- 26.11
- 2020
- 10:13
- Megan Clement
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Como jornalistas expuseram uma rede internacional de desinformação sobre aborto
Um centro de gravidez em crise no México. Foto cedida: openDemocracy
Tradução por Ana Beatriz Assam
Uma jovem entra em um “centro de gravidez em crise” em Kampala, Uganda, que se autodenomina “apaixonado por mulheres jovens com gravidez indesejada”. Ela diz aos funcionários que tem 15 anos e engravidou depois de ser estuprada pelo tio.
Com pressa, a equipe do centro separa a mulher de sua irmã mais velha, que a acompanha, e então a sujeita a duas horas de informações falsas e táticas persuasivas para convencê-la a não fazer um aborto ou mesmo usar métodos contraceptivos.
Mas a mulher não estava grávida. Ela era uma repórter de 20 anos disfarçada e fazia parte de uma equipe de dezenas de jornalistas em todo o mundo, que investigam um conjunto de “centros dedicados à gravidez indesejada” ligados a uma instituição de caridade antiaborto dos Estados Unidos.
“Ela foi humilhada, esgotada emocionalmente e maltratada”, diz Khatondi Soita Wepukhulu, a jornalista que se passou por sua irmã mais velha. Em um determinado momento, sua colega teve de segurar um bebê de verdade nos braços. “Ela estava nas mãos de profissionais”, resume Wepukhulu.
Wepukhulu conhece bem esta cartilha. Ela mesma experimentou essa situação quando compareceu a outro centro do tipo, também se passando por uma jovem grávida. Ela também recebeu um bebê para segurar, embora daquela vez fosse uma boneca de silicone.
“Eu chorei dentro da sala da conselheira porque era muito forte... a maneira como ela edificava cada parte da experiência”, diz ela.
Wepukhulu, feminista, ateista e ativista da saúde sexual e reprodutiva, bem como jornalista, não é um alvo fácil para este tipo de discurso. Mas ela explica que esses centros - que não só se opõem ao aborto, um procedimento ilegal em Uganda, mas também desencorajam mulheres e meninas a usarem métodos contraceptivos. Usam táticas muito sofisticadas para acabar com a determinação das jovens que os consultam.
Essa estratégia tem origem em uma instituição de caridade cristã dos Estados Unidos que exporta suas mensagens antiaborto para o mundo todo.
Descobrindo uma rede global
Wepukhulu fazia parte de uma equipe de jornalistas disfarçadas do openDemocracy - um site de notícias independente e sem fins lucrativos - que visitou centros dedicados à gravidez indesejada em 18 países diferentes para aprender mais sobre como as mulheres grávidas eram tratadas.
Editores do projeto Tracking the Backlash, que fiscalizam tentativas de violação dos direitos das mulheres e da população LGBTQIA+ em escala global, reuniram a equipe a partir de sua rede global de jornalistas e freelancers.
A equipe descobriu uma rede internacional de desinformação sobre aborto que se estende do México à Ucrânia e do Equador à África do Sul. Todos os centros investigados pela openDemocracy são afiliados a uma organização antiaborto com sede nos Estados Unidos.
Para o time da openDemocracy, que é financiado por fundações filantrópicas, parceiros editoriais e doações de leitores, essa é “a maior investigação jornalística internacional sobre questões de direitos reprodutivos” - realizada por uma equipe mundial de repórteres investigativas mulheres.
As jornalista se apresentaram nos centros de forma semelhante: uma mulher com uma gravidez indesejada que não tinha muita informação sobre aborto. Algumas delas adaptaram este perfil ao contexto local. Na Ucrânia, por exemplo, Tetiana Kozak ligou para um centro de gravidez se passando por uma jovem que havia sido deslocada devido ao conflito no leste do país. Ela disse que tinha sido estuprada.
Kozak relatou ter ouvido, incorretamente, que o aborto aumentava o risco de câncer e que ela “nunca mais seria a mesma” se interrompesse a gravidez. As repórteres ouviram informações falsas notavelmente semelhantes em centros de outros países.
Uma repórter fez o curso online de treinamento da organização para trabalhar em um desses centros. Ela relata ter sido treinada para fornecer a mesma informação incorreta para mulheres que buscam o aborto - e disse que foi informada em dado momento que a interrupção voluntária da gravidez pode levar o companheiro da mulher a "se voltar para a homossexualidade".
Seguindo o dinheiro
O projeto começou como um exercício de rastreamento de dinheiro durante as eleições europeias de 2019, de acordo com Claire Provost, editora do Tracking the Backlash e da seção 50.50 do site, que cobre gênero e sexualidade. Na ocasião, milhões de dólares de organizações cristãs de direita nos Estados Unidos ajudaram a financiar partidos de extrema direita na Europa.
Seguindo com essa investigação, a equipe do Tracking the Backlash usou o Nonprofit Explorer da ProPublica para analisar os últimos 10 anos de 990 formulários fiscais dos Estados Unidos para identificar as organizações afiliadas ao grupo antiaborto em cinco países - Itália, Ucrânia, Espanha, México e Croácia.
As repórteres então entraram em contato com centros nesses países, por telefone ou pessoalmente, fazendo-se passar por jovens buscando ajuda para uma gravidez indesejada. Foi aí que as alegações de que o aborto causa câncer, os perigos da "síndrome pós-aborto" e outros tipos de desinformação se tornaram aparentes, elas relatam.
Provost diz que o disfarce para entrar nesses centros era uma parte vital do projeto para conhecer a experiência real que muitas mulheres têm quando enfrentam uma gravidez indesejada e que inevitavelmente começa ao recorrer ao Google. Muitos dos centros, principalmente na América Latina, se anunciam online como grupos que apoiam o direito ao aborto, ou até mesmo que realizam o procedimento - um centro na Costa Rica usou a URL iwanttogetanabortioncr.com (“Eu quero fazer um aborto”). Isso significa que uma mulher que pesquisa suas opções pode facilmente acabar em um dos centros afiliados ao grupo dos EUA.
“Queríamos saber o que uma mulher ouviria se ela seguisse por esse caminho”, diz Provost.
Mas quando eles começaram a comparar os resultados e viram o mesmo padrão emergindo em países tão diferentes, eles perceberam que deveriam expandir a pesquisa para a África e ainda mais na América Latina e na Europa para ver se a desinformação também aumentaria. E foi o que aconteceu.
Coordenar repórteres em diversos idiomas através 18 países não foi uma tarefa fácil. Para garantir consistência nas reportagens em cada país, e para poder demonstrar consistência nas descobertas, os editores elaboraram um formulário onde os repórteres podiam transcrever as respostas recebidas nos centros.
Cada repórter foi apoiado por um membro da equipe do OpenDemocracy, com quem podia discutir os resultados da investigação e avaliar as questões de segurança durante a reportagem. Todos os jornalistas receberam documentos informativos com os princípios básicos da pesquisa e alguns participaram de seminários com especialistas em saúde sexual e reprodutiva que explicaram como funcionam os centros de gravidez em crise.
Antes do trabalho em campo, era necessário documentar como esses centros se apresentavam online, como eles chegavam até as mulheres com gravidez indesejada e quais eram as leis locais em torno de propaganda enganosa e desinformação relacionada à saúde.
Depois de visitar os centros, as respostas das repórteres nos formulários permitiram aos editores colocar os dados em uma planilha e reconhecer os padrões de desinformação em todos os 18 países, identificando onde as mulheres foram informadas de que o aborto pode causar câncer, onde foram informadas que precisavam da permissão do parceiro para interromper a gravidez e assim por diante.
Além desses comentários mais comuns, outros conselhos mais bizarros surgiram em vários locais. “Em Uganda e na África do Sul, repórteres disseram ter ouvido ‘Você pode estar matando o futuro presidente fazendo um aborto’”, diz Archer.
Foto: Uma clínica em Uganda, onde repórteres foram informados de que, ao fazer um aborto, poderiam estar matando o futuro presidente. Cortesia: openDemocracy
Em resposta à investigação, o grupo antiaborto em questão defendeu seus cursos de treinamento para os centros de gravidez em crise. “Diferentes países têm sua própria cultura e seu próprio modo de comunicação, mas é fato que o aborto traz riscos para as mulheres”, disse um porta-voz.
Um impacto global
Depois de validar as respostas com gravações de dentro dos centros, a equipe compilou os resultados em uma série de histórias que apareceram não apenas no site openDemocracy, mas também em veículos parceiros nos países onde a reportagem foi realizada, incluindo o Daily Maverick na África do Sul e o El Diario na Espanha.
A resposta do governo em alguns países foi rápida, com autoridades no Equador, Costa Rica, Uganda e Europa expressando preocupação com as descobertas. Em Uganda, a comissária de saúde reprodutiva condenou as atividades nos centros de gravidez em crise descobertas por Wepukhulu e suas colegas.
Wepukhulu tem esperança que seu trabalho irá demonstrar os problemas de uma abordagem da saúde sexual baseada na abstinência. “Queremos taxas de gravidez na adolescência como as dos países escandinavos, mas estamos aplicando os mesmos métodos que o chamado ‘Cinturão da Bíblia’ nos Estados Unidos, e os resultados falam por si”, diz ela.
Autoridades no Equador e na Costa Rica disseram que investigarão as descobertas do openDemocracy. Enquanto isso, membros do Parlamento Europeu pediram que a Comissão Europeia tome medidas contra os centros. Mas o progresso nessa frente foi retardado pela pandemia de coronavírus que varreu muitos países logo após a investigação ser publicada.
Ainda assim, Provost diz que há paralelos entre o que elas descobriram e as respostas atuais a covid-19 em muitos países.
“O cerne desta investigação é a desinformação na área da saúde, o que é uma grande preocupação no momento”, analisa.
Uma investigação feminista
O projeto do openDemocracy é incomum pois se apresenta explicitamente como uma “investigação feminista”, realizada por mulheres em todos os níveis, desde a reportagem local até o planejamento, a coordenação e a apresentação de suas descobertas.
“As mulheres estavam liderando, as mulheres estavam realizando, e os direitos das mulheres estavam à frente disso”, disse Archer.
Como uma investigação das mudanças climáticas que não promove falso equilíbrio entre cientistas e aqueles que negam o fenômeno, Provost e Archer dizem que fazer uma investigação feminista significa que elas não precisam questionar se interromper uma gravidez é "certo" ou "errado": o direito das mulheres à autonomia de seu corpo é dado como certo.
“Uma premissa fundamental do nosso projeto é que os direitos das mulheres e da população LGBTQIA+ são direitos humanos”, diz Provost. “Investigamos essas questões não como temas de debate político - embora também investiguemos seu uso político - mas como direitos.”
E embora Provost diga que a equipe está orgulhosa de sua investigação e do que foi revelado sobre como os grupos antiaborto dos Estados Unidos estão afetando a vida das mulheres em todo o mundo de forma coordenada, ela acha que a equipe não deveria precisar ter feito essa reportagem para começo de conversa.
“Alguém deveria ter feito isso antes de nós”, diz ela. “Este tema estava pedindo por uma investigação que ultrapassasse fronteiras, e se os direitos das mulheres fossem vistos como direitos humanos, tratados com seriedade por mais equipes investigativas e estivessem em um maior número de cronogramas de investigação, esta matéria já teria sido publicada”.
Megan Clement é jornalista e editora especializada em questões de gênero, direitos humanos, desenvolvimento internacional e política social. Seus tweets são sobre gênero, política, esportes e vida em Paris, onde ela mora desde 2015.