• 17.01
  • 2011
  • 11:20
  • Folha de S. Paulo

Hacker do bem

Reportagem de Carlos Minuano publicada na Folha de S.Paulo em 17 de janeiro:

 

Com o WikiLeaks, parte da internet ganhou ares de guerrilha. Tropas de adolescentes conectados na rede armaram verdadeiras trincheiras digitais em defesa de Julian Assange, dono do site.

É claro que há algo mais em jogo. A polêmica em torno do site que publica documentos sigilosos e que já virou até game envolve temas controversos como a liberdade na rede e o direito à livre circulação das informações.

Entretanto, os ataques, sem critérios éticos, colocaram os hackers na mira da ala que defende um controle rígido da internet. O tiro pode ter saído pela culatra.

Ou seja, o lobby pelo controle da web pode ganhar mais força. No lugar da garantia de liberdade na rede, talvez o futuro traga mais perseguição e censura.

Um caso que ilustra os prováveis efeitos da polêmica é o da mineira Núbia Soares, 23. Ela não tem nenhuma relação com o australiano Assange, mas afirma ter sido alvo de um respingo do caso.

Ela diz que foi ameaçada e pressionada a pedir demissão da Câmara Municipal de Belo Horizonte, onde trabalhava há cinco anos. O Motivo: divulgou dados públicos na internet e faz parte de uma comunidade hacker.

O objetivo da tribo de que jovem faz parte é, no entanto, usar a tecnologia para garantir o direito à informação.

O imbróglio teve início há dois meses, quando Núbia publicou em seu Twitter que o órgão municipal comprava pacotes com cem copos descartáveis para água, de 200 ml, por R$ 22, sendo que o preço de mercado era R$ 4.

Ela também questionou a aquisição de 500 CDs por R$ 56 a unidade.

A informação já era pública, mas só então se espalhou por redes sociais até ganhar as páginas da imprensa local. "Comecei a ser vigiada."

O clima no trabalho, diz, azedou de vez quando ela participou do encontro em Belo Horizonte do grupo Transparência Hacker, cujo objetivo é justamente clonar sites de governos que contenham dados de interesse público e transferi-los para locais mais acessíveis.

O foco eram os portais da Câmara Municipal e da Assembleia Legislativa de BH.

"Colegas pararam de conversar comigo, e diretores disseram que eu não podia ter divulgado informações sem consultá-los", diz. "Mas os dados que divulguei são abertos. Isso é censura."

Procurada pela Folha, a Câmara Municipal de BH nega as acusações e alega que houve falha de digitação dos dados polêmicos divulgados por Núbia.

O fato coloca em xeque a transparência praticada por governos e órgãos públicos, apesar de o acesso a esse tipo de informação ser reconhecido na Constituição.

O Brasil carece de uma lei que regulamente esse instrumento político. "Informações são ocultas em camadas de PDFs e em links", observa Daniela Silva, coordenadora do Transparência Hacker.

Fazer valer o direito à informação é o objetivo desses "hackerativistas". De maneira criativa, e usando a tecnologia, eles fazem pressão para que o país deixe de figurar entre os piores no ranking de acesso a dados abertos.

No ano passado, ciberativistas redigiram um manifesto (www.livreacesso.org) em defesa da aprovação de uma lei de acesso a informações públicas no país.

A trupe de ativistas on-line surgiu em 2009. "O primeiro alvo foi o blog do Planalto", diz Pedro Markum, 24, coordenador do bando hacker.

O clone do site oficial acrescentava apenas um detalhe que o governo havia suprimido: o espaço de comentários dos leitores. Era só o começo de uma série de hackeadas bem sucedidas.

As ações do grupo se concentram em espécies de mutirões tecnológicos chamados de Transparência Hackday, que chegam a durar um final de semana inteiro.

Organizado em várias regiões do país, o evento reúne jovens de diferentes tribos. Uns mais politizados, outros nem tanto, mas todos apaixonados por tecnologia.

Bruno Barreto, 21, chegou à primeira maratona hacker sem saber bem o que faria, mas navegando meio de bobeira na internet teve uma ideia que quase lhe rendeu um emprego. "Encontrei uma reclamação não atendida no SAC (Serviço de Atendimento ao Cliente) da Prefeitura de São Paulo, comecei a mexer e vi que era possível acessar todas", conta.

Barreto avançou no projeto e conseguiu criar um banco de dados com mais de um milhão de reclamações.

O jovem hacker faz uma análise a partir dos dados coletados: "Toda semana abre um buraco na mesma rua e bairros mais ricos apresentam menos problemas".

A iniciativa não passou incólume. "Fui chamado para ir à prefeitura, apontei falhas de segurança no site e sai de lá com uma proposta de emprego", conta. 

RESIDÊNCIA HACKER

Enquanto a transparência entre governo e sociedade segue travada, para os jovens do Transparência Hacker a coisa é cada vez mais séria.

Em dezembro do ano passado, eles anunciaram outra ação: duas microbolsas de R$ 2.000 para projetos de abertura de dados.

Um dos primeiros selecionados foi o Leigos, uma plataforma colaborativa de interpretação e tradução da legislação. "Vamos passar o "juridiquês" para um português inteligível", explica Miguel Peixe, 19, um dos autores do projeto. Outras duas bolsas serão lançadas no Campus Party, que começa hoje e segue até domingo.

Para quem quiser mudar o mundo a partir de novos usos da tecnologia, o grupo vai anunciar outro experimento, também no Campus Party: a residência hacker. "Será um espaço de convivência entre ativistas e desenvolvedores", diz Pedro Markun.

A cada edição do projeto, serão selecionados dois participantes que dividirão durante no máximo três meses um apartamento mobiliado, no centro de São Paulo.

"Não sabemos onde isso vai dar", admite Markun.

Os participantes não terão que pagar nada. A única contrapartida, adverte Markun, é que toda a produção da residência seja desenvolvida em licenças livres.

Assinatura Abraji