Festivais discutem impacto do jornalismo periférico e desafios para mídia independente
  • 31.08
  • 2023
  • 10:54
  • Laura Toyama e Maria Esperidião

Formação

Liberdade de expressão

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Festivais discutem impacto do jornalismo periférico e desafios para mídia independente

Dois festivais promovidos por veículos independentes e uma agência especializada em comunicação periférica já se consolidaram como eventos importantes para discutir o futuro do jornalismo praticado para além da imprensa tradicional - e seus impactos nas redações de grandes veículos. Com objetivos semelhantes, mas com enfoques diferentes, o Favela Cria 2023, realizado este mês em São Paulo, e o FALA!, marcado para setembro, no Recife, mostram a comunicação e a cultura a partir de uma perspectiva popular, diversa e de território.

A quarta edição do FALA! - Festival de Comunicação, Cultura e Jornalismo de Causas está com inscrições gratuitas abertas por meio deste link. O evento acontece entre os dias 21 e 23 de setembro, no Centro Cultural Cais do Sertão. A produção é do Instituto Fala, com apoio de quatro veículos independentes: Alma Preta e Ponte Jornalismo (SP),  1 Papo Reto (SP) e Marco Zero Conteúdo (PE).

Na apresentação do evento, os organizadores ressaltam que o objetivo é criar um espaço permanente para discutir, entre outros temas, “a conjuntura e os horizontes da comunicação e do jornalismo como ferramentas da plena democracia; a importância da cultura, identidade e diversidade de linguagens e expressões artísticas no fazer jornalístico; a formação de uma rede de mídias e profissionais independentes para o fortalecimento de uma atuação conjunta”.

As edições focam em mostrar projetos jornalísticos independentes dedicados a assuntos “pouco abordados pela imprensa convencional”. “São as questões que dimensionam nossas diferenças, que fazem parte da gênese da sociedade brasileira e que estão na raiz da discriminação e das desigualdades”, explica Antonio Junião, diretor de Arte e Projetos da Ponte Jornalismo e um dos responsáveis pelo festival.

“Vale destacar que o jornalismo de causas não é um jornalismo partidário. É, sim, um jornalismo que resgata o papel da imprensa e dos jornalistas como agentes de promoção de valores da cidadania e defensores de um desenvolvimento pautado pela justiça social”, escrevem os produtores do festival.

O formato do FALA! é semelhante a outros encontros que reúnem profissionais, comunicadores e gestores de todas as áreas da comunicação. A grade inclui oficinas, espaço para intervenções artísticas, networking, painéis e rodas de conversa. Para saber mais sobre a programação de 2023, clique aqui.

Favela Cria 2023 

Entre os dias 17 e 19 de agosto, a Cria Brasil promoveu o Favela Cria 23 - Comunicação de Impacto, reunindo jornalistas e comunicadores de várias gerações no Pavilhão G10 Favelas, em Paraisópolis, zona sul de São Paulo. 

Os temas destacaram a necessidade de aumento do letramento midiático no combate à desinformação, e como veículos periféricos desafiaram os veículos tradicionais a repensar suas pautas e diversidade das equipes, depois de décadas de uma cobertura feita por times majoritariamente brancos e de classe média.

Na mesa “Desinformação na era da inteligência artificial”, os jornalistas Sérgio Lüdtke e Adriana Teixeira, o pesquisador Marcus Bonfim e o CEO do Grupo Cria Brasil, Joildo Santos, debateram o impacto de conteúdos falsos - deliberados ou não - nos territórios. 

“A desinformação se abastece do sistema de crença das pessoas, da proximidade entre as pessoas”, comentou Bonfim. Para ele, as desigualdades sociais são uma das principais barreiras para a checagem de notícias e informações que chegam até os territórios.

No entanto, as fontes próximas podem fazer diferença especialmente em grandes crises e na ausência do poder público. Durante a pandemia de covid-19, por exemplo, a solidariedade entre os moradores de Paraisópolis foi lembrada como um dos fatores determinantes para conter a avalanche de “fake news” com dados inverídicos sobre vacinas, medicamentos  e prevenções. Adriana Teixeira, doutoranda na PUC-SP, comentou sobre a pesquisa que desenvolveu na comunidade, e como a relação entre as pessoas teve implicações positivas para a qualidade de vida da população, que acabou assumindo um papel de informar aquilo que o Ministério da Saúde foi incapaz de escoar. “Enfermeiras que trabalhavam na UBS se transformaram em fontes confiáveis, influenciadoras”, diz ela.

Joildo Santos pontuou que “as maiores vítimas da desinformação e suas consequências são aquelas com menos acesso aos meios digitais”. “O brasileiro sabe fazer piada, meme, mas tem dificuldade de saber como consumir conteúdo de qualidade. Para certos grupos, fica muito mais fácil checar; você está no conforto de sua sala, ar-condicionado, boa internet, podendo acessar sites e seu email. Mas, na favela, isso não é algo tão simples”, salientou.

Para Sérgio Lüdtke, editor-chefe do projeto colaborativo Comprova, liderado pela Abraji, é preciso compreender o papel dos comunicadores no ecossistema da desinformação. “O jornalismo tradicional não está em todos os lugares”, afirmou. Ele sugeriu que o jornalismo de quebrada ocupe esses espaços para elevar o nível crítico das pessoas em relação a informações suspeitas, e sugeriu produzir conteúdos criativos e “competitivos” para se contrapor aos vídeos atrativos que circulam pelas redes sociais. 

“A gente deveria desconfiar de todos os conteúdos que nos provocam uma reação irracional, que alimentam nossos medos e raivas. Precisamos aumentar o nosso grau de ceticismo para nos ajudar a identificar a separar essas mentiras e, por conseguinte, não compartilhar conteúdos que nos pedem para não pensar”.

Redações e pautas mais diversas

A mesa “A influência do jornalismo periférico na mídia tradicional” reuniu Eliane Trindade, colunista da Folha de S. Paulo, Leandro Machado, repórter da rede britânica BBC, Hamalli Alcântara, diretora de produção da revista Raça, Jéssica Bernardo, repórter paulistana do Metrópoles, e Fran Rodrigues, diretora da Cria Brasil.

Leandro Machado, ex-repórter da Folha, abriu o debate relatando sua própria vivência como jornalista nascido em Guaianases, na zona leste de São Paulo. Ele começou produzindo matérias para o blog da Mural - hoje Agência Mural de Jornalismo das Periferias - até migrar para empresas tradicionais. "As áreas periféricas eram vistas como um lugar de precariedade, não de potência e de interesse econômico”, disse. 

“É claro que tive dificuldades. Sei que tinha que fazer caminhos mais longos que os demais colegas, e que tinha largado lá atrás em comparação com outros jornalistas na redação. Mas a minha experiência na rua, no diálogo com as pessoas, é agora o meu diferencial”.

Fran Rodrigues defendeu que a força da comunicação periférica é construída na narrativa desses contextos, e que “é preciso quebrar a barreira do preconceito e entender o potencial de pautas periféricas para além de tragédias e estereótipos de seus moradores”.

Hamalli Alcântara, da equipe Raça, fundada há 27 anos, foi na mesma direção e disse que é preciso entender que as favelas não são um bloco unitário e que carregam suas particularidades. “O jornalismo periférico também é estigmatizado”, criticou. Na visão da jornalista, é fundamental que o potencial criativo e comunicacional dos territórios seja explorado pelas pessoas que vivem neles. “Um repórter periférico tem repertório adquirido por meio de sua experiência sobre questões como justiça criminal, sistema carcerário, que são questões abrangentes, e isso agrega em pautas e produções muito além do jornalismo de território”.

Jéssica Bernardo, nascida no Grajaú, no sul da capital paulista, acrescentou que a dificuldade de entender as áreas de baixa renda pela mídia tradicional também é geográfica. “As grandes redações não estão localizadas nas periferias e é difícil convencer que as pautas ali presentes são dignas de uma cobertura bem estruturada, como se faz em outras regiões da cidade”. Na opinião da jovem repórter, é também por isso que o jornalismo periférico independente tem crescido. No entanto, mesmo os jornalistas das comunidades precisam estabelecer trocas com o território para diversificar sua própria cobertura, para pautar os grandes veículos com um olhar positivo sobre as favelas. “É preciso redesenhar a notícia na cabeça das pessoas”.

O painel “Jornalismo e direitos humanos” trouxe para Paraisópolis Fábio Turci, que trabalhou na TV Globo e é fundador do podcast existo, especializado em contar histórias de vida de pessoas invisibilizadas, e Siyabulela Mandela, bisneto do líder sul-africano e fundador de uma organização que empodera jornalistas em zonas de conflito e com pouca liberdade de expressão.

O ativista acredita que a produção de reportagens humanizadas sobre guerras e de defesa da democracia são apenas uma parte do trabalho de fomento a uma imprensa livre pelo mundo. Já Turci recordou sua própria história para mostrar como os jornalistas foram culturalmente treinados a criarem “uma casca grossa” para sobreviver em uma profissão que lida com tragédias diárias. “A casca me distanciava de muitas pessoas”. 

Ex-correspondente da Globo em Nova York, Turci ponderou que não existe um “outro lado” qualificado para ser ouvido num debate sobre uma clara violação dos direitos humanos.  “[O jornalismo] é uma ferramenta necessária para popularizar a ideia de que defender direitos humanos é defender o direito de todos nós”. Em sua perspectiva, a demanda de pautas humanizadas se inverteu: se antes era preciso “cavar” esse espaço em grandes veículos, hoje os veículos vão em busca de histórias mais atentas à proximidade com os entrevistados.

Outro painel do encerramento do festival foi “Educação Midiática na Formação de Uma Nova Sociedade”, que teve mediação da editora-chefe do jornal Espaço do Povo e idealizadora do programa de educomunicação EduCapão, Gisele Alexandre, e a participação dos jornalistas Aline Rodrigues (Periferia em Movimento), Luís Nascimento (Estadão e idealizador do Perifatec) e de Patrícia Blanco, presidente do Instituto Palavra Aberta.

Aline Rodrigues, de Campo Limpo, também localizado na zona sul, chamou atenção para a necessidade de registrar a memória das pessoas da periferia, antigos moradores, de contar essas histórias e produzir informação de qualidade, “pois nem sempre essa escuta foi feita de forma adequada”.

Repórter do Estadão, Luís Nascimento, morador de Diadema, contou que tem crescido muito dos dois lados do balcão. De um lado, tem tido uma convivência com colegas que até hoje se espantam por ele perder duas horas até chegar à redação. De outro, ao fundar um coletivo de jovens da Região Metropolitana do ABC com foco na educação tecnológica, descobriu que o letramento midiático também se fortalece quando se ensinam à população de baixa renda ferramentas básicas, aquelas que vão ajudar no entendimento básico das tecnologias. 

Antes de pensar em formar programadores, ele e parceiros criaram uma trilha de aprendizado e ensinaram os moradores a gravarem reuniões remotas pelo computador, aulas pelo celular, como melhorar o comércio eletrônico e até mesmo escanear um documento.
 

Assinatura Abraji