- 07.07
- 2011
- 16:06
- Ultima Instancia
Cobertura jornalística de conflitos armados: aspectos psicológicos e jurídicos
Publicado no site “Última Instância” em 03 de junho de 2011
Redações de jornal são frequentemente dominadas por uma forte cultura machista, exercida indiscriminadamente por homens e mulheres. Dúvidas, fraquezas, relutâncias e outros questionamentos de ordem pessoal geralmente não são bem vindas, especialmente em coberturas tensas, onde a competitividade com outros veículos é grande e o investimento feito pela empresa jornalística precisa dar um retorno forte em termos noticiosos. Num ambiente assim, sequelas psicológicas de coberturas traumatizantes, realizadas em situações de grande violência ou de desastres naturais, acabam tratadas, no máximo, entre amigos, no cafezinho, na volta para a redação.
“Sequelas psicológicas e aspectos jurídicos” são os dois temas deste terceiro artigo da série sobre jornalismo e conflitos armados, que apresenta parte do conteúdo debatido durante o sexto congresso internacional da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) realizando esta semana, em São Paulo.
Durante quase oito horas, mais de 90 jornalistas e estudantes de jornalismo que participam deste evento debateram as medidas de proteção para profissionais de imprensa designados para cobrir conflitos armados ao redor do mundo.
Último Instância – um dos apoiadores do congresso – está publicando desde quinta-feira uma série de três artigos escritos por mim, que coordenei a mesa, ao lado do jornalista Andrei Netto, correspondente do jornal brasileiro O Estado de S. Paulo em Paris, Sandra Lefcovich, assessora de Comunicação do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) para Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai, Marcelo Moreira, membro do conselho da ONG INSI (International News Safety Institute) e Rodney Pinder, diretor do INSI em Londres.
Aspectos psicológicos
O apoio psicológico aos jornalistas afetados por coberturas de violência ou desastres naturais ainda é muito precário hoje. Dizendo de forma clara, muitas destas sequelas ainda são percebidas como frescura, fraqueza, preguiça ou uma espécie de falta de bravura que, se supõe, deveria ser inerente aos “repórteres de verdade”.
A síndrome do stress pós-traumático costuma afetar jornalistas que tenham sido expostos a cobertura de temas impactantes. É difícil medir, entretanto, o que seja um evento impactante. Algumas vezes, um simples acidente de carro pode provocar um trauma, enquanto cenas de franca desgraça não deixam nenhuma seqüela. A medida do stress é bastante pessoal e os efeitos de um possível trauma podem se manifestar imediatamente ou muitos anos depois de vivenciado o episódio.
Numa tentativa de ajudar a cuidar da saúde mental dos jornalistas, o INSI (International Safety Institute) publicou em sua página na internet uma breve explicação sobre stress pós-traumático e a sugestão de que os jornalistas realizem um auto-diagnóstico para casos de stress.
No endereço http://conflict-study.com/index.html é possível saber mais sobre a síndrome. O site diz que os jornalistas afetados por stress emocional “muitas vezes estão em lugares que não permitem os cuidados necessários, onde uma avaliação emocional adequada não pode ser feita”. Daí, a importância do diagnóstico à distância.
Não é raro que jornalistas expostos a situações extremas manifestem um ou mais destes sintomas ao mesmo tempo: insônia, irritabilidade, alterações de apetite, baixa libido, consumo excessivo de álcool, tabaco ou outras drogas, alterações gastrointestinais, pânico, sensação de culpa por haver sobrevivido a uma situação na qual outras pessoas perderam a vida, flashbacks involuntários de certos momentos de tensão. A lista não termina aí. Os sintomas podem aparecer até muito tempo depois de vivido um trauma e é preciso que os colegas de redação, amigos e familiares estejam atentos e saibam como ajudar.
De forma simples, um primeiro apoio deve ser o diálogo. Psiquiatras coincidem em dizer que a simples oportunidade de desabafar, falar sobre a experiência vivida pode evitar um dano emocional maior. Membros de uma equipe jornalística em terreno devem estimular a conversa entre si sobre episódios vividos no dia, como forma de reduzir a tensão paulatinamente. O silêncio, nestas horas, não ajuda.
Aspectos jurídicos
É comum que jornalistas que cobrem guerras refiram-se a si mesmos como “correspondentes de guerra”. Juridicamente, entretanto, este termo se refere a jornalistas que façam parte de uma força armada, fardados, com insígnias e patentes; e não jornalistas de um veículo de comunicação, independentes.
Do ponto de vista jurídico, esta distinção é importante. Afinal, “correspondentes de guerra” podem ser considerados combatentes e, em caso de captura, são prisioneiros de guerra, como determinam as Convenções de Genebra de 1949.
Para exemplificar: se o jornalista Andrei Netto, correspondente do jornal O Estado de S. Paulo em Paris, detido na Líbia, fosse um “correspondente de guerra”, poderia ser mantido preso até o fim do conflito, sem que isso significasse uma violação das Convenções de Genebra.
Netto era, entretanto, um jornalista civil, como define o artigo 79 do Protocolo Adicional II às Convenções de Genebra. Neste caso, não tendo cometido nenhum crime que justificasse sua detenção, deveria ser libertado. E, felizmente, foi o que aconteceu.
Mas a proteção jurídica de jornalistas em situações de guerra não é tão simples. Muitos dizem que o Protocolo II é insuficiente para proteger os repórteres, na medida em que os qualifica genericamente como “civis”. Os que pensam assim, dizem que os jornalistas representam uma categoria especial, exposta a riscos adicionais, e que, portanto, deveria gozar de uma proteção explícita e muito mais ampla. Os jornalistas deveriam, por isso, usar um emblema que os identificasse em terreno e os ataques contra estes emblemas deveriam ser considerados crimes de guerra.
Os que discordam deste argumento apresentam uma réplica potente: dizem que a adoção de um emblema para a imprensa tornaria os jornalistas um alvo ainda mais visível para os que querem justamente matar as equipes de comunicação. Como o aumento do uso do terrorismo como uma estratégia de luta, os ataques aos jornalistas ganharam um impulso inédito e, em muitos casos, é mais seguro não ser visto como jornalista num terreno de operações.
O debate encontra-se hoje num impasse e o máximo que a ONU (Organização das Nações Unidas) tem feito é instar os Estados a que respeitem os jornalistas. Sem dúvida, é pouco. Muito pouco.