ali. Era um absurdo! E eu faço mea-culpa. Hoje vejo que não existe lugar que o jornalista não possa ir, e eu não vou mais abrir mão disso.
Existe alguma explicação para a morte do Tim?
Azar. Nosso trabalho é uma roleta-russa, sempre. E ele perdeu.
Mas você acha que ele deu mais chance para o azar acontecer?
Não. O que ele fez, subir o morro sozinho de noite, eu fazia sempre. Ainda faço. E o Tim, se você for ver, nem era o cara da denúncia. Ele era muito bom com personagens, descobria um garoto no meio do Complexo da Maré que tocava um violino lindíssimo, esse tipo de coisa. Ele tinha o olhar do excluído, veio de uma zona pobre. Mas as matérias mais perigosas era eu quem fazia. Por isso que digo: foi azar.
Onde você estava no dia fatídico?
Em casa. Me ligaram da Globo umas 3 h, falando que o Tim tinha subido o [Morro do] Alemão sozinho e não tinha descido ainda. Liguei para o advogado dos traficantes de lá e fui atrás dele. Falei com uns sete ou oito traficantes. Eles falavam que não sabiam de nada, que eu tava viajando. Até que um deixou escapar: “Mermão, já era”. Saquei na hora que alguma coisa muito ruim tinha acontecido.
Vocês eram muito próximos?
O Tim... Porra, o Tim era um cara sensacional. Vascaíno doente como eu. Vivemos muita coisa juntos. Ele tinha um senso de humor espetacular. Sua morte foi muito doída. O filho dele trabalha aqui na Globo, é um puta jornalista também. Eu tentei trazer ele para o Fantástico, mas não deixaram.
Na época criticaram a Globo dizendo que ela foi inconsequente em deixá-lo subir o morro sozinho.
Isso é ridículo. O que ele fez é praxe aqui e em qualquer outra emissora. Como falei, ninguém melhor que o próprio jornalista para medir o risco que ele corre. Somos como sacerdotes, nos sacrificamos pela notícia. Tem um cara aqui, por exemplo, que perdeu a perna na guerra da Angola. Ossos do ofício.
Reclamaram também que a morte ganhou um peso exagerado nas coberturas, que quando gente comum morre não é assim.
Isso aconteceu porque era notícia, oras. Um jornalista morto em ação é notícia; um cidadão é menos, porque acontece sempre. Mas essa discussão são outros quinhentos, questionar o que é ou não notícia.
Você já passou perto da morte?
Toda semana [risos]. Ligam para a redação toda segunda-feira me ameaçando. No começo ficava desesperado. Hoje quando ligam falando que vão matar a mim e a toda minha família eu respondo: “Amigo, você vai ter que entrar na fila”. O Ministério Público já interceptou diversos planos para acabar com a minha vida. E a polícia também já me contou de presos que revelaram ter sido mandados atrás de mim.
Você deve ter um bocado de inimigos.
É pelo menos um novo a cada domingo. Geralmente são mais, porque esses caras têm família, amigos, cúmplices... E eu estou fazendo isso há 15 anos, então você imagina. Não quero nem fazer essa conta.
Já encontrou com algum deles depois da reportagem? Já sofreu algum ataque na rua, por exemplo?
Sim, mas não posso falar a respeito.
Você anda armado?
Jamais considerei essa opção. Não me sentiria mais seguro com uma arma.
E a história que você fez plástica para mudar o rosto?
Isso é mentira. Na verdade, não preciso usar disfarce porque ninguém sabe como eu sou. Eu não mostro o rosto justamente para preservar minha próxima matéria. Como ninguém sabe como eu sou, pode acreditar que sou qualquer coisa.
Sua família sofre por causa do seu trabalho?
Quando meu filho era bem criança, tinha um amigão, daqueles de fé mesmo. Um dia o pai foi brincar com os dois e perguntou o nome do meu filho. “Faustini? Por acaso seu pai se chama Eduardo Faustini? Seu pai é um filho da puta, acabou com a minha vida, blá-blá-blá.” Ele era um fiscal de renda que eu havia denunciado. Pagou um esporro no meu filho, que depois veio tirar satisfação comigo. Tive que explicar pra ele o que faço. Vi que por mais que eu me esconda, que eu proteja eles, alguma parte do meu trabalho sempre vai resvalar na minha família.
Mas eles já passaram por alguma situação mais extrema, de perigo concreto?
Desculpe, mas não posso falar disso.
OK. Mas imagino que não seja fácil para eles...
Minha mulher tem ciúme do meu trabalho. São 30 anos de casado. Com o tempo aprendi a lidar melhor com a relação trabalho X família, mas já brigamos muito. Hoje eles nem sabem das pautas em que estou metido, só veem quando ela vai ao ar. Devo tudo a eles. Eu escolhi ter essa vida; eles, não. Mesmo assim, nunca me pediram para abandonar o que faço. Nunca. Pelo contrário, sempre me apoiaram.
A rotina na casa dos Faustini é muito diferente?
Eu não atendo telefone, por exemplo. Deixei de usar aliança. Faço de tudo para preservá-los, mas é foda: já tive segurança morando no salão de festas do meu prédio, já houve reuniões de condomínio pedindo a nossa expulsão... Duas vezes, tivemos de ir para o exterior da noite para o dia passar 30 dias fora. Vivi muitos momentos difíceis em casa.
Você sente culpa de afetar a vida deles com o que você faz?
Não, eles me entendem. O que me incomoda é quando amigos ou familiares ligam pra minha casa depois do Fantástico sentindo-se no direito de opinar sobre a nossa vida: “Mas por que ele se arriscou assim? Vocês já têm dinheiro, não precisam disso”, “Seu marido é maluco”, essas coisas. Gente que não tem a menor ideia do que realmente se passa.
Você nunca pensou em largar tudo, levar uma vida normal?
Nunca. Eu ia morrer. Não sei fazer outra coisa.
O que o motiva a fazer o que faz? Não é fama, porque isso você não tem.
Uma vez estava em um hotel bem mixuruca, tomando uma ducha, e vi duas crianças falando do Eduardo Faustini. Uma delas citou todas as minhas matérias! Foi a glória, maior recompensa que tive até hoje.
Não deu vontade de revelar quem era o Eduardo Faustini?
Não ia mudar nada. Se bobear eles nem iam acreditar em mim. Tenho medo de abrir essas concessões e começar a gostar da coisa. Se eu for na Hebe um dia, no outro posso ser desmascarado quando estiver fazendo uma matéria. E imagina o político lá na cadeia me vendo num programa de entrevistas colhendo os louros da prisão dele? Seria muita tripudiação da minha parte. Eu só não abro mão de assinar minhas reportagens. Tenho que existir de alguma forma.
Queria falar um pouco da guerra ao tráfico no Rio de Janeiro. Você acha que foi mesmo uma vitória como a mídia e a própria Globo anunciaram?
Foi uma semente. A cidade é uma empresa, e essa empresa agora é do Estado novamente. Estamos vivendo um momento único. Se perdermos esse bonde, não haverá outro. Os três governos estão alinhados. Gosto muito do [José Carlos] Beltrame. É um cara seríssimo, o primeiro a fazer um trabalho de inteligência de verdade. As UPPs são a melhor coisa que já aconteceu. São caras, mas funcionam.
Dois anos atrás a polícia também entrou no Complexo do Alemão, prendeu traficantes e fincou a bandeira do Estado no topo do morro. Mas o tráfico continuou.
Achar que o tráfico vai acabar é uma burrice tremenda. Estamos falando de territórios reconquistados. É óbvio que no Alemão, no Dona Marta ainda há drogas, assim como há em Nova York, em Roma e aqui na esquina. O que está em jogo é o direito de ir e vir dos cidadãos, de não haver mais ninguém controlando a distribuição de gás, de eletricidade. O Alemão era uma zona de exclusão. Delegado, carrasco e prefeito encarnados numa pessoa só, que era o traficante. Isso é muito pior que tráfico em si, que a droga.
E o que você acha de legalizá-las?
Tenho medo. O Brasil não controla nada direito. Como que vai controlar isso? Lembro bem de quando os bingos foram legalizados e foi aquela baita lavagem de dinheiro, até que eles fecharam novamente. Mas sou a favor do debate.
Você já experimentou alguma droga?
Maconha, uma vez. Detestei. Sou muito elétrico, me botou para baixo.
O antropólogo Luiz Eduardo Soares acredita que a situação carioca não vai mudar sem uma devassa na polícia e no Legislativo. Você concorda?
A PM do Rio tem um grau de corrupção inacreditável. Temos que investir nas corregedorias e botar uma galera nova, que valoriza a profissão, para trabalhar. Não dá mais para termos aquele policial de 50 anos barrigudão, que nunca vai delatar o companheiro. O Brasil sofre desse mal: ninguém investiga seus pares. Quem o faz vira X-9, delator.
Faustini, você se diverte de vez em quando?
Sim, quando trabalho [risos]. Meu lazer é em casa. Não posso ir ao cinema, à praia. O máximo que faço é ir a um restaurante, à casa de amigos. Nas férias, costumo ir para uma praia no Nordeste que adoro. Minha mulher me faz prometer que eu não vou entrar na internet, atender celular, mas não aguento. Vou escondido em uma lan house ou então peço o celular emprestado para alguém. Já pedi até para criança. É uma cena bem ridícula, mas não consigo me conter.
E a aposentadoria, chega quando?
Cara, você vai me achar maluco, mas com 80 anos quero trabalhar mais do que nunca. Os equipamentos vão estar mais modernos. Além disso, ninguém suspeita de um idoso. Vou denunciar clínicas, hospitais, médicos... vou botar pra quebrar.