Nove lições dos jornalistas chineses na cobertura da covid-19
  • 08.09
  • 2020
  • 13:26
  • Joey Qi

Acesso à Informação

Nove lições dos jornalistas chineses na cobertura da covid-19

Apesar de anos de repressão, o jornalismo investigativo conseguiu de alguma maneira sobreviver na China. Mas a pandemia de covid-19 desencadeou uma nova onda de exposição de escândalos. Nos poucos meses desde o começo da pandemia na cidade de Wuhan, a mídia chinesa parece ter produzido mais reportagens investigativas de qualidade do que nos últimos anos.

Alguns fatores externos são relevantes no crescimento da atividade da imprensa. Diversas organizações de notícias chinesas aproveitaram uma curta “janela de oportunidade” para produzir e publicar reportagens investigativas amplamente divulgadas com o consentimento velado das autoridades.

As autoridades chinesas usam essas “janelas” para afrouxar o controle sobre os veículos de imprensa, enquanto monitoram de perto a opinião pública a fim de ajustar suas táticas de propaganda. E ao contrário dos protestos pró-democracia que aconteceram em Hong Kong no ano passado — que diziam respeito à política, um dos temas mais delicados na China —, a covid-19 afeta a todos, independente do sistema político. Em geral, as pessoas chegam, com mais facilidade, a um consenso sobre questões ambientais e de saúde pública.

Mas são, acima de tudo, os extraordinários esforços individuais ​​de certos jornalistas que impulsionaram esse renascimento súbito e vibrante do jornalismo investigativo na China.

Os jornalistas locais trabalham duro para produzir reportagens sustentadas por evidências sólidas, enquanto contornam os censores. Ainda que algumas histórias tenham sido removidas da internet poucas horas após serem publicadas, o público chinês — acostumado a localizar conteúdo sensível após anos de censura oficial — tem o hábito de arquivar matérias, republicá-las em outras plataformas como Notion e Evernote e compartilhá-las nas redes sociais, em uma corrida contra a censura.

Os melhores jornalistas do país se viram mergulhados em uma crise sem precedentes, com uma doença infecciosa desconhecida, pouco compreendida e fora de controle, dentro de um governo propenso a segredos.

Eles cobriram a covid-19, que já havia matado, em 3.mar.2020, mais de 3.200 pessoas na China (metade do número total de mortes em todo o mundo à altura da publicação do artigo original; o Brasil não havia nem sequer registrado a primeira morte). A grande maioria das mortes no epicentro havia sido registrada na província de Hubei, onde o novo vírus começou a se disseminar. Passados seis meses, a pandemia vitimou, por enquanto, 4.733 chineses e mais de 120 mil brasileiros. No mundo inteiro, são quase 900 mil óbitos.

Os jornalistas trabalharam em condições extraordinárias: uma ameaça altamente infecciosa à saúde, falta de dados confiáveis, trauma generalizado, censura oficial e a quarentena imposta a cerca de 50 milhões de chineses.

Agora, com a covid-19 espalhada globalmente, quais conselhos os jornalistas chineses podem dar a seus colegas ao redor do mundo com base em sua experiência? O editor chinês da GIJN, Joey Qi*, entrevistou vários profissionais que estão na linha de frente da cobertura do novo coronavírus (aqui a reportagem original em inglês). A maioria pediu para permanecer anônima. Aqui está um resumo de suas dicas para repórteres em todo o mundo:


Aprenda as leis e os regulamentos básicos

Se você não é um repórter de saúde, certifique-se de se familiarizar com as leis e os regulamentos básicos de doenças infecciosas, bem como com os procedimentos de prevenção e controle, antes de começar a reportagem.

Quais são os critérios de diagnóstico para a covid-19? Quais são os procedimentos para relatar doenças? Quais são os métodos de controle da doença? Conhecer essas informações o ajudará a entender o sistema de prevenção e tratamento de doenças infecciosas.


Pesquise as políticas públicas

Com toda a mídia focada no novo coronavírus, é importante apresentar novos ângulos para a história. Wu Jing, repórter da Health Insight, site focado no setor de cuidados com a saúde, diz que muitas vezes os jornalistas podem encontrar pautas ao examinar as políticas de prevenção e controle da doença. “Por exemplo, depois que Wuhan foi colocada sob uma política de confinamento, podemos pensar sobre que tipo de problemas os residentes podem enfrentar”, explica ela.

“Existe algum serviço de transporte para os pacientes que precisam ir ao hospital? O governo local levou isso em consideração ao fazer esquemas de triagem?” Ao examinar essas políticas, você pode descobrir tópicos ainda não abordados.

Não negligencie os hospitais pequenos 

Quando surge um novo vírus, é essencial fazer duas perguntas: o que é esse novo vírus e de onde ele vem?

O Huanan Seafood Market, um mercado úmido (termo usado na Ásia para descrever mercados que vendem carnes e outros produtos perecíveis) em Wuhan, foi identificado como o local onde o surto de covid-19 começou. Wu Jing, da Health Insight, afirma que, enquanto os jornalistas geralmente se concentram em grandes hospitais, os pequenos hospitais próximos a esse mercado não devem ser ignorados, pois podem ser onde repórteres vão encontrar as pistas mais importantes.

Em geral, disse Wu, em vez de focar apenas em hospitais grandes ou em especialistas indicados pelo governo para combater a doença, preste atenção às pequenas unidades de saúde. Os pacientes costumam visitá-los antes de procurar tratamento em um hospital maior.

“Isso ocorre porque as pessoas infectadas com o novo coronavírus geralmente apresentam sintomas como tosse ou febre em um estágio inicial — elas são mais propensas a visitar um centro de saúde próximo ou um hospital regional, em vez de um hospital especializado em doenças infecciosas”, afirma. “Sem mencionar o tempo que você tem que esperar na fila em grandes hospitais para dar entrada.”


Localize-se na comunidade

Vários repórteres chineses dizem que entrevistas informais com médicos, voluntários e moradores locais os ajudaram em suas reportagens, permitindo-lhes descobrir histórias e entrevistados inesperados. Por isso, é importante ficar em uma boa localização, com transporte acessível, onde você provavelmente encontrará pessoas nas comunidades afetadas.

Wu Jing, por exemplo, se hospedou em um hotel próximo a dois hospitais destinados ao tratamento de pacientes de covid-19 e não muito longe do mercado de Wuhan. Isso facilitou a realização de entrevistas casuais com residentes, disse Wu, bem como o encontro com médicos que também estavam hospedados nesses hotéis.
 

Procure por fontes nas redes sociais

Quando o surto de covid-19 irrompeu, houve uma escassez temporária de recursos médicos, e muitos pacientes que esperavam para fazer o teste da doença pediram ajuda nas redes sociais, sobretudo na plataforma chinesa semelhante ao Twitter chamada Sina Weibo e no aplicativo WeChat.

Algumas das histórias mais lidas sobre a pandemia foram descobertas por jornalistas após essas postagens, como “Mãe faleceu na enfermaria de quarentena” (em chinês), publicada pelo site NetEase. Muitas pessoas também estão compartilhando histórias ao entrar em contato diretamente com as organizações de notícias, enviando mensagens para suas contas oficiais no WeChat.

Algumas das histórias mais lidas sobre a pandemia foram descobertas por jornalistas após postagens nas redes sociais de pacientes pedindo ajuda. Foto: Screenshot / NetEase
Algumas das histórias mais lidas sobre a pandemia foram descobertas por jornalistas após postagens nas redes sociais de pacientes pedindo ajuda. Foto: Screenshot / NetEase

Seja gentil, ganhe confiança e saiba quando desistir

Muitas pessoas estão angustiadas por causa dessa doença. É importante ser gentil com aqueles que desejam ser entrevistados, mostrando empatia, oferecendo equipamentos de proteção como máscaras cirúrgicas ou álcool em gel e ajudando-os a entrar em contato com organizações assistenciais, se necessário.

“Resumindo, forneça o que eles mais precisam no momento, quanto você puder”, explica Wu. Mostrar gentileza estabelece base para confiança mútua e boas reportagens, ajudando as pessoas a se abrir.

Aceite quando algumas pessoas se recusam a ser entrevistadas ou não respondem às suas mensagens. Aprenda a se desapegar das pautas.

Trabalhe junto com o seu editor

Produzir uma investigação ou reportagem sólida depende tanto de planejamento e colaboração com seu editor na redação, quanto do trabalho do repórter na linha de frente. Quando você é o repórter em campo, passar muito tempo entrevistando e encontrando histórias pode fazer com que não consiga acompanhar as mudanças na opinião pública ou o interesses dos leitores. É quando seu editor pode fornecer conselhos vitais sobre o rumo de sua investigação.

Os editores devem ser capazes de olhar a situação de uma perspectiva mais ampla. Ao trabalhar em um projeto importante, eles distribuem tarefas aos jornalistas e organizam as reportagens para publicação. Além disso, é fundamental que os jornalistas que permanecem na redação forneçam apoio logístico e emocional aos que estão em campo.

Forneça explicações claras

A cobertura de doenças infecciosas exige que os repórteres tenham conhecimentos específicos de saúde e medicina. Além de fornecer informações baseadas em evidências, os repórteres precisam ser capazes de explicar ou traduzir termos científicos e outras informações para o público. 

Cuide-se emocionalmente

Cobrir uma pandemia e acompanhar todas as notícias relevantes diariamente pode ser uma experiência traumática para os jornalistas. É preciso se cuidar emocionalmente. Alguns dos repórteres cobrindo a covid-19 em Wuhan compartilharam estas dicas:

  • Nunca se tranque em uma sala o dia todo. Certifique-se de ver amigos e conversar com eles.
  • Escolha um quarto de hotel com boa iluminação e uma janela com vista, pois o ambiente físico pode ter um impacto significativo nas suas emoções.
  • Não se afogue em notícias relacionadas à doença. Distraia-se lendo ou assistindo a conteúdo não relacionado.
  • É normal chorar quando você se sente estressado. É uma boa maneira de liberar suas emoções.
  • Manter a saúde física pode ajudar a lidar com emoções negativas. Experimente meditação, ioga ou outras formas de exercício para se manter saudável.

*Joey Qi é o editor do GIJN em chinês. Ele tem mais de sete anos de experiência em jornalismo, incluindo três anos em gerenciamento de mídia. É um dos membros fundadores da Initium Media, onde criou a seção de notícias diárias e formou a equipe de reportagem.

Produzido por Global Investigative Journalism Network

Traduzido por Ana Beatriz Assam

Foto: Adli Wahid / Unsplash

Assinatura Abraji