- 23.12
- 2020
- 17:25
- Mirella Cordeiro
Liberdade de expressão
Como tribunais de quatro países decidiram sobre bloqueio de jornalistas no Twitter
Levantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo mostra que, até hoje (23.dez.2020), 57 jornalistas no país foram bloqueados por autoridades públicas no Twitter - pelo menos 37 em 2020. O ano termina sem uma legislação específica no Brasil sobre esse tipo de impedimento. A Abraji olhou para outras experiências pelo mundo e compilou algumas sentenças sobre o tema.
Nos Estados Unidos, o debate envolve um amplo leque de internautas, não só jornalistas. Há três anos, a organização American Civil Liberties Union (ACLU) passou a receber reclamações de cidadãos por terem seus comentários censurados em páginas de legisladores ou terem sido bloqueados dos perfis das autoridades.
A ACLU de vários estados enviou cartas a políticos do país explicando que esse movimento relatado por algumas pessoas pode configurar infração à Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que não permite ao Estado violar a liberdade de expressão.
A organização solicitou aos congressistas uma reavaliação do uso das redes sociais para avaliar se abordavam assuntos dos cargos públicos. Se a resposta fosse positiva, eles não poderiam bloquear pessoas ou censurar comentários por não concordarem com seu ponto de vista, pois estariam desrespeitando um direito fundamental. Portanto, as autoridades deveriam restaurar o conteúdo ou desbloquear os cidadãos imediatamente.
A mesma análise foi aplicada no julgamento do presidente Donald Trump em 2019, acusado de bloquear críticos no Twitter. A Justiça norte-americana deu vitória ao Knight First Amendment Institute, da Universidade Columbia, que moveu a ação em 2017, por considerar que o presidente discrimina pontos de vista quando impede outras pessoas de o seguir.
O caso do México
No México, um jornalista percebeu que foi bloqueado no Twitter pelo perfil pessoal do promotor de Veracruz, Jorge Winckler Ortiz, em 2017. O repórter moveu uma ação na Justiça para reverter o impedimento, alegando violação da liberdade de expressão e do acesso à informação, pois se tratava de uma conta que divulgava conteúdo de interesse público.
Em mai.2018, um juiz do mesmo estado mexicano deu razão aos argumentos apresentados pelo repórter e solicitou que o servidor o desbloqueasse. Entretanto, o promotor Ortiz recorreu à Suprema Corte.
Quase um ano depois, os ministros mexicanos ampliaram a discussão sobre o direito de acesso à informação e o direito à privacidade nas redes sociais. Eles avaliaram que o promotor “abriu um canal de comunicação com a sociedade e decidiu voluntariamente colocar-se em um nível diferente de publicidade de uma pessoa privada.” Por isso, ele não poderia mais restringir o acesso a sua conta.
Mais uma vez, Ortiz recorreu. Dentre os argumentos de defesa, ele afirmava que a maior parte do conteúdo divulgado em seu perfil era pessoal. Além disso, o promotor não fazia publicações sobre questões de “segurança, direitos humanos, desaparecimentos e sepulturas clandestinas no estado de Veracruz”, temas tratados pelo repórter.
No entanto, uma auditoria no perfil de Ortiz confirmou o argumento do jornalista de que havia publicações sobre o cargo público. E, mesmo que esses dados não fossem sobre assuntos abordados pelo repórter, são de interesse público e devem estar disponíveis para todo cidadão, justificaram.
O documento também esclareceu que, por ser pessoa pública, a privacidade do servidor é “ofuscada” em detrimento do direito à informação. E, por último, como o bloqueado trabalha na imprensa, o repórter possui garantias reforçadas na “investigação, busca e obtenção de todo tipo de informação de interesse da sociedade”.
Costa Rica
A justiça costarriquenha tomou decisões similares. Em 2012, uma pessoa bloqueada no Twitter pelo perfil oficial da Presidência da República, cargo ocupado por Laura Chinchilla na época, levou o caso à Suprema Corte, alegando que a ação violava seus direitos fundamentais de modo arbitrário e sem justificativa.
Os ministros da Presidência e da Comunicação e Articulação Institucional argumentaram que a conta presidencial não foi criada para a interação com outros usuários e, mesmo com o bloqueio, o cidadão podia ver o conteúdo, pois não ocultaram os tweets. Ou seja, o cidadão só não conseguia interagir com o perfil.
Os ministros também defenderam que a pessoa poderia usar outros canais de comunicação para fazer seus comentários e, no Twitter, o restante da comunidade ainda era capaz de ver suas opiniões.
Apesar da justificativa, os administradores do perfil presidencial efetuaram o desbloqueio antes da audiência.
No julgamento, a Sala Constitucional do país ressaltou o direito à liberdade de expressão na Constituição da Costa Rica, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto de San José da Costa Rica.
Os magistrados consideraram que o cidadão teve a sua liberdade de expressão violada, pois não podia se manifestar livremente em relação ao que era divulgado pela presidência da República, ao contrário dos outros usuários. Portanto, o desbloqueio foi mantido por ordem judicial.
Peru
Mas decisões assim não se replicaram no Peru. Em 2015, um cidadão bloqueado no Twitter pelo então presidente do Conselho de Ministros, Pedro Cateriano Bellido, procurou a Justiça para tentar reverter a ação. Após decisões a favor do presidente e recursos movidos pela pessoa afetada, o caso chegou à Corte Constitucional em 2019, que confirmou as sentenças anteriores.
O tribunal definiu que o pedido não tinha fundamento porque há contas do Conselho de Ministros (@pcmperu) e da Presidência da República (@presidenciaperu) para transmitir informações oficiais e, portanto, não era necessário que Bellido o fizesse nas suas redes. Mas, mesmo que ele publicasse dados de sua atividade, isso não alteraria a natureza pessoal do seu perfil. Também foi justificado que a conta do presidente é de 2013, antes de ele ocupar o cargo público.
A Corte Constitucional concluiu que obrigar Pedro Cateriano Bellido a desbloquear um usuário no Twitter violaria sua liberdade pessoal.
Em entrevista à Abraji, Darwin Urquizo, advogado especializado em Direito Constitucional, afirmou que a decisão vai contra a tendência mundial de proteção dos direitos fundamentais nas redes sociais, como os casos julgados nos Estados Unidos, no México e na Costa Rica.
“As redes sociais são os canais mais fortes de informação e comunicação. Portanto, se um funcionário te bloqueia, ele impede que você acesse um fórum de debate de interesse público. As plataformas são as novas praças públicas”, disse, em referência à democracia grega, na qual os cidadãos se reuniam para discutir os problemas da pólis (cidades).
A situação brasileira
Os bloqueios a jornalistas no Brasil por parte de políticos vem crescendo. Em nov.2020, dois processos contra o presidente Jair Bolsonaro chegaram ao Supremo Tribunal Federal (STF). O advogado Leonardo Medeiros Magalhães e o jornalista William de Lucca pedem para ser desbloqueados no Instagram e no Twitter do líder do Executivo, respectivamente.
Na ação movida pelo advogado, o ministro Marco Aurélio, relator do processo, afirmou que não cabe ao comandante do país “avocar o papel de censor de declarações em mídia social, bloqueando o perfil do impetrante, no que revela precedente perigoso”.
A votação virtual foi interrompida em 16 nov., após o ministro Kassio Nunes solicitar plenário físico para o processo, o que não tem previsão para voltar a acontecer devido à pandemia do novo coronavírus.
No caso de William de Lucca, que também é atual suplente de vereador de São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores, a ministra Cármen Lúcia disse que o presidente publica informações a respeito de seu cargo e “o bloqueio de um cidadão e seu afastamento do debate público decorrente de exercício de crítica, ainda que impertinente ou caricata, constitui ato de autoridade pública, adquirindo, nesse contexto, viés censório, inadmissível no ordenamento constitucional vigente.” Mais uma vez, a votação foi adiada a pedido de Kassio Nunes.
Artur Pericles Lima Monteiro, advogado e coordenador de pesquisa na área de liberdade de expressão do InternetLab, avalia que a ação de Bolsonaro pode limitar duas dimensões da liberdade de expressão. “Quando o presidente bloqueia alguém na sua conta do Twitter, onde ele anuncia decisões importantes de sua atividade, o Estado está manifestando a rejeição de determinado ponto de vista. É uma censura ideológica do usuário”, explicou.
Além disso, Monteiro considera que a pessoa bloqueada perde a oportunidade de participar do debate público.
Entretanto, não se pode afirmar que todas as contas de políticos são utilizadas para anúncios e discussões públicas. Em alguns casos, não há desrespeito aos direitos fundamentais, segundo Ivar Hartmann, professor da Fundação Getúlio Vargas.
Para exemplificar, Hartmann usou a situação hipotética de uma prefeita que usa seu perfil para interagir com familiares e amigos próximos. Por fazer um uso pessoal, a gestora municipal tem uma liberdade maior para decidir quem excluir da conta.
No entanto, se a ocupante de um cargo executivo se comunica com os moradores da cidade por meio das redes sociais, ou seja, se a finalidade da conta é pública, a prefeita não deveria poder excluir algumas pessoas que tentam estabelecer diálogo, pois estaria limitando o direito delas.
Como definir como a rede social é usada?
Alguns critérios podem ser levados em consideração para distinguir de qual maneira a autoridade usa a rede social, como o número de seguidores. “Se a pessoa tem 50, 100, 200 contatos, é um indício de que essa conta tem finalidade pessoal. Se ela tem milhares de seguidores, é um sinal de que a conta é pública”, esclareceu Hartmann.
Outro parâmetro é o conteúdo publicado. “Imagina um deputado que compartilha foto de um passeio de bicicleta com o filho. É muito diferente se ele postar um passeio de bicicleta com as pessoas do partido e do gabinete dele em uma manifestação política, por exemplo”, afirmou. Para o professor, essa distinção pode estipular quanta autonomia o servidor público tem para limitar a expressão de terceiros em seus perfis.
Cenários possíveis
O Brasil ainda não tem legislação específica sobre o tema. Uma possível regulamentação está no projeto de lei 2630/2020, conhecido como o PL das fake news. Na versão aprovada pelo Senado, as contas de detentores de mandatos eletivos e ocupantes de cargos no Executivo passam a ser de interesse público e, portanto, não podem restringir o acesso de outras pessoas às suas publicações. O PL ainda será votado pela Câmara dos Deputados.
Em outro cenário, se o STF der razão ao jornalista e ao advogado contra os bloqueios do presidente, isso não significa que Bolsonaro será proibido de bloquear os seus críticos. Monteiro diz que seriam decisões importantes para outros juízes definirem sobre casos semelhantes, mas não impediriam que o presidente bloqueasse outras pessoas sem que elas entrassem na justiça.
Dados atualizados
Até o momento de publicação desta reportagem, 57 jornalistas denunciaram ter sido bloqueados por autoridades no Twitter. Os casos chegam a 108, pois uma pessoa pode ser impedida de seguir mais de uma autoridade. Destes, pelo menos 54 bloqueios aconteceram em 2020.
Bolsonaro lidera o ranking com 24 casos. Em segundo lugar, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, com 17 bloqueios. Arthur Weintraub, ex-assessor especial da Presidência da República, vem em seguida com 13. Senador, deputados, secretários, prefeito e governador também fazem parte da lista.
O levantamento feito pela Abraji desde setembro de 2020 tem apoio da Open Society Foundations. Jornalistas podem preencher um formulário relatando o ocorrido e anexar um print da tela com a mensagem de bloqueio. O objetivo do projeto é incentivar a discussão sobre a legalidade dessa prática.