• 11.06
  • 2013
  • 08:19
  • Cleyton Vilarino

Eliane Brum: "Minha coluna é quebrada no sentido de que é um texto afetado pela vida"

- Numa época em que muito se fala que jovens não leem muito, como explicaria a repercussão dos seus textos entre uma população mais jovem e os inúmeros e infindáveis compartilhamentos nas redes sociais? 

Eu tenho dúvidas se os jovens realmente não leem muito. Como ando bastante por aí, por ser repórter, tenho visto muitos livros em casas de famílias da chamada Classe C ou “nova classe média”. Assim que melhorou o poder aquisitivo, as pessoas passaram a comprar também livros. Vou ao sarau da Cooperifa e em outros, e as pessoas estão escrevendo e comprando livros, assim como frequento feiras literárias lotadas de gente comprando livros. É claro que esta é uma observação empírica, não uma pesquisa. Mas acredito que exista, sim, um aumento na compra de livros no Brasil. Mas, principalmente, acho que os jovens, assim como a população em geral, está lendo muito na internet. Recebo muitos e-mails de pessoas que dizem que começaram a ler na internet. Talvez nunca tenha se lido e escrito tanto como agora, que uma parte significativa da nossa relação com o mundo se faz por escrito, nas redes sociais, nos blogs, nos e-mails. E acho que aí entra também a leitura da minha coluna. Acredito que o leitor não lê porque o texto é grande ou pequeno, lê o que ecoa nele. Se o texto capturá-lo, ele vai até o fim. Como se sabe, meus textos são longos, e eu costumo defender que a internet é o melhor lugar para textos analíticos, de profundidade, no jornalismo. Mas só os leitores podem dizer porque leem e compartilham o que escrevo. Eu posso dizer o que eu busco ao escrever, uma espécie de declaração de princípios que faço na apresentação de “A menina quebrada”: 1) tenho de estar tomada pelo assunto, porque esta é a primeira verdade que ofereço; 2) preciso acreditar ter algo a dizer que ainda não foi dito por outros articulistas, ou pelo menos não da forma como eu gostaria de dizer, evitando tomar o tempo das pessoas com um texto que elas poderiam ler em outro lugar; 3) tenho de ter estudado muito antes de escrever, porque o olhar e a ideia são apenas pontos de partida para a investigação que vai permitir a construção de um texto consistente, ainda que algumas vezes essa investigação seja uma trajetória acidentada pelos meus interiores ou memórias. O que eu tento fazer a cada segunda-feira é merecer a enorme confiança expressa no ato de alguém dedicar tempo da sua vida para ler o que escrevi, dando minhas melhores palavras e muito do meu próprio tempo. Se alcanço ou não, só os leitores podem dizer.

- Como foi a escolha dos textos que iriam para o livro? O que mais pesou na hora de selecioná-los?

Foi bem difícil. Eu tive muita dificuldade para escolher. E, quando o livro foi pra gráfica, passei a noite sem dormir porque achei que tinha deixado textos importantes de fora. Ainda estou sofrendo com isso. Para mim, depois que escrevo, os textos se tornam coisas vivas. Então, foi como deixar de fora gente querida. 

Quando o processo de escolha começou, eu e o editor, Tito Montenegro, decidimos deixar de fora as entrevistas, porque daria um livro só com elas. Como tento resgatar as grandes entrevistas, que há muito já não têm mais espaço no impresso, nas quais o entrevistado pode desenvolver toda a complexidade da sua experiência, tenho entrevistas que dariam 50 páginas impressas. Então, este foi um primeiro critério que tive de aceitar internamente. O segundo foi limitar  o período de tempo. Comecei a escrever a coluna de opinião em 2009, então os primeiros textos são daquele ano, mas os últimos a entrar no livro são de janeiro de 2013, embora eu continue escrevendo um texto novo a cada segunda-feira e o livro só tenha ido para a gráfica na semana passada. Achamos que, ainda que seja uma coluna que reflita a época atual, o momento, era preciso ter pelo menos alguns meses de distanciamento para a escolha. Depois, o que tentei foi manter na seleção uma característica da minha coluna, que é a variedade dos temas. Como sou muito curiosa, não tenho um tema só e extrapolo aquela divisão arbitrária das editorias. Às vezes escrevo sobre observações cotidianas, em outras sobre memórias, às vezes sobre algo que aconteceu na semana, às vezes parto de livros e filmes, às vezes escrevo sobre política, em geral misturo tudo. Então, a escolha respeitou esse ritmo meio caótico, que me parece ser o ritmo da vida da gente, também, que não é compartimentada, mas toda misturada. E a partir daí foi meu gosto pessoal. Mas, deixei pelo menos umas dez que eu adoro de fora, porque não tinha mais como aumentar o livro sem impactar demais no preço. E eu acho que é preciso fazer livro que as pessoas possam comprar, sempre converso muito sobre o preço com as editoras com as quais trabalho. A ideia inicial era ficar em 40 colunas, aí eu convenci o Tito de que 50 era um número mais bonito. Ao final, consegui aumentar pra 60. E bem no final, ainda colocamos mais quatro. Claro, o Tito foi um cúmplice neste processo, porque é um editor que entende bastante o autor. Eu só conseguiria fazer um livro de colunas fino se me transformasse em outra pessoa (risos).

- Qual foi sua motivação pessoal para escolher o texto-título do livro?

Foi muito difícil escolher um título. Queríamos um título geral, que contemplasse essa variedade da coluna e o que acreditamos que ela representa sobre a reflexão desta época histórica. Mas todos os títulos que tentamos não nos agradavam tanto assim, às vezes ficava parecendo livro acadêmico. Então, pensamos que “A menina quebrada” seria um título representativo, que abarca muito do que a coluna é. Eu acho que sou uma menina quebrada (risos), acho que a coluna é quebrada, no sentido de que é um texto afetado pela vida. 

- Como é seu trabalho, como escolhe o tema a ser escrito?

Depende muito. Quando é uma entrevista, às vezes levo um mês trabalhando nela, porque em geral faço entrevistas de cinco, seis horas com a pessoa. Então, tem todo um processo. Escolho as pessoas que gostaria de ouvir, que acho que têm algo relevante a dizer sobre sua época histórica ou sobre algum tema do momento e, em geral, por um motivo ou outro, não têm espaço para dizê-lo. Mas também entrevisto pessoas não por sua expressão profissional, mas pelo que têm a dizer sobre uma determinada experiência, como quando entrevistei uma “gorda”, para contar sobre o que é ser gorda neste mundo que tem enorme preconceito com quem não se enquadra no padrão estético estabelecido; ou quando entrevistei uma uma mulher que falava sobre a sua experiência de aceitar, nas suas palavras, que era “média. Já nos textos de opinião, que são a maioria, depende o que me tomou nas semanas anteriores ou mesmo naquela semana. Pode ser um assunto da semana, mas pode ser algo que experimentei na minha vida cotidiana, ou algum comportamento que esteja observando, ou parto de um filme ou de um livro sobre o qual acho que vale a pena refletir e estabelecer conexões. Parto sempre de um determinado olhar, que é meu jeito de olhar para o mundo. Mas que é apenas um ponto de partida. Começo então a complicar esse olhar, lendo e pesquisando sobre o tema, duvidando das minhas primeiras certezas, problematizando meu próprio pensamento. Eu não escrevo para apaziguar o leitor, mas para desacomodá-lo, perturbá-lo, levá-lo a olhar para os vários mundos de outros ângulos. Pra alcançar isso, eu preciso primeiro desacomodar e perturbar a mim mesma.

A coluna sempre me dá muito trabalho. Sempre ralei muito pra fazer minhas reportagens e, agora, com a coluna, não é diferente. Na segunda-feira, quando ela já está pronta e escrita, eu fico perto de cinco horas revisando,  tanto o português quanto checando informações. Fico das 5h da manhã, que é a hora que eu normalmente acordo, porque sou matinal, até perto das 10h, que é o meu deadline. Ainda assim às vezes passa um errinho, uma vírgula a mais ou a menos, mas eu sei que fiz o possível pra que isso não acontecesse. Faço isso pelo respeito profundo que tenho pelo leitor, mas também por respeito a mim mesma, já que escrever é minha expressão no mundo, é o que eu sou.

- Na sua entrevista para a revista "negócios da comunicação" você termina uma das perguntas dizendo que só sabe escrever "possuída". Você pode comentar essa possessão?

Eu preciso estar tomada por aquilo que escrevo. Aquele tema ou aquele detalhe ou aquela experiência tem de estar dormindo e acordando comigo. Posso escrever sobre algo pelo qual não estou tomada, já trabalhei 11 anos em jornal diário e outros 10 em revista semanal, obviamente houve muitas ocasiões em que tive de escrever sobre algo que não me pareceu tão fascinante. Mas, mesmo quando isso acontecia, eu tentava encontrar algo instigante, ainda que fosse um detalhe, que me movesse a fazer o percurso de investigação necessário a qualquer texto jornalístico. Para mim é importante essa espécie de possessão, na qual você parte para o mundo do outro e depois volta para o seu, ampliada por aquela experiência. Acho que o texto tem de circular pelo corpo inteiro da gente antes de ser publicado. Quando escrevi a coluna sobre a declaração de morte coletiva dos Guarani Kaiowá, comecei a pesquisar e a ler bastante sobre como eles compreendiam o mundo e, principalmente, como compreendiam a palavra, já que a carta era palavra. Para eles, a “palavra” é “palavra que age”, tem uma ação no mundo. O vocábulo Ñe`ẽ pode ser traduzido como palavra-alma, que é também uma palavra que circula pelo corpo. Encontrei nessa visão, expressa pela linguagem, muitas conexões com meu olhar sobre o jornalismo, sobre a documentação da história em movimento. O que busco, na minha coluna, é ser “palavra que age”. 

Assinatura Abraji