- 25.06
- 2021
- 12:00
- Hannah Coogans
Formação
Guia para investigar pessoas desaparecidas e o crime organizado
Texto originalmente publicado pela Global Investigative Journalism Network (GIJN).
Milhões de pessoas desaparecem todos os anos, de acordo com a Comissão Internacional de Pessoas Desaparecidas (ICMP, na sigla em inglês), e o crime organizado está envolvido em muitos desses casos. A violência associada ao tráfico de drogas em particular, mas também ao contrabando de animais selvagens, exploração ilegal de recursos naturais, tráfico humano e outras atividades criminosas, desempenha um papel fundamental em muitos dos desaparecimentos.
Em sua forma mais sofisticada, o crime organizado é transnacional, altamente organizado e frequentemente sistêmico. Está presente no dia a dia, infiltrando-se em sistemas e grupos essenciais à sociedade. Os desaparecimentos costumam ser um efeito colateral dessa atividade criminosa.
Como a corrupção está frequentemente em jogo, os desaparecimentos podem ser investigados superficialmente ou até mesmo não serem investigados. Às vezes, as autoridades nacionais ou regionais são subornadas ou não têm acesso às informações devido ao alcance do poder dos grupos criminosos envolvidos. O mesmo pode ser dito para os desaparecimentos forçados em que há um certo grau de envolvimento do Estado e onde uma pessoa é sequestrada, presa ou morta e seu corpo é escondido pelo governo, ou por agentes públicos.
Esse crime pode assumir diferentes formas, desde casos isolados a desaparecimentos em massa e diversos casos conectados ao longo do tempo. Existem até aqueles que optam por desaparecer.
Os jornalistas desempenham um papel importante, atuando tanto como um impedimento para esse tipo de conduta criminosa quanto como investigadores do interesse público, especialmente onde o Estado e o Estado de direito entraram em colapso. Mas existem sérios riscos e os próprios repórteres não estão imunes aos perigos de investigar esse tipo de crime.
Isso torna o processo de reportagem sobre crime organizado e pessoas desaparecidas complexo e cheio de nuances. Os jornalistas devem ser cuidadosos e ponderados em sua abordagem. Abaixo, listamos alguns estudos de caso e exemplos de pesquisas publicadas, organizações relevantes que você deve conhecer ao iniciar sua pesquisa e dicas para reportagens locais.
Este guia de reportagem acompanha o lançamento de Investigando Desaparecimentos, uma série de webinars da GIJN e do Resilience Fund. O primeiro webinar, em inglês, ocorreu em 8.set.2020. Um webinar em francês foi realizado em 10.set.2020, um em espanhol em 15.set.2020 e um webinar final, em todos os três idiomas, em 17.set.2020.
Estudos de caso
Aqui está uma seleção de matérias recentes sobre a investigação de casos de pessoas desaparecidas:
- Buscando com as mães dos desaparecidos do México (2020). The New Yorker entrevista os entes queridos afetados pela epidemia de desaparecimentos no México que estão sofrendo à procura de familiares desaparecidos.
- Desaparecidos na França: a situação das crianças vietnamitas que são traficadas para a Europa (2020). Jornalistas investigam o desaparecimento de menores vietnamitas, que chegam em um aeroporto na França para serem traficados por toda Europa.
- Como foi feito: rastreando um suspeito de genocídio em Ruanda (2020). GIJN conversou com o jornalista Théo Englebert sobre como ele encontrou o ex-coronel do exército ruandês Aloys Ntiwiragabo, que havia desaparecido anos antes.
- Como foi feito: investigando um país com 2.000 túmulos clandestinos (2019). A GIJN conversa com Marcela Turati e sua equipe sobre como eles passaram dois anos investigando desaparecimentos no México com a ajuda de familiares, solicitações de acesso à informação e análise de dados.
- A busca: mulheres indígenas desaparecidas e assassinadas (2019). Documentário da Al Jazeera sobre desaparecimentos de mulheres indígenas nos Estados Unidos.
- Meninas desaparecidas da Indonésia estão entre 61.000 migrantes asiáticos mortos e desaparecidos (2018). A história de meninas indonésias que saem ou são atraídas para fora de suas casas com a promessa de empregos no exterior, para nunca mais serem vistas.
- Desaparecidas e assassinadas: os casos não resolvidos de mulheres e meninas indígenas (2017-18). Este premiado podcast e portal da CBC News expôs uma epidemia de casos não resolvidos envolvendo as Primeiras Nações no Canadá.
- O desaparecimento forçado dos alunos de Ayotzinapa (2017). A Forensic Architecture usou mineração de dados e um modelo interativo em 3D para investigar o desaparecimento de 43 estudantes no México em 2014.
- Como os EUA desencadearam um massacre no México (2017). Ginger Thompson e Alejandra Xanic von Bertrab relatam um massacre ligado ao tráfico de drogas em Allende, México, e as centenas de pessoas consideradas desaparecidas em função disso.
- Por que 10.000 crianças migrantes estão desaparecidas na Europa? (2016). A BBC analisa as estatísticas da Europol sobre contrabando de crianças e migrantes desaparecidos.
- O Quarto dos Ossos (2015). Este documentário acompanha a jornada de quatro mães em busca dos restos mortais de seus filhos em meio a três décadas de violência social em El Salvador.
- Jonas Burgos: preso em uma teia de vidas (2013). A busca pelo rebelde filipino Jonas Burgos, matéria de Gloria Glenda para o Rappler.
Aqui estão algumas reportagens da América Latina que podem ser do interesse dos falantes de espanhol:
- Rotas de Conflito (2015) é um projeto multimídia da Colômbia que investiga os 1.000 desaparecidos cujos corpos foram encontrados em rios durante o conflito armado colombiano.
- Para onde vão os desaparecidos (2018) é um projeto que explora a complexidade dos desaparecimentos não resolvidos e da epidemia de pessoas desaparecidas no México, com foco no crime organizado.
- Crisis Forense (2020) do Quinto Elemento Lab detalha a crise forense do México, usando dados interativos e narrativa multimídia para mostrar como os necrotérios do país estão lutando para lidar com o número de corpos que estão recebendo.
- Diálogos com a ausência (2020) do Consejo de Redacción é um guia que oferece artigos e dicas de repórteres veteranos sobre como fazer a cobertura de desaparecimentos, com ênfase nos dilemas éticos que os jornalistas podem enfrentar.
- Caminhos para encontrá-los (2020) é uma série de podcasts que aborda a luta de familiares - muitos deles mães - que procuram os seus entes queridos.
Organizações e guias úteis
- A Comissão Internacional para Pessoas Desaparecidas (ICMP) é especializada no estudo de casos de pessoas desaparecidas e está familiarizada com a legislação internacional nesta área.
- O Projeto Migrantes Desaparecidos da Organização Internacional para as Migrações (OIM) rastreia incidentes envolvendo migrantes, incluindo refugiados e requerentes de asilo, que morreram ou desapareceram no processo de migração.
- O Escritório do Alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) lida com questões de direitos humanos relacionadas a migrantes e vítimas de crimes. Possui uma Comissão de Desaparecimentos Forçados.
- A Anistia Internacional também analisa casos de desaparecimentos forçados.
- O Guia do crime organizado para jornalistas da Repórteres Sem Fronteiras. Este é um guia sobre o crime organizado e como ele pode impactar o trabalho de um jornalista.
- O Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP) tem reportado sobre - e investigado casos de - jornalistas desaparecidos, bem como desaparecimentos involuntários.
- O Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ) coleta histórias e mantém um banco de dados sobre jornalistas desaparecidos.
- O Human Rights Data Analysis Group (HRDAG) colaborou na descoberta de valas comuns no México, usando dados. Eles investigaram desaparecimentos forçados e publicaram relatórios sobre países específicos.
- Equipo Argentino de Antropología Forense (EAAF), grupo argentino aplica técnicas de ciência forense na busca e identificação de pessoas desaparecidas.
- O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) analisa desaparecimentos em todo o mundo.
Dicas para reportagens
Conheça a área
Ao trabalhar em um caso específico, é importante pesquisar o entorno envolvido, tanto para avaliar os riscos que você enfrenta quanto para entender com que tipo de crime organizado você pode estar lidando. Comece procurando casos semelhantes, conversando com especialistas que trabalharam na área, pesquisando na mídia e entendendo a dinâmica do crime local.
Não vá para locais perigosos sem ter contatos confiáveis e um plano realista de como sair de lá rapidamente, se necessário.
Um protesto no México pedindo informações sobre alguns dos desaparecidos. Foto: Marcela Turati
Segurança
Ao iniciar uma investigação sobre o crime organizado, as precauções de segurança para você e suas fontes devem ser fundamentais. Você precisa de um protocolo de segurança sólido. Inicialmente, você deve planejar o tipo de investigação que deseja fazer e pensar se você é a pessoa certa para o trabalho.
Em seguida, decida como armazenar suas informações com segurança e como se comunicar com sua equipe e entrevistados. Não viaje com informações confidenciais em seu computador ou telefone. Sempre que você viajar, certifique-se de que sua equipe saiba onde você está e como emitir um alerta se você estiver em perigo.
Manter contato com suas fontes após a divulgação da investigação é crucial, pois elas são vulneráveis e podem se tornar um alvo em decorrência de seu trabalho. A parceria com especialistas, como ONGs, pode ajudá-lo a proteger suas fontes e decidir quais detalhes publicar e quando. De um modo geral, omita informações pessoais que possam colocar em risco suas fontes ou permitir ataques a amigos e familiares. Seja especialmente cuidadoso com fotos e vídeos que podem expor, acidentalmente, pistas sobre a identidade de suas fontes ou onde estão [texto em português, traduzido pela Abraji]. Essas pistas podem estar contidas, por exemplo, nas roupas de um entrevistado ou nos metadados de suas imagens.
Fontes
Como em qualquer investigação, comece identificando e estudando as fontes e dê início ao processo de juntar as peças do que aconteceu. Lides podem ser encontrados em vários lugares:
- Reportagens na mídia
- Arquivos judiciais
- Solicitações de acesso à informação
- Testemunhas
- ONGs
- Advogados
- Polícia
- Família e amigos da pessoa desaparecida
Na maioria dos casos, os familiares de pessoas desaparecidas terão informações sobre o funcionamento do crime local e saberão como as gangues de criminosos operam na região. Às vezes, entes queridos omitem ou escondem informações para proteger a pessoa desaparecida, mas é importante que os jornalistas levem em consideração todos os detalhes. Embora parentes e amigos próximos da vítima sejam fontes inestimáveis, é importante manter um olhar crítico e checar o que eles dizem.
- Outras fontes locais
Aqueles que se mudaram da área podem estar mais dispostos a falar com você, pois o risco para eles é menos imediato. Pode ser útil fazer um mapa de contatos e fontes. Presos também podem ser fontes valiosas, pois alguns têm experiência direta nas redes criminosas que você está investigando. Suas informações devem ser sempre verificadas.
- Redes sociais
As redes sociais muitas vezes podem ajudar a rastrear os movimentos e atividades das pessoas, incluindo a vítima e quaisquer suspeitos relacionados ao caso. Elas também podem fornecer mais informações importantes sobre a atividade criminosa na região e são uma boa maneira de verificar as informações obtidas de suas fontes.
Um mural em uma cidade na região rural da Colômbia marca o Dia Internacional dos Desaparecidos. Foto: Laura Dixon
Procure por pistas
Em alguns casos, pessoas desaparecidas podem deixar pistas sobre seu desaparecimento em suas próprias redes sociais. Descobrir com quem elas falaram pela última vez entre parentes e amigos é um bom ponto de partida, especialmente em casos de escravidão ou tráfico.
Se você conseguir rastrear o celular ou outro dispositivo móvel da pessoa desaparecida, isso pode fornecer informações valiosas sobre a localização dela. As informações da conta bancária ou de acessos às redes sociais também podem revelar o paradeiro da pessoa ou fornecer pistas adicionais sobre o que aconteceu com ela.
Em alguns casos, pode valer a pena publicar algumas descobertas iniciais como forma de conseguir mais informações ou atrair novas fontes. Mas lembre-se de que tornar pública uma investigação como essa pode trazer risco adicional.
Análise das evidências
Às vezes, um corpo é descoberto pelas autoridades ou outros grupos durante o curso de sua investigação. É crucial verificar se esta é sua pessoa desaparecida. Mesmo que o corpo use as mesmas roupas e tenha as mesmas tatuagens, ou esteja portando os documentos de identidade corretos, é possível que duas pessoas tenham características físicas semelhantes ou troquem de roupas e documentos. O ideal é que você espere por uma investigação forense antes de publicar.
Em muitos países, a investigação policial não é minuciosa e o Ministério Público não tem orçamento, capacidade ou vontade para investigar. Muitas vezes, eles não têm laboratórios de DNA ou treinamento para lidar com esses casos complexos. Nos locais onde esses casos forem investigados, tente verificar os resultados com um especialista externo.
Desconfie de quaisquer evidências e análises forenses provenientes de promotores ou investigações governamentais. Os resultados podem ser afetados se houver conflitos de interesse ou corrupção envolvidos.
Trabalhando com as autoridades
Em alguns casos, os jornalistas precisam ter cuidado com as autoridades e ter em mente que sempre há uma chance de elas estarem em conluio com criminosos. Faça o seu melhor para determinar se isso é verdade, para que você não alerte autoridades corruptas sobre o seu trabalho. Como com qualquer fonte, verifique os fatos que eles lhe contam. Para ajudá-lo nisso, você pode usar solicitações de acesso à informação para obter documentos ou dados de código aberto.
Em outras situações, no entanto, as autoridades também podem ser extremamente úteis. Tome cuidado para não publicar detalhes que possam comprometer a investigação ou colocar a pessoa desaparecida ainda mais em risco.
Foto: ICMP
Escrevendo sobre trauma
No centro de muitas dessas histórias está uma perda. Os jornalistas devem ser sensíveis a isso. Ao falar com a família ou entes queridos da vítima, os repórteres devem ter cuidado com seu vocabulário. Se a família acredita que a pessoa ainda está viva, certifique-se de não se referir a ela no passado.
Honestidade e transparência são importantes para estabelecer um relacionamento com os familiares. Desde o início, os jornalistas devem deixar claro se estão falando com outras fontes - incluindo suspeitos de crimes ou membros de gangues - para que a família saiba o que esperar. É importante manter a família informada, mas não compartilhe detalhes que não foram verificados, pois isso poderia lhes dar falsas esperanças.
Se você estiver em contato com pessoas que foram vítimas do crime organizado, seja claro sobre quem você é e o que está fazendo. Você corre o risco de traumatizar novamente suas fontes e, na pior das hipóteses, elas podem voltar a se esconder se sentirem que estão em perigo. Faça o que puder para evitar colocar suas fontes em risco.
Lembre-se de suas limitações como jornalista e não faça promessas que não possa cumprir. É essencial entender como entrevistar as vítimas antes de começar. Para obter mais conselhos sobre como trabalhar com vítimas e sobreviventes, consulte este guia do Dart Center ou leia as dicas da jornalista mexicana Marcela Turati.
Cuidando de si mesmo
Procurar pessoas desaparecidas pode ser angustiante, frustrante e perigoso. Alguns casos envolvem buscas em valas comuns, ver restos mortais de pessoas submetidas a abusos abomináveis ou trabalhar com vítimas que passaram por tortura física ou psicológica.
Mesmo os jornalistas mais fortes e experientes podem precisar de suporte externo para lidar com o nível de trauma e estresse que esses casos podem produzir. Você pode se preparar estabelecendo uma rede de apoio que inclua seus colegas, amigos e um bom terapeuta.
Este guia foi elaborado por Hannah Coogans, assistente editorial da GIJN. Ela tem mestrado em jornalismo investigativo pela City University e trabalhou anteriormente como pesquisadora em Hong Kong com foco em crime e tráfico de vida selvagem e para vários episódios do programa Dispatches do Channel 4 no Reino Unido. Ela mora em Londres.
Agradecimentos especiais a Marcela Turati por contribuir com este guia. Turati é uma jornalista investigativa freelance conhecida por suas investigações sobre pessoas desaparecidas, desaparecimentos forçados, massacres de migrantes, valas comuns e casos de violência.
Tradução: Ana Beatriz Assam
Foto de capa: Sem túmulos para visitar, as Famílias das Vítimas do Desaparecimento Forçado e outros grupos de direitos humanos celebram o Dia de Finados nas Filipinas. Foto: Maria Tan/Rappler