- 01.02
- 2022
- 15:12
- Pedro Teixeira
Acesso à Informação
Ministro da Saúde veta reportariado em “coletivas” sem aviso prévio
No dia do anúncio da inclusão da Coronavac no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra Covid-19 para o público de 6 a 17 anos de idade (21.jan.2022), os repórteres que estavam no saguão do Ministério da Saúde foram chamados às 18h30 a participar de uma coletiva. Em seguida, esses jornalistas começaram a avisar outros colegas de profissão que não estavam ali nem teriam a oportunidade de saber do evento até então. Até enviar um aviso às 18h54, em grupo fechado do Telegram, dois minutos após a transmissão ter sido iniciada no Facebook, a pasta não havia informado se o pronunciamento seria transmitido nas redes sociais.
O episódio não foi o único nem o primeiro. Em meio ao alastramento da variante ômicron - com 1,3 milhão de casos registrados no país na última semana, o maior número computado para sete dias -, ao debate sobre a vacinação infantil e ao apagão de dados epidemiológicos que durou 35 dias, seis repórteres relataram à Abraji dificuldade na cobertura do combate do Ministério da Saúde à pandemia de covid-19.
De acordo com os depoimentos, os avisos de coletiva têm sido feitos em cima da hora desde dez.2021, em ao menos quatro situações, quando estavam em pauta assuntos de grande interesse público, como o ataque hacker ao Ministério da Saúde e o debate da imunização de crianças. Os profissionais pediram para ter suas identidades resguardadas para evitar represálias a sua atuação profissional.
Em alguns dos eventos, o Ministério limita a audiência a cinegrafistas e repórteres cinematográficos, sob alegação de prevenção sanitária contra a covid-19. Mesmo nas ocasiões em que a participação de jornalistas é permitida, não é possível fazer perguntas ao ministro Marcelo Queiroga.
“A menos que o governo seja acionado para anunciar algo extremamente emergencial, coletivas de imprensa podem ser planejadas”, avalia a jornalista e pesquisadora doutora na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Sabine Righetti. Para a especialista, que comanda a Agência Bori, de divulgação científica para jornalistas, seria esperado, em uma situação pandêmica, que o Ministério da Saúde mantivesse conversas periódicas e sistemáticas com a imprensa em dias e horários fixos na semana.
Righetti afirma que, se o governo entende que as coletivas estão causando aglomeração, poderia, em quase dois anos de ambiente pandêmico, pensar em soluções: “coletivas em ambientes abertos, minicoletivas com grupos menores de jornalistas ou a garantia de que os repórteres consigam fazer intervenções mesmo que estejam acessando remotamente a coletiva”.
“É preciso sempre lembrar que a intervenção do jornalista é a intervenção da sociedade. Um governo que faz declarações sem ser questionado pela imprensa não está dialogando com a sociedade”, acrescenta Righetti.
Os repórteres afirmam ser atendidos pelo ministro em frente à portaria do Ministério da Saúde, mas, mesmo no fim das coletivas, durante a saída do ministro da bancada, são impedidos de fazer perguntas pelos seguranças da pasta, que impedem o tradicional quebra-queixo, quando repórteres fazem perguntas rápidas e profissionais de rádios e Tv gravam suas sonoras.
Especialista em administração pública e observadora do avanço da pandemia no Brasil desde o princípio, a professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Lorena Barberia, afirma que as coletivas de imprensa são, em norma, os momentos em que o governo presta contas, esclarece dúvidas e se mostra transparente. “Se o Ministério não consegue responder a uma pergunta, deveria, inclusive, depois da entrevista, se reunir para encontrar soluções e informar a sociedade”.
A deterioração da transparência na pasta da Saúde coincidiu com o momento em que o ministro Queiroga impôs dificuldades ao início da imunização pediátrica, ao dizer que a aplicação da vacina seria apenas possível mediante prescrição médica - ideia da qual recuou após críticas -, e decidiu abrir uma consulta pública sobre a pauta. Passou então a ser chamado de “Queirodes”, termo cunhado pelo comentarista da Globonews Valdo Cruz.
O apelido faz referência a Herodes, o rei da Judeia que, segundo a Bíblia cristã, ordenou o assassinato de todas as crianças de até dois anos, após receber informações de que, de acordo com a tradição cristã, Jesus Cristo seria o futuro rei dos judeus.
Conforme os profissionais ouvidos pela Abraji, o comportamento do ministro mudou desde então. Disse que “Queirodes” eram os jornalistas da Rede Globo, “povo de mau agouro”, além de ter chamado a Globonews de “Narciso”, personagem da mitologia grega que se apaixonou pelo próprio reflexo.
As declarações de descrédito à imprensa não se limitaram à emissora carioca. Queiroga alegou que a Folha de S.Paulo e o Uol “distorceram a realidade” ao publicar a seguinte fala dele: "há cerca de 4 mil óbitos onde há uma comprovação de uma relação causal com a aplicação da vacina”. O chefe da Saúde foi além e disse que os veículos “fizeram um jogo de palavras para desinformar”.
Em resposta, a Folha de S.Paulo mostrou, com base em relatórios do próprio Ministério da Saúde, que houve um óbito com ligação direta à vacina contra a covid-19 - quase 170 milhões de brasileiros receberam ao menos uma dose do imunizante. O ministro então voltou atrás nos ataques.
Sabine Righetti recorda que há pesquisas mostrando que descredibilizar a imprensa e outras instituições,como universidades, Anvisa, OMS (Organização Mundial de Saúde), tem sido estratégia recorrente do governo (e de outros governos de extrema direita pelo mundo), assim como disseminar desinformação por redes sociais próprias e institucionais.
A especialista pontua que, em um ambiente de civilidade, as críticas são saudáveis e naturais das democracias, mas, ao desacreditar recorrentemente a imprensa, “constrói-se um cenário em que tudo que a imprensa publica passa a ser questionável”.
A Abraji procurou o Ministério da Saúde para ouvir a sua posição sobre as críticas levantadas nesta matéria, mas não obteve respostas, assim como muitos dos repórteres relatam dificuldades para receber posicionamentos da pasta.
Apagão de dados e outros entraves
Entre 10.dez.2021 e 14.jan.2022, o Brasil viveu um apagão de dados agravado por baixa testagem, o que dificultou no período qualquer análise sobre o surto da variante ômicron. Os sistemas de monitoramento de casos, internações e mortes, além dos dados de vacinação, foram tirados do ar por um ataque cibernético.
As informações começaram a voltar ao ar na noite de 14.jan.2021, com a retomada do Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe). O acesso ao Painel Coronavírus Brasil foi restabelecido em 17.jan.2022, mas muitos usuários relatam que seus dados vacinais não foram atualizados no aplicativo ConectSUS, que tem sido acessado pelos usuários para ingressar em ambientes que requeiram comprovação vacinal.
A professora da USP Lorena Barberia explica que, sem dados, não se sabe o que está acontecendo na pandemia no país, o que pode causar confusão generalizada. “Um mês sem dados epidemiológicos seria tempo demais antes da pandemia. Agora, é inaceitável”, avalia.
De acordo com Barberia, os sistemas de informação são fundamentais para acompanhar tanto as causas mortis dos óbitos quanto para verificar a adesão à vacinação nas menores frações do território brasileiro. A plataforma DataSUS, que reúne dados sobre as condições sanitárias do país, foi criada na década de 90 justamente para orientar estratégias de saúde pública em todas as áreas.
A docente da USP aponta ainda que os problemas com dados inconsistentes vêm de antes da queda dos sistemas. Segundo a especialista, quando se olham os números de hospitalizações, é possível perceber defasagens de até um mês em relação à quantidade de casos publicada pelo Ministério da Saúde.
“Por exemplo, não há informações nacionais precisas sobre casos de reinfecção, hospitalizações e até de quem está ou não está vacinado”, Barberia enumera. Todos seriam dados importantes para saber a situação do Brasil no tocante à covid-19, mas não houve um esforço para produzi-los, segundo a professora. “Esse contexto de opacidade não decorre de um sistema ou outro cair. Temos várias evidências de uma prática sistemática de apagão de dados”, pondera.
A Abraji denunciou a falta de transparência em duas outras ocasiões: primeiro pela quantidade parca de coletivas de imprensa e depois pela qualidade insuficiente dos dados disponíveis sobre a crise sanitária. À época, o chefe da pasta ainda era o general da ativa Eduardo Pazuello.
Queiroga assumiu o lugar de Pazuello com promessas de moderação, quando o Brasil enfrentou o período mais mortal da pandemia, nos primeiros meses de 2021. Em 16.mar.2021, um dia após a sua indicação, Queiroga afirmou que era necessária a “união da nação” para enfrentar a “nova onda” da pandemia da covid-19 e defendeu a vacina contra a doença.
Foto de capa: Wikimedia Commons