• 30.06
  • 2005
  • 11:49
  • MarceloSoares

Dignidade Reciclada

MILTON COSTA - REPÓRTER DO FUTURO

Levanta às sete, enfrenta dois ônibus, encontra sua carroça e sai pelo centro velho de São Paulo catando papel, papelão, garrafas pet, copinhos de café, embalagens longa-vida, latinhas de alumínio. Tudo aquilo que para muitos é lixo, para o José, 48 anos, pernambucano, casado e pai de três meninas, é a certeza de comida e moradia para sua família. Depois da coleta, volta para o galpão, na esquina das ruas Junqueira Freire e Barão de Iguape, para fazer a triagem. Fica até umas oito da noite, quando toma novamente duas conduções. Chega em Ferraz de Vasconcelos, onde mora, só depois das onze. “É por isso que eu acordo tarde”, justifica ele com um sorriso. José Marcolino da Silva é um dos 95 catadores ligados ao projeto Recifran – Serviço Franciscano de Apoio à Reciclagem –, uma iniciativa da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil junto aos grupos de carroceiros do centro de São Paulo há quase três anos.

Antes do projeto, conta José, a Prefeitura jogou os catadores “que nem bicho” num dos espaços onde hoje funciona a Recifran. Muitos tinham “umas dívidas por aí, uns vales, sabe como é que é?”. Eles foram acolhidos pelo frei André, diretor do Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras), e com ele tiveram orientações para o cooperativismo e o saneamento financeiro familiar. Os franciscanos, em parceria com a Prefeitura, providenciam toda a infra-estrutura para o armazenamento e a triagem do material, além de oferecer creche para os filhos dos catadores, cursos de alfabetização para os adultos, tratamento médico e odontológico, uniformes, crachás, luvas e a confecção de documentos pessoais.

José começou a trabalhar aos nove anos, cortando cana, para sustentar a família abandonada pelo pai. Já foi metalúrgico e pedreiro, e chegou a São Paulo em 1976. Sentiu na pele o horror do desemprego. Hoje, como catador, já comprou um terreno e construiu sua casinha com “dois quartos, sala, cozinha e banheiro”. Há seis anos, teve sua última experiência como empregado, mas prefere catar lixo. Diz que não trocaria o que faz por nada.

Ao contrário do que muita gente possa imaginar, as latinhas de alumínio não são as grandes vedetes entre os catadores. “A pet vale mais. Latinha é difícil de aparecer”, explica José, apontando para um saco cheio de embalagens e disparando, feito metralhadora, todas as siglas químicas correspondentes a cada tipo de plástico. Perguntado por que isso acontece com as latas, José responde que “a turma ajunta né, pra vender”, revelando a surpreendente “concorrência” com a classe média.

A elite dos catadores é a "seletiva", que atende só condomínios residenciais, pegando materiais mais valiosos. Faz parte dela o ex-encanador industrial Antonio Feliciano, duas famílias (“uma no norte, outra aqui, no sul”), também pernambucano. Ele faz as contas e se espanta: carrega nada menos que 600 quilos, dez vezes o seu peso, todos os dias na carroça. Antonio, um sujeito atarracado, mora no galpão e se diz vigia do local. Televisores, aparelhos de som, secadores, fogões, liquidificadores, todos funcionando, estão entre o luxo encontrado no lixo por ele. “A gente divide e dá pra quem tá precisando” diz, enquanto suas hábeis mãos separam o que pode e o que não pode ser reciclado — “Já encontrei até jogo de aliança!”

Tudo é dividido. Ninguém ganha mais do que ninguém, seja homem ou mulher. Iva Soares da Silva, paranaense criada na Bahia, tem duas filhas que ficam na creche enquanto ela e o marido tiram cerca de 500 reais por mês na Recifran. Ela se incomoda com o preconceito sofrido pelos catadores.

“Essa semana mesmo, esses moços que ficam oferecendo cursos na rua, sabe?, me perguntou que futuro eu poderia dar pras minhas filhas catando papelão por aí. Ele não sabia com quem tava falando! Qual o problema de catar papelão? É uma profissão igual às outras! A pessoa acha que reciclagem não é emprego. Pode não ser reconhecida, mas pra nós é ela que paga o aluguel, as contas, o nosso pão. Eles acham que reciclar é catar lixo, que não tem valor. Mas pra nós tem valor sim”, desabafa, com a concordância da companheira Adriana.

Todos eles apontam a segurança transmitida pela organização da Recifran. Em comum, principalmente, há o fato de todos já terem morado nas ruas. Uma leve frustração na voz é sentida quando falam da escola interrompida. Trabalhando desde cedo, a educação ficou em segundo plano. O ex-bóia-fria mirim José, aquele que comprou um terreno, diz que cursou seis meses do Mobral na década de 70 e agora participa da alfabetização, que acontece ali mesmo no Recifran, uma vez por semana: “pra gente saber um pouquinho mais, né?”

O orgulho de ser catador de material reciclável, profissão que querem ver um dia reconhecida, não os faz sentir saudades de um emprego com carteira assinada: “Lá a gente é explorada. Aqui não. Se eu trabalho mais, ganho mais. Vê o resultado. Eu não largo isso aqui pra fazer outra coisa não”, diz Iva.

As conversas transcorreram sob os olhares desconfiados da coordenadora Vera. Experiente, ela comanda tudo, junto com Nataniel Luft. A iniciativa conta ainda com o apoio das Ações Locais, promovidas pela associação Viva o Centro. Todos em prol do resgate da auto-estima e da autonomia perdidas por quem só precisa de uma chance para dar a volta por cima.
Assinatura Abraji