Justiça de SP arquiva caso de Daniel Arroyo, atingido por bala de borracha em protesto
  • 14.10
  • 2021
  • 12:00
  • Abraji

Liberdade de expressão

Justiça de SP arquiva caso de Daniel Arroyo, atingido por bala de borracha em protesto

Foto de capa cedida por: Rogério de Santis/Ponte Jornalismo

O juiz José Fernando Steinberg, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), acolheu o pedido do Ministério Público do Estado para arquivar o inquérito que apurava abuso de autoridade e responsabilidade criminal da Polícia Militar por lesão leve. Um agente, não identificado, feriu com disparo de bala de borracha o fotógrafo Daniel Arroyo, da Ponte Jornalismo, durante manifestação pelo passe livre, em janeiro de 2019, na Av. Paulista.

Ao sentir a pancada no joelho causada pelo tiro, Arroyo pediu ajuda a um PM que respondeu: "Beleza, vida que segue". Como no caso do jornalista da Ponte, levantamento da Abraji para a rede Voces Del Sur mostra que no Brasil o Estado é o principal agressor de profissionais de imprensa.

De 549 alertas contra a liberdade de imprensa registrados em 2019 e 2020, 354 (64%) tiveram atores estatais por trás. E essa parcela segue crescendo em 2021, ano em que o Estado já é o responsável por 73% (220) dos 303 casos registrados.

O tiro que feriu seu joelho, conta Arroyo, foi o segundo disparado pelo PM. O primeiro atingiu um manifestante pelas costas, o segundo era destinado ao mesmo rapaz, porém pegou o fotógrafo, que estava a 1,5 metro de distância do manifestante.

Quando prestou depoimento à Polícia Militar, o profissional de imprensa ouviu de um capitão a seguinte pergunta: "O tiro foi direcionado a você?" Arroyo respondeu que não, mas destaca que isso não exime o PM que atirou.

Em nov.2019, a promotora Rafaela Tombini solicitou pela primeira vez arquivamento do inquérito, sob alegação de falta de provas. Ela afirma que o fotógrafo teria sido intimado a depor em 22.out.2019 e não compareceu. Arroyo disse à Abraji que nunca recebeu essa intimação.

Ainda em dez.2019, a advogada do fotojornalista solicitou a inclusão nos autos de fotos feitas por Arroyo, nas quais é possível ver que, em lugar do nome dos policiais, aparece uma identificação alfanumérica, usada pela polícia paulista em protestos. Segundo Arroyo, não houve esforço para identificar o autor dos disparos.

O caso foi então reaberto, veio a pandemia, e pela 2ª vez o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) pediu o arquivamento em fev.2021, sendo que o juiz concedeu o pedido.

“No momento da abordagem dos manifestantes, a vítima foi atingida por um disparo de bala de borracha, ocasionando lesão leve em seu joelho direito, conforme laudo pericial”, escreveu a promotora de Justiça Regiane Pereira, acatando argumento da Polícia Militar de que não houve intenção por trás dos ferimentos causados ao jornalista.

Para o presidente da Abraji, Marcelo Träsel, o argumento de que não foi possível identificar o policial do 78º distrito de São Paulo que disparou uma bala de borracha contra o fotógrafo Daniel Arroyo, apresentado pelo MP-SP para arquivar o caso, é inadmissível em uma democracia e, se verdadeiro, evidencia graves problemas de gestão na PM.

“Se a Justiça aceitar justificativa do MP-SP, estará abrindo um precedente perigoso, que permitirá a agentes de segurança se livrarem de punição por abusos em ocorrências semelhantes no futuro e promoverá a impunidade noutros casos de violações à liberdade de imprensa durante a cobertura de manifestações", alertou.

Precedente no STF


Fotojornalista Alex da Silveira, vítima de disparo de projétil de borracha. Foto cedida por: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

Considerado um caso paradigmático em relação a violência contra jornalistas em manifestações, o recurso extraordinário de Alex da Silveira foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em jun.2021 com repercussão geral.

"É objetiva a Responsabilidade Civil do Estado em relação a profissional da imprensa ferido por agentes policiais durante cobertura jornalística, em manifestações em que haja tumulto ou conflitos entre policiais e manifestantes.”, diz a decisão que teve votação quase unânime (10 a 1).

O fotógrafo perdeu a visão do olho esquerdo após ter sido atingido por uma bala de borracha disparada pela Polícia Militar, enquanto trabalhava na cobertura de uma manifestação de professores em São Paulo, em maio de 2000. Ele procurou a Justiça em 2003, e foi só em 2021 que o STF lhe deu ganho de causa e previu o pagamento de 100 salários mínimos a título de indenização.

“O caso de Arroyo reforça dois pontos. Não existe ‘atirar’ sem querer. O agente abre fogo, porque segue ordens e está equipado para isso. E, se o disparo atingiu o jornalista por um erro, mostra imperícia do policial ou falta de precisão do armamento”, avalia Silveira.

No caso de Silveira, um desembargador do TJ-SP julgou que houve culpa exclusiva do fotojornalista pela lesão grave. “O magistrado considerou que eu entrei na frente da bala. Como se eu fosse um The Flash estúpido, que corre a 300 km/h para se colocar na linha de tiro”, recordou o profissional de imprensa.

Essa decisão foi reformada pelo STF. Silveira aguarda agora a publicação do acórdão para saber se será indenizado. “Não sei se foi de propósito, mas apenas o ministro Edson Fachin citou a compensação pelos danos durante a sentença. Caso não haja um posicionamento sobre a indenização, o mérito pode voltar para o tribunal de São Paulo”.

SIlveira também se preocupa com o seguinte trecho da decisão da corte constitucional: “Cabe a excludente da responsabilidade da culpa exclusiva da vítima, nas hipóteses em que o profissional de imprensa descumprir ostensiva e clara advertência sobre acesso a áreas delimitadas, em que haja grave risco à sua integridade física”.

“Com essa brecha, casos como o meu podem se repetir no futuro”, lamenta.

A advogada de Silveira no recurso extraordinário, Virginia Veridiana Barbosa Garcia, vê diferenças entre o caso julgado pelo STF e o de Arroyo.

“O STF tratou da responsabilidade civil e objetiva do Estado e, no caso do Daniel Arroyo, trata-se de responsabilidade criminal, em que é sempre necessária a identificação do agente (policial militar, no caso) para a sua responsabilização, porque ela é pessoal”, explica.

Ainda que as situações não sejam equivalentes, há que se considerar que Arroyo sofreu mais um episódio de violência contra profissionais da imprensa, de acordo com a advogada. “O que só reforça a necessidade de revisão dos protocolos de uso de armas não letais pelos agentes policiais, notadamente em relação a esses profissionais que estão a trabalho, cumprindo seu direito-dever de informar”, argumenta.

Mais vítimas


Fotógrafo Sérgio Silva foi alvo de munição não-letal durante cobertura jornalística. Foto: Reprodução/Facebook

O desfecho do caso de Silveira terá reflexos sobre os pedidos de outros jornalistas atingidos por projéteis de borracha como Sérgio Silva. O fotógrafo teve seu pedido de indenização negado pela Justiça paulista em 2016 e aguarda o julgamento de recurso em última instância.

No caso de Silva, outro desembargador do TJ-SP alegou que não houve nexo causal para comprovar a autoria do disparo. A munição não-letal é, porém, de uso exclusivo de forças policiais.

“Foi um longo debate que minha família e eu tivemos com a defesa sobre decidir processar o Estado e não determinado policial, porque bala de borracha é da polícia, e o agente integra uma hierarquia”, conta o fotógrafo.

Para Silva, o governo de Pernambuco abriu bom precedente ao anunciar a exoneração do ex-comandante da PM, Vanildo Maranhão, após ação violenta da força em repressão a protesto contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), no dia 29.mai.2021.

“Foram duas pessoas que perderam o globo ocular. Uma delas nem participava da manifestação. E a punição foi diretamente no comando”, lembrou. No entanto, o fotógrafo diz que nunca viu uma decisão nesse sentido no Judiciário.

Polícia e imprensa

O responsável técnico do Programa com Forças Policiais e de Segurança do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), Paulo Roberto Oliveira, considera a relação com jornalistas fundamental para trazer respeitabilidade à força policial.

“Essa imagem é construída com o tempo, e o papel da imprensa [de esclarecer e levar os fatos à população] vai nesse sentido”, Oliveira afirma. Segundo o porta-voz do CICV, o respeito aos profissionais de imprensa é sempre tema das formações e orientações concedidas pelo CICV a agentes de segurança.

Mas, de acordo com a Unesco, os próprios policiais podem ser os agressores, como foi no caso de Daniel Arroyo. Relatório divulgado pela entidade em setembro de 2020 revelou um aumento de jornalistas agredidos durante manifestações desde 2015, com registro de 125 ocorrências de ataques nos últimos cinco anos em 65 países.

Em 2021, a Abraji levantou 13 episódios de violência contra profissionais de imprensa durante a cobertura de atos políticos. Em um deles, quatro fotojornalistas denunciaram ter sofrido agressões, em 3.jul.2021, por parte de um policial militar durante a cobertura da manifestação contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em São Paulo.

À época, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) declarou, por nota, que “vândalos depredaram patrimônio público e privado e hostilizaram e feriram policiais militares e agentes das forças de segurança”. O caso segue sob investigação.

Assinatura Abraji