- 22.02
- 2022
- 11:30
- Pedro Teixeira
Acesso à Informação
Impor sigilo a doadores e fornecedores de campanha significa retrocesso de 20 anos, diz jornalista de dados
Foto de capa: Relatoria do processo foi distribuída ao ministro Edson Fachin em 2021 - Marcello Casal/Agência Brasil
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deve decidir nas próximas semanas se a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) impõe o sigilo das informações de doadores e fornecedores das campanhas eleitorais de 2022 (processo Nº 0600558-79.2021.6.00.0000). No atual entendimento do TSE, os dados eleitorais são públicos e constam na internet desde 2012, em conformidade com as diretrizes de transparência ativa estabelecidas pela Lei de Acesso à Informação (LAI) — quando o órgão disponibiliza dados sem a necessidade de pedido.
A retirada do acesso a essas informações para o público representaria um “retrocesso de ao menos 20 anos”, avalia o jornalista de dados Marcelo Soares, fundador da Lagom Data e ex-gerente executivo da Abraji. A prestação de contas das campanhas permite investigar evolução patrimonial de candidatos, influência do setor privado sobre o público e equidade do financiamento eleitoral sob recortes de partido, racial e de gênero.
O primeiro projeto nacional nesse sentido foi o Políticos do Brasil, idealizado em 2000 por Fernando Rodrigues — ex-presidente da Abraji. A iniciativa reuniu em uma plataforma do UOL dados dos candidatos às eleições de 1998 e 2002 obtidos junto aos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) do DF e de 26 Estados para avaliar a evolução patrimonial dos candidatos. Por isso, foi reconhecida com o Prêmio Esso de melhor contribuição à imprensa de 2006. O repositório continua no ar no site do Poder360, criado por Rodrigues.
Especialistas em Direito e proteção de dados do InternetLab (centro independente de pesquisa sobre direito e tecnologia) e do Ibradados (Instituto Brasileiro de Estudos em Proteção de Dados) ouvidos pela Abraji avaliam que as informações de prestação de contas não devem ficar sob sigilo, mas ter seu tratamento e armazenamento revistos.
Em reunião com o ministro relator do processo e atual presidente do TSE, Edson Fachin, o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, composto por 25 entidades incluindo a Abraji, expressou preocupação com a possibilidade de a Corte priorizar a privacidade à transparência. Para o fórum, uma decisão nesse sentido representaria retrocessos às conquistas garantidas pela LAI, segundo a qual a publicidade dos dados é regra e o sigilo, exceção.
O diretor da Abraji Luiz Fernando Toledo avalia que o processo eleitoral demanda mais transparência sobre o financiamento de campanhas, não menos. "Fechar esses dados pode abrir um perigoso precedente para irregularidades e até impossibilitar qualquer tipo de controle social."
Processo
O TSE firmou um acordo de cooperação técnica com a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) para implementar ações relacionadas à LGPD nas eleições deste ano. Em um trâmite iniciado pelo próprio tribunal, o processo de avaliar o sigilo de dados de doadores e fornecedores de campanha faz parte do movimento para elaborar a Política e o Plano de Dados Abertos.
No mérito, há um conflito de bases legais. De um lado, o artigo 37 da Constituição determina que a administração pública obedeça ao princípio da publicidade. De outro, a LGPD garante o segredo de informações pessoais, em nome do respeito à privacidade. Outros casos relacionados à privacidade de canditados(as) passaram pelo TSE no passado recente, mas não foi aberto um precendente claro.
Para avaliar todos os lados do litígio, além de consultar a ANPD, o TSE determinou a criação de um Grupo de Trabalho de Dados Abertos (GTDA), que mapeou e analisou as informações disponibilizadas pela Justiça Eleitoral sobre candidatos, partidos, mesários, urnas e prestação de contas. Nessa última categoria, encontram-se nome, CPF ou CNPJ, município, estado e data de nascimento de fornecedores e doadores.
A Assessoria Jurídica da Secretaria Geral do TSE sugeriu a supressão ou a apresentação de forma anonimizada dos seguintes campos das(os) candidatas(os), de fornecedores e doadores: CPF, nome, título de eleitor, data de nascimento, gênero, cor e raça.
No entanto, o GTDA avalia, em parecer, que “tal supressão ou anonimização de dados pode dificultar ou ainda inviabilizar o cruzamento com outras bases [externas ao TSE], dificultando o controle externo e ainda impossibilitando o resgate de informações históricas”. Seria inviável, por exemplo, verificar se os doadores são donos de empresas ao consultar os dados da Receita Federal, que a Abraji disponibiliza no projeto CruzaGrafos.
Esses dados servem ainda para munir políticas públicas de equidade de financiamento de candidatas mulheres e de postulantes políticos negros, LGBT+ e outros grupos minoritários, como estabelece a Emenda Constitucional N° 111 (promulgada em nov.2021). O controle externo do dispositivo também ficaria comprometido. A avaliação é do GTDA.
O grupo de trabalho recorda ainda que uma das premissas do desenvolvimento do Repositório de Dados Eleitorais (RDE) foi “a interpretação do TSE ao longo dos anos, por meio de suas resoluções, de que os dados coletados no processo eleitoral (registro e prestação de contas) têm natureza pública a partir da interpretação da Lei 9.504/1997 [que estabelece normas para as eleições]”.
LGPD e privacidade
A Lei Geral de Proteção de Dados não impede ou proíbe o acesso ou o tratamento de dados pessoais. Para o InternetLab, “a ideia é elaborar conjuntamente práticas de proteção de dados e transparência para assentar o processo eleitoral”.
“A legislação visa a organizar e definir esses caminhos para que dados pessoais possam ser tratados de maneira controlada e dentro de procedimentos e prerrogativas que garantam direitos fundamentais. A LGPD vai estabelecer as condições para que esse tratamento ocorra da melhor forma possível”, explica a diretora do Internetlab Heloisa Massaro.
No caso dos doadores e fornecedores de campanhas, são pessoas físicas que fizeram contribuições — as empresas estão proibidas pelo STF de fazer doações para campanhas desde 2015. Nesse contexto, os dados delas seriam sensíveis, pois permitem inferir as opiniões políticas a partir da atuação junto a um candidato, o que tem potencial de dano, segundo Massaro.
A especialista presume que, sem uma proteção adequada das bases, as informações eleitorais podem servir como forma de discriminação até de minorias. “Os doadores não são apenas empresários com grande capacidade de influência, há peixes pequenos também”.
A LGPD criou condições nas quais os dados sensíveis podem ser trabalhados, mas com as devidas restrições. “Mas isso em nenhum momento impede o tratamento pelo TSE para fins de fiscalização de campanha eleitoral, dentro das previsões do artigo 11 [da LGPD]. Existem, por exemplo, dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou cumprimento de obrigação legal ou regulatória”, aponta Massaro.
Para o Ibradados, o desafio é encontrar um ponto de equilíbrio entre a preservação dos dados sensíveis das pessoas e a transparência nas eleições. “As estruturas necessárias para a fiscalização do processo eleitoral, como tribunais eleitorais, continuarão tendo acesso aos dados, o que já contribui para a lisura do procedimento eleitoral”, declara a presidente da entidade e ex-desembargadora Ana Tereza Basilio.
Basílio aponta que a LGPD trata como dado sensível aquele que revele opinião política ou filiação a partidos, em seu ART. 5°, II. “Por essa razão, a disponibilidade desses dados, sem a devida autorização do detentor, deve ser revista”, avalia.
Já na perspectiva da organização em defesa do acesso à informação Transparência Brasil (TB), a medida seria contrária ao interesse público. “É direito de todos saber quem financia as campanhas eleitorais de cada candidato e como cada um aplicou os recursos. Seria também um retrocesso por parte do TSE, justamente em uma área em que foi tão difícil avançar até chegar ao ponto atual de um bom nível de transparência”, declara a gerente de projetos da TB, Marina Atoji.
Atoji considera que a publicação dos dados de doadores e fornecedores estaria de acordo com a regra geral para tratamento de dados pessoais pelo poder público estabelecida pela LGPD em seu art. 23: "o tratamento de dados pessoais (...) deverá ser realizado (...) na persecução do interesse público (...)".
“A divulgação permite o trabalho da imprensa e também que qualquer cidadão acompanhe a arrecadação e a prestação de contas de seus candidatos”, ela diz.
Acesso à informação
Gerente-executivo da Abraji entre 2004 e 2006, Marcelo Soares afirma que a atuação da entidade e seus membros foi fundamental para a disponibilização dos dados sobre candidatos e financiamento eleitoral, que ele usa até hoje para avaliar a influência do setor privado sobre políticos, como neste projeto da Open Knowledge Brasil. “Até os anos 1990, só a Folha de S.Paulo publicava essas informações sobre o estado de São Paulo. Nos outros lugares, nem se falava disso”, recorda.
A primeira iniciativa para se ter acesso aos dados das campanhas veio em 2000 de Fernando Rodrigues, fundador do Poder360, e à época colunista da Folha de S.Paulo. “Enviei pedidos em carta para todos os 27 TREs pedindo acesso aos dados dos candidatos a cargos públicos nas eleições passadas, sobretudo as declarações de bens”, relata Rodrigues à Abraji. Foram necessários dois anos para receber todo o material, entregue em papel pelos políticos, escanear e montar o banco de dados que depois foi batizado de Políticos do Brasil, hospedado em 2003 no UOL.
Para ter acesso aos dados de candidatos a presidente, Rodrigues teve de pedir as informações diretamente ao TSE. O relator do processo, o ex-ministro Nelson Jobim, acatou a solicitação. “As declarações de bens e as prestações de contas de todos os candidatos a cargos públicos, vencedores ou derrotados, podem ser entregues aos veículos de comunicação social, que poderão divulgá-las, sob sua responsabilidade”, determinou em seu voto.
Outros jornalistas seguiram nesta trilha. A ex-presidente e atual membro do conselho curador da Abraji Angelina Nunes coordenou a série “Os homens de bens da Alerj”, publicada no jornal O Globo.
Com base nas declarações de renda entregues ao TRE, constatou-se que houve casos de parlamentares cuja renda cresceu mais de 1.500%. A série, publicada a partir de 20 de junho de 2004, ganhou naquele ano o Prêmio Esso de Jornalismo e, em 2005, o Prêmio Internacional de Jornalismo Rey de España.
A Transparência Brasil também usou os dados no Excelências, de 2006, que reuniu informações de processos na Justiça e do desempenho parlamentar de membros do Congresso Nacional. Capitaneado por Marcelo Soares, sob coordenação de Claudio Weber Abramo, a iniciativa também foi reconhecida com o Prêmio Esso de melhor contribuição à imprensa.
Com a implementação da Lei de Acesso à Informação em 2011, da qual a Abraji foi participante ativa via advocacy, os dados eleitorais puderam ser disponibilizados no repositório do TSE. “Hoje as informações de prestação de conta são atualizadas em tempo real. É outra era em relação ao que foi 20 anos atrás”, diz Soares.
Colaborou com explicações o economista Bruno Carazza, autor do livro "Dinheiro, Eleições e Poder" e colunista do jornal Valor Econômico