- 29.01
- 2021
- 10:32
- Mirella Cordeiro
Liberdade de expressão
Lei para combater a desinformação segue no Congresso com pontos positivos e negativos
O fim dos bloqueios de jornalistas no Twitter por parte de pessoas que cumprem cargo público e a coleta massiva de dados pessoais pelos aplicativos de mensagens são possíveis consequências do Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como “PL das fake news”.
O texto está na Câmara dos Deputados desde o ano passado e, com o recesso parlamentar chegando ao fim na próxima semana, especialistas ouvidos pela Abraji ressaltam a importância de debater ainda mais a iniciativa com a sociedade, sob o risco de violar liberdades individuais e prejudicar o trabalho de jornalistas.
Desde que o Congresso Nacional começou a discutir propostas para criar a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, no primeiro semestre de 2020, várias versões foram sugeridas. O PL 2630/2020 foi o documento que mais avançou até o momento, tendo sido aprovado no Senado em 30.jun.2020 e encaminhado à Câmara poucos dias depois. No entanto, a versão é controversa.
O projeto foi aprovado sob contestação de organizações da sociedade civil. Mais de 50 entidades nacionais e internacionais, incluindo a Abraji, assinaram uma carta pedindo o adiamento da votação do texto.
“Nesta nova versão do relatório, o PL 2630/2020 tornou-se um projeto de coleta massiva de dados das pessoas, pondo em risco a privacidade e segurança de milhões de cidadãos. Sem tempo hábil para debate e amadurecimento, o texto pode resultar numa lei que instaure um novo marco regulatório de Internet baseado na identificação massiva e na vigilância e inviabilize o uso das redes sociais e de aplicativos de comunicação”, dizia a declaração.
Mesmo assim, os senadores aprovaram o texto substitutivo do colega Angelo Coronel (PSD-BA) às pressas.
Na Câmara, foi convocado um ciclo de debates com especialistas que aconteceu em julho e agosto do ano passado. Foram 11 mesas virtuais para discutir a necessidade de uma lei de combate à desinformação, como promover maior transparência, moderação de conteúdos, entre outros temas.
Mais de um mês após o fim dos debates, o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) circulou uma proposta de texto substitutivo entre os parlamentares quase tão polêmica quanto a versão que saiu do Senado.
Desde então, a Casa aguarda o encaminhamento de todo o material ao relator, que o novo presidente da Câmara ainda deve escolher para conduzir o projeto.
Do Poder Público
Um ponto presente no texto aprovado pelo Senado e que permanece na proposta do deputado Orlando Silva é o capítulo sobre o Poder Público. O projeto estabelece que perfis das redes sociais de autoridades em mandatos eletivos são de interesse público. Na prática, não poderia mais haver bloqueios de contas impedindo os cidadãos de acompanharem as redes de pessoas em cargos públicos.
Bia Barbosa, uma das fundadoras do Intervozes e integrante da Coalizão Direitos na Rede, explica que, se o perfil é usado com uma função pública, “todos têm que ter direito ao acesso a ela, principalmente jornalistas.”
Além do acesso, Ivar Hartmann, professor da Fundação Getúlio Vargas, lembrou do direito à liberdade de expressão. Em entrevista à Abraji em dez.2020, o professor explicou que ninguém pode ser excluído da conta de uma autoridade se o perfil nas redes sociais é usado para comunicar ações do cargo.
Desde set.2020, a Abraji monitora casos em que jornalistas são bloqueados no Twitter por pessoas em cargos públicos. Até o momento de publicação desta reportagem, 72 profissionais relataram ter sido bloqueados. Os casos chegam a 148, já que uma mesma pessoa pode ser impedida de acompanhar mais de uma autoridade. O presidente Jair Bolsonaro é a figura que mais bloqueia o acesso de jornalistas ao seu perfil, com 39 casos. Confira o nosso trabalho.
O capítulo sobre o Poder Público ainda traz outras obrigações relevantes, como a transparência em relação à publicidade. A versão aprovada no Senado diz que “as entidades e os órgãos da Administração Pública [...] deverão fazer constar nos seus portais de transparência os seguintes dados sobre a contratação de serviços de publicidade e propaganda ou impulsionamento de conteúdo por meio da internet.” Em seguida, o texto especifica o valor do contrato, dados da empresa, entre outras informações.
Rastreabilidade
O artigo 10º da versão escrita pelo senador Angelo Coronel foi um dos principais pontos contestados pelos pesquisadores. O texto determina que os “serviços de mensageria privada devem guardar os registros dos envios de mensagens veiculadas em encaminhamentos em massa, pelo prazo de 3 (três) meses, resguardada a privacidade do conteúdo das mensagens.”
O objetivo é possibilitar um posterior rastreamento do autor de mensagens falsas que forem encaminhadas em massa – “envios de um mesmo conteúdo por mais de cinco usuários em intervalo de até 15 dias para grupos, listas de transmissão ou mecanismos similares”.
Ainda que as mensagens sejam criptografadas, o registro de todos os metadados, como quem enviou para quem, a que horas, de que tipo de aparelho e o IP da conexão, geraria uma coleta massiva de dados, como explicou Barbosa.
“Você parte do princípio de que todo usuário é um suspeito em potencial. Você guarda o registro das trocas de todo mundo para, se você receber uma denúncia, eventualmente conseguir chegar à autoria dessa mensagem”, completou.
A premissa acaba gerando outro problema, já que quem começa a compartilhar a mensagem falsa não é necessariamente o autor das “fake news”. “Muitas vezes, há conteúdos desinformativos publicados no Facebook e alguém coloca no WhatsApp”, exemplifica Barbosa.
Além disso, há sinais de quebras da cadeia de encaminhamento em massa. “Se eu receber o conteúdo em um grupo, baixar no meu computador e, um dia depois, encaminhá-lo, eu quebrei a cadeia de rastreabilidade”, completa.
Cristina Tardáguila, sócia-fundadora da Agência Lupa e diretora da International Fact-Checking Network (IFCN), acrescenta que há riscos em manter o registro de tantos dados: “Como garantem que esse material será devidamente protegido e que os usuários das diversas plataformas e aplicativos de mensagens terão os seus dados e as suas informações pessoais guardadas de forma devida?”, questiona.
Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet
A proposta de criação de um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet foi sugerida tanto na versão aprovada pelo Senado, quanto no texto do deputado Orlando Silva, com diferenças quanto à composição do grupo e às responsabilidades.
Barbosa e Tardáguila comentaram a versão que saiu do Senado, uma vez que o texto circulado entre os deputados incorporou algumas mudanças pedidas por especialistas
Para Tardáguila, a composição prevista para o Conselho deturpa o tema discutido pela lei. “O fato de se ter mais policiais e políticos do que especialistas em desinformação me parece uma distorção do problema”, afirmou.
O projeto determina 21 conselheiros, com participação de representantes da Polícia Federal, da Polícia Civil, da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e do Conselho Nacional de Justiça, para citar alguns dos agentes com assentos criticados pelas jornalistas.
Há dois lugares reservados para representantes da academia e da comunidade técnica, dois para o setor de comunicação social e dois para o setor de telecomunicações, mas não é evidente a participação de agências de checagem, por exemplo.
A diretora do IFCN acredita que o Conselho pode ter uma função muito abrangente ao elaborar um código de conduta para as redes sociais e serviços de mensagens privadas. “É um poder amplo de estabelecer regras, metas sobre desinformação. Mas não tem ninguém no conselho que sabe desinformação”, comentou.
Bia Barbosa destaca que a proposta de um grupo multissetorial para acompanhar a implementação da Lei pode ser uma boa alternativa, desde que incluídos os setores conhecedores do assunto.
Sobre o código de conduta elaborado pelo Conselho, ela ressalta que pode ser mais efetivo do que determinar as funções das redes sociais na lei, uma vez que as plataformas são dinâmicas. “Não é possível detalhar tanto o funcionamento de ferramentas de tecnologia em um texto de lei porque isso fica desatualizado de uma maneira muito rápida”, disse. Por isso, diretrizes determinadas pelo comitê podem ser mais fáceis de modificar conforme a necessidade.
A cofundadora do Intervozes lembra, ainda, o papel do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), um órgão multissetorial criado em 1995 para traçar diretrizes de uso e desenvolvimento da internet no Brasil. “É preciso avaliar se é necessário criar um novo conselho, como o Senado propôs e aprovou, ou se faz sentido transferir essas atribuições, por exemplo, para o CGI, que já está instituído”, sublinha.
Reclusão
O “PL das fake news” aprovado no Senado prevê multas para as plataformas digitais, em caso de descumprimento das obrigações previstas no texto. Já o projeto do deputado Orlando Silva incorpora a sanção prevista na versão do senador Angelo Coronel e prevê prisão para grupos que financiam e produzem desinformação de maneira sistemática.
Tanto na visão de Tardáguila quanto na visão de Barbosa, essa medida pode ser perigosa para os usuários.
A diretora do IFCN lançou dúvidas sobre o sistema judiciário, policial e carcerário do Brasil: “A gente recebe dezenas e centenas de possíveis checagens todos os dias. Se tivesse que prender centenas de pessoas por dia, qual setor da polícia faria isso, qual setor da justiça garantiria e em qual penitenciária a gente ia prender todo mundo?”
Há outro sinal amarelo: o fato de não existir um consenso sobre a definição de “fake news” é um impeditivo para criar uma pena de reclusão. “Todo mundo sabe o que é homicídio, é muito definido. Agora, a definição de fake news é muito complicada. Você vai tirar a liberdade de alguém por um crime que não está muito bem definido?”, argumenta.
Barbosa não acredita que a criação de um novo tipo penal seja a resposta para o problema da desinformação, pelo risco de penalizar cidadãos comuns. No entanto, ela defende que o texto do deputado acerta no enfoque: “Pegar grupos organizados que têm alto poder de financiamento, produção e difusão de desinformação.”
Caso a possibilidade de reclusão permaneça na lei, é necessário “debater com mais cuidado a redação do texto para garantir que não haja brechas e acabe sendo usada para criminalizar usuários comuns."
Autorregulação regulada
Mesmo com ressalvas, as jornalistas viram pontos positivos no capítulo Autorregulação Regulada, do projeto do deputado Orlando Silva.
O artigo 40º determina que as plataformas digitais, conduzidas pelo Conselho de Transparência e Responsabilidade, tenham um portal para receber denúncias sobre conteúdos ou contas e tomada de decisões sobre medidas de moderação.
Esse canal possibilitaria, por exemplo, que pessoas com contas bloqueadas questionassem a empresa e até recorressem da decisão, caso achassem pertinente.
Tardáguila entende que definir objetivos claros para as redes sociais e serviços de mensageria é importante. “Devemos estabelecer também que tipo de dado e que tipo de movimento as plataformas devem fazer, porque as tecnologias desovarem uma imensidão de dados não adianta nada”, diz. E acrescenta que ainda deve ser mais debatido quem decidirá as atividades dessas empresas.
Barbosa citou a pesquisa “Fake news: como as plataformas enfrentam a desinformação”, realizada pelo Intervozes no final de 2020, para comentar as atitudes das redes até hoje. “Uma das conclusões é que são medidas muito erráticas e muito reativas. Conforme os problemas vão acontecendo, as plataformas vão mudando seus termos de uso”, afirma.
Para a jornalista, as empresas avançaram pouco quanto à autorregulação desde quando surgiram. Por isso, outro termo passa a ser fundamental: a corregulação, um trabalho conjunto das plataformas com o Conselho de Transparência e Responsabilidade na internet.
“O principal mecanismo de corregulação previsto no texto é o código de conduta de elaboração pelo Conselho. Sem nenhum prejuízo de as plataformas também avançarem as suas próprias medidas nos seus portais de transparência e na divulgação dos seus relatórios”, afirma.
Resolvendo o problema
Tardáguila é enfática ao afirmar que uma legislação não resolverá o problema da desinformação: “A base de dados da IFCN mostra que não existe nenhum país do mundo que tenha adotado uma legislação anti-desinformação, anti-fake news, e que tenha conseguido reduzir as notícias falsas.” Além disso, há o risco de criar outros problemas, como prisão de usuários comuns por compartilharem notícias falsas.
Para a jornalista, existem duas possibilidades de amenizar o problema da desinformação. “A primeira é a colaboração em excesso. Checadores se unem com imprensa, com plataformas e com poderosos.” Essa cooperação gera “uma enxurrada de notícias verdadeiras e de qualidade.”
Uma experiência semelhante no Brasil foi a campanha contra desinformação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no final de 2020, próximo às eleições municipais.
A segunda solução, a longo prazo, é a educação: “A Finlândia e o Reino Unido estão investindo em um currículo básico de alfabetização midiática e checagem de dados para crianças”, comentou. O resultado do investimento será conhecido no futuro, mas “tendemos a acreditar que o solo fica menos fértil para o desinformador quando você educa uma população.”