Dono da Havan moveu 37 ações contra jornalistas, veículos e críticos, mostra levantamento
  • 23.06
  • 2021
  • 17:20
  • Abraji

Liberdade de expressão

Dono da Havan moveu 37 ações contra jornalistas, veículos e críticos, mostra levantamento

O empresário Luciano Hang, dono da rede varejista Havan, moveu ao menos 37 processos judiciais contra a imprensa, críticos ou opositores, entre 2013 e 2021, mostra levantamento compilado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Os principais afetados são jornalistas e veículos de comunicação, totalizando 23 ações. O empresário solicita indenização por danos morais em 36 processos judiciais que, juntos, pedem um valor de R$ 6,2 milhões.

Dentre as ações mapeadas, há também pedidos de remoção de conteúdo. Além disso, em nove processos, a Havan aparece como autora ao lado de Hang. 

Luciano Hang ganhou projeção nacional durante as eleições presidenciais de 2018, que culminaram na vitória de Jair Bolsonaro (sem partido). O empresário foi um dos maiores apoiadores do então candidato à presidência pelo Partido Social Liberal (PSL). A grande maioria dos 37 processos movidos por Hang (34) foi iniciada justamente a partir de out.2018, mês das eleições.

Em comum, o empresário e o presidente da República demonstram intolerância à exposição de questões embaraçosas a eles relacionadas.

Hang é um dos homens mais ricos do país. A rede varejista Havan tem mais de 150 lojas, espalhadas por 18 estados. Além disso, o projeto CruzaGrafos, da Abraji, mostra que o empresário é sócio de outras 16 empresas. Em jul.2020, a Abin produziu um relatório questionando a lisura da fortuna de Hang, com objetivo de alertar o Palácio do Planalto sobre possíveis riscos de manter proximidade com o empresário.

Procurada pela Abraji, a assessoria do empresário Luciano Hang não havia se pronunciado sobre as ações até a publicação desta reportagem.

Levantamento

A Abraji obteve um levantamento com 33 processos movidos por Hang contra a imprensa, críticos e opositores. As informações foram levantadas pela defesa do jornalista Denis Burgierman, um dos alvos de Hang, com o objetivo de demonstrar que o empresário tem um comportamento sistemático de tentar silenciar vozes críticas. 

Além disso, a Abraji já havia identificado 14 ações movidas por Hang. Os dados foram levantados por meio do projeto Ctrl+X, que mapeia processos judiciais que solicitam a retirada de conteúdo de redes sociais ou de meios de comunicação. Das 14 ações, três não constavam no levantamento do advogado Joaquim Porto Moraes, que defende Burgierman no caso.

Dessa forma, considerando os casos compilados pela defesa de Burgierman e os levantados pela Abraji, chega-se a um total de 37 processos.

Entre os alvos de Hang, estão a jornalista Patricia Campos Mello e o jornal Folha de S.Paulo. Em reportagem publicada em 18.out.2018 na Folha, Campos Mello revelou que empresas teriam comprado pacotes de disparo em massa de mensagens no WhatsApp, durante as eleições de 2018. As mensagens tinham conteúdo contrário ao PT, partido que disputou o segundo turno das eleições com Bolsonaro. 

Segundo apuração da Folha, cada contrato para disparo de mensagens chegava a R$ 12 milhões. Entre as compradoras dos pacotes que previam centenas de milhões de disparos de mensagens estaria a Havan. 

Miriam Leitão e O Globo foram processados devido a reportagens que mostraram a coação, por parte de Hang, para que funcionários da Havan votassem em Jair Bolsonaro para presidente em 2018. Da mesma forma, o portal Brasil 247 e o jornalista Luis Nassif, do jornal GGN, foram processados por Hang por abordarem o assunto, nos respectivos portais.

A reportagem do Brasil 247 foi retirada do ar por determinação judicial. No caso de Nassif, a decisão na justiça foi em favor do jornalista. Apesar de a matéria intitulada “O que está por trás do terrorismo eleitoral do dono da Havan” ter sido veiculada em 1.out.2018 sem a assinatura de um repórter, a ação foi movida contra Nassif, responsável pelo site, e pedia que ele pagasse indenização por danos morais. 

Para Nassif, trata-se do típico lawfare, ou seja, o uso da lei como instrumento de combate a opositores. “Hang tem dinheiro. Para ele, é peanuts [custo ínfimo] abrir um processo. Por outro lado, quem publica precisa contratar advogado e perder tempo se defendendo”, disse o jornalista à Abraji.

Retirada de conteúdo

Em 28 das 37 ações movidas por Hang, além da indenização, há pedidos de retirada de conteúdo. É o caso da ação contra a Jovem Pan (Rádio Panamericana S/A) e o jornalista Denis Burgierman. 

Na edição de 17.jun.2020 do quadro Não convide para a mesma festa, do programa Morning Show, da Jovem Pan, participantes comentaram a condenação sofrida pelo humorista Gregorio Duvivier em ação indenizatória de autoria de Luciano Hang. 

Em 10.mai.2019, Duvivier publicou em seu perfil no Twitter: “to tisti alguem mata o véio da havan”. Segundo o humorista, tratava-se de um meme. Mas a juíza Maria Cristina Barros Gutierrez Slaibi, da 3ª Vara Cível da Comarca da Capital, no Rio de Janeiro, considerou que a declaração extrapolou os limites da liberdade de opinião e deu uma decisão favorável a Hang: Duvivier deveria excluir o verbo “matar” da publicação e pagar R$ 25 mil por danos morais ao empresário, com correção monetária e juros legais, além das custas e honorários advocatícios. A defesa de Duvivier recorreu da decisão, mas ainda não houve julgamento. 

Na bancada do Morning Show que discutiu o assunto, um dos presentes era Denis Burgierman. Na época, o jornalista fazia parte da equipe do Greg News, programa comandado por Gregorio Duvivier, na HBO. Hoje, Burgierman é editor-chefe do Greg News. 

Ao comentar o caso, Burgierman comemorou a escolha de Luciano Hang de doar o dinheiro da indenização, que seria paga por Duvivier, para a Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais), organização social cujo objetivo é promover a atenção integral à pessoa com deficiência intelectual e múltipla. “[...] Não vai ser mais dinheiro pra construir réplica inflamável da estátua da liberdade”, disse Burgierman.

Burgierman se referia a um episódio de dez.2019, no qual o monumento característico das lojas Havan pegou fogo em São Carlos, no interior de São Paulo. Em outro momento do programa da Jovem Pan, Burgierman pontuou que preferia não viver em um país em que um humorista é processado por contar uma piada. 

“Se esse é um país justo, onde os mesmos critérios valem para todo mundo, se o Gregorio vai ter de pagar R$ 25 mil por postar no seu Twitter uma piadinha maldosa, qual será a pena do Luciano Hang quando ele for julgado pela acusação de ter articulado um esquema milionário que espalhou, ilegalmente, milhões de tuítes mentirosos e incitadores de ódio, com a finalidade clara de interferir, fraudulentamente, nas eleições e destruir reputações dos inimigos de Bolsonaro?”, questionou Burgierman.

O comentário de Burgierman fazia referência à suspeita de que Hang tivesse envolvimento com propagação de mensagens de propaganda eleitoral irregular, como revelado na reportagem de Patricia Campos Mello na Folha.

Em processo protocolado em 17.nov.2020, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Hang acusa Burgierman de ter proferido comentários mentirosos, caluniosos e injuriosos, ofendendo sua honra e imagem. Hang solicita a retirada deste conteúdo audiovisual da internet, além de indenização no valor de R$ 50 mil. O processo movido parte do pressuposto de que Hang “é um empresário sério e honesto, não fazendo jus ao discurso distorcido, tendencioso e mentiroso”.

Em entrevista à Abraji, Burgierman afirmou não questionar o direito de processar quando há dano envolvido, mas indagou: “Qual dano ele [Hang] sofreu quando um jornalista falou uma coisa que é pública?”. Para o jornalista, Hang está usando o seu poder econômico para negar o direito à liberdade de expressão e de imprensa, aproveitando-se de um contexto político que lhe é favorável. 

Assédio processual

A defesa de Burgierman pretende evidenciar que Hang está se valendo da estrutura do Judiciário para perseguir críticos. Destaca, inclusive, que esse tema já foi tratado pelo Superior Tribunal de Justiça, que classificou a postura como assédio processual, ou seja, um abuso na utilização de direitos como o acesso à justiça.

O advogado do jornalista afirma ainda que o comentário questionado pelo empresário da Havan não teve nenhum sentido de ofensa à honra, que pudesse caracterizar injúria, calúnia ou difamação. 

Além de contestar as alegações de Hang, a defesa de Burgierman apresentou uma “reconvenção”, instrumento jurídico utilizado para inverter os pólos da ação. Se por um lado Burgierman não causou qualquer dano a Hang, por outro, o jornalista foi alvo de um ato ilícito: o abuso do direito de ação, com o dono da Havan movendo a estrutura do Judiciário para perseguir a liberdade de expressão de seus críticos.

O levantamento das ações evidencia algo que vem sendo observado em casos que têm como alvo jornalistas: a utilização do Judiciário e da legislação brasileira para atacar a liberdade de expressão, direito determinado pela Constituição Federal e imprescindível para o trabalho da imprensa. 

Dentre os alvos, estão profissionais de diversas áreas, como advogados, políticos, economistas e até usuários de redes sociais. No entanto, em muitos casos, os argumentos são semelhantes, independentemente da área de atuação do alvo do processo. 

Pedido de indenização milionária

Em processo movido contra a Folha de S.Paulo e Patricia Campos Mello, Hang pede indenização de R$ 2 milhões

À época, questionado sobre o suposto envolvimento da Havan no caso de disparos de mensagens via WhatsApp, no contexto das eleições de 2018, Luciano Hang disse não saber do que se tratava e que não teria motivo para recorrer à estratégia. “Fiz uma 'live' aqui agora. Não está impulsionada e já deu 1,3 milhão de pessoas. Qual é a necessidade de impulsionar? Digamos que eu tenha 2.000 amigos. Mando para meus amigos e viraliza”. 

Para Taís Gasparian, que representa Campos Mello e o jornal, o interesse público na questão é evidente. “Era uma eleição presidencial. O uso irregular de serviços de disparo de mensagens, fossem verdadeiras ou falsas, é um assunto que foi exaustivamente debatido antes e durante a campanha eleitoral. É incabível processar um veículo de comunicação pela divulgação de notícia verdadeira”.

Ainda em 2018, a Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu à Polícia Federal a abertura de um inquérito para apurar se houve disparo em massa de mensagens para beneficiar a campanha do atual presidente. Um processo também foi aberto pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Além disso, Hang foi alvo de mandados de busca e apreensão, em 2020, como parte do inquérito das fake news, aberto em 2019 pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

Atualizado em: 24.jun.2021.

Assinatura Abraji