• 08.04
  • 2011
  • 09:29
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História recente do país contada através da trajetória de uma família será tema de palestra de Eliane Brum

Conhecida por suas reportagens especiais, Eliane Brum estará no 6º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo para esmiuçar uma delas: no painel “Uma Família no Governo Lula" , ela falará sobre a experiência de contar a história da família Costa Pereira após acompanhá-la por oito anos.  “Espero que seja um bom encontro, um em que todos nós possamos sair um pouquinho transformados (e transtornados) pela experiência”, afirma a jornalista.

A reportagem que dá nome ao painel aconteceu quase que por acaso. A família Costa Pereira  foi encontrada como personagem para o texto de 2002 publicado na revista Época “O Homem-Estatística”, em que o pai, Hustene Alves Pereira, humanizava os números de desemprego daquele ano. Desde então, Eliane passou a receber relatos por e-mail dos Costa Pereira, nos quais pôde acompanhar a trajetória da família no decorrer dos anos. No ano passado, quando foi convidada a palestrar sobre o governo Lula no festival anual da revista italiana Internazionale, juntou todos os dados que tinha sobre a família e percebeu que tinha um retrato da realidade da nova classe média. Após palestras em Ferrara e Madrid , surgiu a reportagem “Uma Família no Governo Lula”

Em sua vida profissional, Eliane Brum, trabalhou durante 11 anos como repórter do jornal "Zero Hora", de Porto Alegre, e outros dez como repórter especial da revista Época, em São Paulo. Desde 2010 trabalha como freelancer e garante que apesar de agora ganhar um quinto do antigo salário, sente-se feliz com sua escolha e a liberdade que ela proporciona.

Leia  abaixo a entrevista com Eliane Brum: 
 
Abraji: Como foi o processo de realização da reportagem desde sua sugestão até sua
publicação? Qual foi a fase mais difícil?
Eliane Brum: Esta reportagem começou na virada de 2001 para 2002. Eu era repórter especial da Época e estava em busca de um brasileiro da Grande São Paulo que desse carne às estatísticas de um momento difícil para o Brasil. Neste período, o país sofria com o desemprego, especialmente nas grandes cidades, onde filas de centenas de pessoas se formavam para uma vaga muito abaixo da qualificação dos candidatos. Eu buscava um chefe de família que, como tantos naquele contexto, tivesse perdido o emprego há tempo suficiente para compreender que seria muito difícil conseguir outro: um homem no instante da percepção da queda. Depois de tentar vários caminhos, encontrei Hustene Alves Pereira, na periferia de Osasco. Ele estava no quarto mês de desemprego e sentia-se esmagado pelo discurso da exclusão. Naquele momento, “excluídos” era uma palavra muito em voga, muito mais do que hoje, na minha percepção. Ele descobriu-se, de repente, “excluído” do projeto do país.

Acompanhei sua rotina – e a de sua família – por vários dias. A reportagem, com o título de “O Homem-Estatística”, foi publicada na Época em fevereiro de 2002, no último ano do governo FHC e também no ano em que Lula, depois de três tentativas, finalmente venceria a quarta eleição. Esta foi a primeira reportagem. E naquele momento eu não tinha a menor ideia de que haveria uma outra, nove anos depois.
 
Abraji: Qual era sua relação com a família? Como se desenvolveu a apuração?
Eliane Brum: Há uma pergunta recorrente que estudantes de jornalismo costumam me fazer quando dou palestras em universidades: “Você se envolve com as fontes?”. Minha resposta é sempre a mesma: “É claro que sim!”. Se não me envolvesse, para que viveria? Deixando sempre bem claro que este envolvimento inclui um profundo respeito pela história que conto e que pertence ao outro – e isto significa escutar sem julgar e interferir o mínimo possível.

Hustene e eu criamos um vínculo. E um que hoje, quando olho para trás, penso que era muito mais claro para ele do que para mim. Eu era a contadora de sua história. E foi assim que Hustene continuou me contando fatos e sentimentos mesmo depois da reportagem publicada. Segui acompanhando os principais acontecimentos da vida da família, às vezes mais de perto, em outras mais de longe. As contas de luz e água cortadas, os empregos e desempregos dos filhos, os Natais tristes, a volta da carteira assinada depois de Hustene amargar três anos e sete meses sem trabalho, a felicidade de ser o “Porteiro Pereira”, a doença de Hustene, o péssimo atendimento do SUS, a decepção com a educação pública e, finalmente, a vida melhorando e as portas do consumo se abrindo. Perpassando tudo isso, a profunda identificação com Lula, primeiro como decepção, depois com orgulho. E uma visão de mundo muito particular.

Hustene e sua família me colocaram no lugar de “escutadeira” de sua vida e seguiram fazendo a narrativa do cotidiano. E eu segui escutando com atenção e cuidado. Primeiro por telefone, depois por e-mail. Hustene escreve muito – sobre fatos, sobre sentimentos, sobre sua percepção do país. Tenho uma coleção de e-mails de uma riqueza extraordinária sobre sua visão do governo Lula e do Brasil – e de sua família no governo Lula e no Brasil. Hustene organiza a sua vida escrevendo diários a Nossa Senhora e, antes, também escrevia a Che Guevara. A mim dá o privilégio de escrever sobre a trajetória de sua família e sobre sua própria escritura.
        
Abraji: Como foi a experiência de poder  contar com um tempo tão longo de apuração?
Eliane Brum: Não contei com “um tempo tão longo de apuração”. Esta foi uma experiência minha. Não uma decisão da Época, onde trabalhei até março de 2010 como repórter especial e atualmente sou colunista do site, às segundas-feiras. Até porque pelo menos até 2009 nem mesmo eu tinha consciência de que um dia faria algo com o material que ia colecionando. Eu mantinha a relação porque criamos um vínculo cujo esteio principal era o de que eu continuava escutando a história da família – e a família, e especialmente Hustene, continuava me contando seu cotidiano.

Foi uma experiência inédita para mim também. Eu acredito profundamente no poder da narrativa. E seguir escutando a história da Família Costa Pereira era irresistível para mim como escutadeira/contadora de histórias reais. Eu não precisava ser pautada para isso. Eu pauto a minha vida. E as minhas escolhas.
No início de 2010 fui convidada para falar sobre o governo Lula no festival anual da Internazionale, uma das mais prestigiosas revistas italianas. Era a primeira vez na história do festival em que havia uma mesa sobre o Brasil – e sobre Lula. Bem, eu sou repórter, não analista política. Só sei contar histórias.

Naquele momento, percebi que eu tinha uma grande história para contar sobre o Brasil de Lula – uma com todas as contradições que a realidade sempre contém. Eu tinha acompanhado uma família do último ano de FHC até aquele momento. E não como alguns chegaram a fazer, voltando oito anos depois. Não, eu estive sempre lá, de alguma maneira. Eu tinha testemunhado uma das grandes mudanças da história recente do país – a nova classe média – por uma família, praticamente semana a semana, mês a mês.
Então comecei a organizar o material que tinha colecionado por amor à História (eu aprendi com o meu pai o valor dos relatos de vida e guardo tudo o que escuto e registro, por isso estou com um grande problema de espaço em casa... precisaria de pelo menos dois apartamentos). E comecei a fazer longas entrevistas com todos os membros da família. Antes de publicar a reportagem na Época, em janeiro deste ano, apresentei oralmente a história da família Costa Pereira em Ferrara, na Itália, e em Madri, na Espanha.
 
Abraji: Foi difícil manter a distancia na relação com as fontes?
Eliane Brum: Sempre tive clareza do meu lugar na casa da família Costa Pereira. E tento estar à altura do meu posto de “escutadeira” de uma história de vida. Mas este também é um lugar amoroso. E foi muito difícil vê-los passar Natais de penúria, como aquele em que Estela serviu apenas farinha com cebola, sem interferir. Foi Hustene, mais do que eu, que teve a sabedoria de riscar os limites e assim manter o mais importante a salvo. Como quando fiquei – e fico – muito angustiada com a deterioração de sua visão por uma doença degenerativa causada pela diabetes. Ele não recebeu até hoje nenhum tratamento. A (des)assistência do SUS é desesperadora.  Me ofereci para pagar um tratamento privado. Não consigo imaginá-lo cego – não por falta de assistência. Ele recusou na hora, enfaticamente. Entre nós, não pode existir dinheiro nem favores.

Nossa relação é muito clara. A família – e especialmente Hustene – me conta seu cotidiano. E eu escuto, guardo, registro. Até hoje. Nada mudou depois de a segunda reportagem ter sido publicada. Não é a lógica da pauta, episódica e com prazo, que prevalece aqui. O que me pauta é o registro histórico – e este vínculo privilegiado que se estabeleceu entre nós. Acredito que nós, jornalistas, produzimos documentos sobre a história contemporânea. Busco fazer meu trabalho com a responsabilidade que este compromisso exige e pauto minha vida por isso. Não sei se haverá outra reportagem. O que existe é a vida da família Costa Pereira em movimento – e o meu movimento de registrá-la.

6º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo
Quando: 30 de junho a 2 de julho de 2011
Onde: São Paulo - Universidade Anhembi Morumbi - campus Vila Olímpia - unidade 7 (Rua Casa do Ator, 275)
Assinatura Abraji