Ctrl+X aponta que direito de resposta é preterido em favor da retirada de conteúdo na justiça brasileira
  • 26.04
  • 2021
  • 14:15
  • Letícia Kleim e Lucas de Oliveira

Liberdade de expressão

Ctrl+X aponta que direito de resposta é preterido em favor da retirada de conteúdo na justiça brasileira

Em mar.2021, o Supremo Tribunal Federal firmou posicionamento jurisprudencial sobre o direito de resposta, instituto jurídico de grande importância para a liberdade de expressão e de imprensa. Foram julgadas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 5418, nº 5436 e nº 5415 (esta a única que foi admitida e que teve a participação da Abraji como amicus curiae). As ações questionavam a constitucionalidade total ou de apenas alguns trechos da Lei n. 13.188/2015, que regulamenta o direito de resposta.

Com a retomada da discussão pelo STF, a Abraji, por meio do projeto Ctrl+X, realizou um levantamento sobre o cenário nacional da utilização do direito de resposta nos processos judiciais de retirada de conteúdo. Dos 5.396 processos judiciais da base do projeto, apenas 682 processos ou 12,6% apresentavam também pedidos de concessão do direito de resposta. 

O que é direito de resposta

O direito de resposta está previsto na Constituição Federal de 1988, por meio do inciso V do art. 5º, que afirma: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. Porém, ele deve ser entendido dentro do conjunto dos outros direitos e garantias fundamentais listados no mesmo artigo, como a liberdade de expressão e, por extensão, a liberdade de imprensa. 

O debate surge quando o exercício dessas liberdades entra em conflito com outros direitos fundamentais, notadamente o direito à honra e à imagem. Para solucionar essa tensão, Constituições, leis e jurisprudências do mundo todo tentam determinar qual é o limite ou a medida em que uma liberdade pode ser cerceada em benefício de outro direito. Existe, nesse contexto, um juízo de ponderação. 

O direito de resposta é uma das saídas colocadas pelos constituintes para, em vez de restringir a liberdade de expressão, ampliar o debate, abrigando outros pontos de vista sobre uma mesma publicação. 

No ordenamento jurídico brasileiro, o direito de resposta era previsto antes mesmo da Constituição de 1988; a Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/1967), legislação que conferiu juridicidade à censura e às perseguições perpetradas pelo regime militar contra jornalistas, tratava desse direito em seus artigos 29 e seguintes. 

Em 2009, o Supremo Tribunal Federal julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130, na qual se questionava a compatibilidade da Lei de Imprensa com a Constituição de 1988. Desde então, com a não recepção da Lei, o direito de resposta ficou sem uma regulamentação específica, que só veio com a Lei nº 13.188/2015. 

A lei garante o direito de resposta a quem eventualmente se sentir ofendido por alguma matéria divulgada, publicada ou transmitida por veículo de comunicação social, permitindo que a pessoa solicite ao poder judiciário que a sua versão seja publicada, com a mesma intensidade. 

Para o exercício desse direito, prevê-se um procedimento especial, mais célere do que o rito comum, geralmente aplicado às demandas judiciais. A excepcional urgência se justifica dada a velocidade com que as informações se espalham, sobretudo na internet. 

O posicionamento do STF

As discussões ocorridas no julgamento da ADPF 130 firmaram pontos importantes da doutrina constitucional da liberdade de imprensa, como, por exemplo, o de que a liberdade de expressão tem preferência em relação ao bloco dos direitos da personalidade. E, dentre outros pontos, que também eram tratados pela Lei de Imprensa, o direito de resposta foi discutido, especialmente quanto à necessidade de sua regulamentação por lei, além do texto constitucional. 

Em mar.2021, a Corte voltou a se manifestar com o julgamento conjunto das ADIs 5415, 5418 e 5436, que se basearam nos artigos da Constituição Federal relacionados ao direito fundamental de liberdade de expressão e manifestação do pensamento, assim como do capítulo dedicado à comunicação social, (Arts. 5°, IV, IX, XXXV, LIV e LV e Art. 220), e foi discutida a constitucionalidade de alguns trechos controversos da lei do direito de resposta. 

Um dos pontos debatidos foi a possibilidade de um juiz de segunda instância decidir monocraticamente, isto é, sem consultar o grupo de magistrados do qual ele faz parte, pelo afastamento da obrigação de publicar o direito de resposta. O artigo 10 da lei não autorizava essa possibilidade, mas ela já era admitida no direito processual civil, nos casos em que há uma situação de urgência. O STF tratou de incorporar essa possibilidade na lei do direito de resposta pela técnica da “interpretação conforme a Constituição”. 

Os pedidos das outras duas ações, que tratavam de outros trechos da lei e pediam o reconhecimento de sua inconstitucionalidade completa, não foram admitidos pela Corte. Pela sistemática constitucional, quando o STF não acata o pedido de inconstitucionalidade, automaticamente declara sua constitucionalidade. Portanto, foi fixado o posicionamento de que a Lei nº 13.188/2015, que regulamenta o direito de resposta, está de acordo com a Constituição e deve ser aplicada pelos tribunais do país. 

Como o direito de resposta é visto pelos demais tribunais

Ainda que o direito de resposta tenha previsão legal e entendimento da jurisprudência, isso não significa que sua aplicação na prática seja habitual nos demais tribunais. A Abraji realizou um levantamento, a partir das bases de dados do projeto Ctrl+X, para entender de que forma os pedidos de retirada de conteúdo e de concessão de direito de resposta se combinam no cotidiano do sistema judicial brasileiro.

O projeto Ctrl+X, criado pela Abraji em 2014, reúne em uma base de dados mais de 5 mil processos judiciais em que são feitos pedidos de retirada de conteúdo publicado nas redes sociais ou por algum meio de comunicação. Em 77% dos casos registrados, a alegação principal é de que a publicação teria ofendido a honra e imagem do requerente e pede a exclusão, portanto, condizente com o escopo de aplicação do direito de resposta.

Os dados utilizados nesta reportagem podem ser acessados por meio da página web do projeto e foram obtidos por monitoramento ativo de sites do judiciário brasileiro, por representantes de empresas de mídia e tecnologia intimadas e por jornalistas processados que entram em contato com o projeto.

Até o início de abr.2021, o projeto reunia um total de 5.396 processos judiciais em que foram localizados pedidos de retirada de conteúdo. Desse universo, apenas 682 processos apresentavam pedidos também de concessão do direito de resposta, o que representa somente 12,6% do total de processos. 

Pelo projeto é possível monitorar se os processos foram apresentados por algum agente político, que de fato representa o grupo da população que mais recorre ao judiciário para solicitar a retirada de conteúdo. Esse cenário se mantém no recorte feito dos processos com pedidos de direito de resposta. Em aproximadamente 70% dos processos, os autores são políticos ou a ação procurou beneficiar algum político: são 481 casos registrados.


Primeiramente, foram analisados os casos em que são feitos pedidos de retirada e direito de resposta, independentemente do resultado quanto ao direito de resposta. Em 38% (260 processos), a retirada foi deferida, ainda que houvesse um pedido pela concessão da publicação da resposta, deferida ou não. 

Dentre esses, contabilizamos 177 processos em que a retirada de conteúdo foi deferida, mas o direito de resposta, não. Esse número representa apenas 25,9% do total de processos com esses dois pedidos.

Já os pedidos de direito de resposta foram concedidos em 101 processos, 14,8%. Entre os processos registrados no Ctrl+X, na maioria dos casos em que o direito de resposta foi concedido, a retirada do conteúdo também foi autorizada pelo juiz: são 83 processos que representam 82% do total de processos em que o direito de resposta foi concedido. Isto é, mesmo quando o juiz entendeu que deveria conceder o direito de resposta, na grande maioria das vezes acabou censurando a publicação. 

São minoria os casos em que o direito de resposta foi concedido e, com isso, a retirada de conteúdo foi evitada. Somente em 12 do total de 682 processos filtrados com esses pedidos a retirada de conteúdo não foi deferida, mas o direito de resposta foi garantido. 

Além disso, a análise registrou 241 processos em que nenhum dos dois pedidos, de retirada de conteúdo ou concessão do direito de resposta, foi concedido. E 169 casos em que não houve julgamento quanto à retirada de conteúdo, que variam de processos ainda sem veredito até processos extintos sem um julgamento do mérito do pedido. 

 

Qual é o tratamento dado pela Justiça Eleitoral

Na Justiça Eleitoral são encontrados 404 dos 682 processos com pedidos de direito de resposta registrados no Ctrl+X. Entre eles, a ação movida por André Luiz dos Santos Alvarez, candidato a vereador na cidade de Bauru-SP em 2020, contra a Ponte Jornalismo, em razão de reportagem que apontava ligação do político com movimentos nazistas da cidade. Alvarez pediu a retirada do conteúdo, além da concessão do direito de resposta e a condenação por divulgação de propaganda eleitoral irregular com pagamento de multa. 

O juiz não acatou os pedidos por entender que a publicação estava inserida no debate político, não sendo possível limitar a liberdade de expressão. 

O magistrado também destacou que, segundo a Resolução nº 23.608, de 18.dez.2019 do Tribunal Superior Eleitoral, está proibida a cumulação de pedidos de direito de resposta com pedido de aplicação de multa por propaganda eleitoral irregular. 

Porém, não existe a mesma proibição para junção de pedidos de direito de resposta com a retirada da publicação. Em 62 desses processos, foram deferidos o direito de resposta e a retirada de conteúdo. Na base de dados é possível filtrar casos em que foi solicitada a aplicação de multa, mas nem sempre esse dado se refere à multa pelo descumprimento da legislação eleitoral, pois são registrados também os casos em que há pedido de multa diária pelo descumprimento de decisão judicial. 

Direito de resposta e a proteção da liberdade de imprensa

Pela análise do banco de dados, é possível perceber uma tendência de que os processos que pedem a retirada de algum conteúdo têm mais sucesso no Brasil do que os pedidos pela concessão do direito de resposta. No levantamento, encontramos 83 casos em que o autor do processo conseguiu as duas coisas: a retirada e o direito de resposta. 

É importante ressaltar que, diferentemente do direito de resposta, a retirada de conteúdo não tem regulamentação clara na legislação. Os processos judiciais tendo por alvo jornalistas e meios de comunicação não raro caracterizam assédio judicial e são um dos indicadores de ameaça à liberdade de expressão e de imprensa. 

“O levantamento evidencia as tendências autoritárias que subsistem na sociedade brasileira, mesmo após três décadas do fim da ditadura militar. Os reclamantes parecem motivados mais pelo desejo de suprimir a divulgação de seus desvios ou dos pontos de vista contrários às suas posições do que pela necessidade de expor sua versão dos fatos ou participar do debate público de maneira democrática. Infelizmente, contam com a simpatia de parte da magistratura neste esforço de cerceamento dos direitos à informação e à livre expressão”, afirma o presidente da Abraji, Marcelo Träsel.

Para o advogado André Mendes, coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da FGV-RJ, professor da Escola de Direito da FGV do Rio de Janeiro e que representou a Abraji no STF no julgamento do Direito de Resposta, os dados obtidos pela Abraji sugerem uma preferência dos autores de ações judiciais pela retirada do conteúdo em detrimento do direito de resposta.

“No contexto da imprensa livre, suprimir conteúdo é uma medida muito mais drástica do que a determinação para veicular direito de resposta. É até possível que, excepcionalmente, a supressão seja necessária, como no caso de informação flagrantemente falsa. Mas esse certamente não é o caso do cotidiano do exercício das liberdades públicas por parte dos veículos de comunicação. Assim, o levantamento dá a impressão de que, para quem se sente ofendido, apagar fatos é mais relevante do que discuti-los, o que é péssimo para o ambiente democrático e o debate público”, diz Mendes.

Dentre os processos na base de dados, está a ação ajuizada por Beatriz Kicis Torrents de Sordi, deputada federal, em face de Grupo Abril S.A e Robson Bonin da Silva, jornalista, a respeito da publicação, na coluna Radar da revista eletrônica Veja, da matéria intitulada "Ordens do STF desnudam primeiro grande escândalo do governo Bolsonaro – Grupo criminoso investigado por propagar fake news e articular ataques antidemocráticos a instituições da República é alvo de dois inquéritos." 

A deputada pede a exclusão da reportagem das redes sociais dos réus, a publicação de retratação sob pena de multa, além de indenização por danos morais no valor de 100 mil reais. A medida liminar não foi concedida, mas o processo ainda não foi encerrado. 

Além da ação cível, Kicis recorreu ao juízo criminal para a condenação do jornalista pelos crimes de difamação e injúria. O caso é um exemplo do uso dessas ferramentas jurídicas com o intuito de censurar publicações e cercear a liberdade de imprensa. Levantamento feito pela Abraji em 2020 mostrou que esse caso não é o único no qual a congressista utilizou o judiciário para perseguir jornalistas, sendo uma prática recorrente.

Assinatura Abraji