Cobertura esportiva pode ser tão perigosa quanto qualquer outra, diz pesquisadora
  • 23.01
  • 2018
  • 12:21
  • Mariana Gonçalves

Liberdade de expressão

Cobertura esportiva pode ser tão perigosa quanto qualquer outra, diz pesquisadora

Frequentemente considerado um segmento “menor” se comparado com política ou economia, o mundo dos esportes é influenciado por forças culturais e sociais que podem torná-lo uma área perigosa de se cobrir. A afirmação é da pesquisadora Kirsten Sparre, que explora o tema desde 2016 na Aarhus University, na Dinamarca, com o apoio da UNESCO. 

“Jornalistas esportivos estão tão sujeitos a sofrerem ataques pessoais e violações à liberdade de expressão quanto quaisquer outros jornalistas”, disse Sparre em entrevista à Abraji. “O que diferencia sua situação são os atores envolvidos e as dinâmicas específicas do universo dos esportes.” Entre essas dinâmicas, estão a violência de torcidas e fãs, a misoginia, os interesses econômicos das associações esportivas e o uso político do esporte.

Para chegar a essa conclusão, a pesquisadora analisou 78 casos de violações e ataques contra jornalistas que cobriam esportes cometidos do início de 2010 até abril de 2016. Os episódios aconteceram em 35 países de seis continentes, tanto em democracias quanto em regimes autoritários. “Violações à liberdade de imprensa e contra a segurança individual dos jornalistas esportivos podem acontecer e, de fato, acontecem em qualquer lugar do mundo”, ela diz.

Entre as principais violações, Sparre encontrou casos de jornalistas banidos de estádios e coletivas de imprensa, com passaportes apreendidos ou impedidos de entrar em algum país para cobrir um evento esportivo. Sua segurança pessoal também foi comprometida por meio de agressões verbais e físicas, abuso sexual, detenções, processos judiciais, destruição de equipamento, ameaças de morte (inclusive em meios digitais) e homicídios. 

“A mídia é um componente essencial do mundo dos esportes. Nesse universo, alimentado por fortes emoções e interesses econômicos, uma ampla gama de partes interessadas acompanha e tenta interferir na forma como os jornalistas tratam de assuntos que são caros a elas”, diz Sparre. 

Os ataques a jornalistas partem tanto de fãs, atletas e técnicos quanto de funcionários do alto escalão e proprietários de clubes, associações esportivas e federações internacionais de esportes. Até mesmo o grupo terrorista Al-Shabaab, da Somália, aparece na lista de Sparre. O grupo chama repórteres esportivos de “jornalistas do mal” que glorificam “esportes satânicos” e, em 2012, assassinou 14 profissionais da área.

Sparre destacou três modalidades diferentes do jornalismo esportivo que podem colocar repórteres em risco: a cobertura tradicional, que acompanha campeonatos e eventos do dia a dia; o jornalismo investigativo, que busca revelar informações obscuras sobre organizações esportivas; e a cobertura de megaeventos, como os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo. “O que mais me surpreendeu”, ela diz, “foi perceber que a cobertura do dia a dia parece ser tão (ou até mais) complicada quanto as investigações sobre temas como corrupção e doping”. 

Nesse tipo de cobertura, a acesso aos atletas é geralmente administrado por organizações esportivas, que realizam conferência de imprensa e eventos de mídia. “Como resultado, jornalistas esportivos podem se encontrar submetidos a essas organizações”, argumenta Sparre. “Essa dependência não só causa uma crescente comercialização de notícias esportivas, em que jornalistas concordam em mencionar patrocinadores ou anunciantes para entrevistar atletas, mas também promovem a autocensura, já que os repórteres temem ser cortados de fontes-chave se forem muito críticos.”

Casos de censura, repórteres atacados por suas opiniões e jornalistas assediadas por serem mulheres também foram mapeados por Sparre. As principais histórias e conclusões do levantamento podem ser encontradas em seu capítulo no livro “The assault on journalism: building knowledge to to protect freedom of expression” (“O assalto ao jornalismo: construindo conhecimento para proteger a liberdade de expressão”, em tradução livre), publicado em 2017 pela editora Nordicom.

Após o lançamento dos primeiros resultados, Sparre pretende ampliar sua lista, entrevistar jornalistas esportivos e responder a novas perguntas sobre a natureza dos ataques. “Que efeitos essas violações têm sobre a prática do jornalismo esportivo? Como, e a quem devemos esses problemas? A área esportiva requer novas modos de se buscar a proteção de jornalistas?”, questiona.

Sparre entrou em contato pela primeira vez com o tema em meados dos anos 2000, quando trabalhava na conferência Play the Game, cujo objetivo é promover a democracia, a transparência e a liberdade de expressão no esporte. Na época, embora não se dedicasse à pesquisa acadêmica, Sparre já reunia casos de violações contra jornalistas esportivos, que encontrava por meio de fontes como o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ). De acordo com o comitê, 2% de todos os jornalistas assassinados no mundo desde 1992 cobriam esportes. São 31 pessoas no total.

Brasil

Das 78 violações que mapeou, Sparre encontrou apenas um caso brasileiro: o assassinato do jornalista Valério Luiz de Oliveira, que morreu em julho de 2012, em Goiânia. 

Luiz era comentarista de esportes havia mais de 30 anos, e ficou conhecido como “o mais polêmico” da antiga Rádio Jornal 820 AM. Segundo seu filho, o jornalista não media palavras nas “ácidas críticas que dirigia às gestões dos cartolas goianos”, citava “nomes e fatos concretos” e fugia dos “comentários genéricos” adotados por outros profissionais. Aos 49 anos, deixando a gravação do programa “Jornal de Debates”, morreu em frente à rádio onde trabalhava ao ser atingido por seis disparos de arma de fogo.

A repercussão internacional fez com que o caso de Valério Luiz chegasse a Sparre, mas há outros exemplos de ataques a jornalistas esportivos no país. Em setembro de 2017, o Ministério Público do Estado de São Paulo passou a agir com mais firmeza em relação a crimes cometidos contra jornalistas na internet após o repórter e colunista esportivo Mauro Cezar Pereira enviar à polícia um pen drive contendo centenas de arquivos comprovando ataques e ameaças que sofreu em redes sociais como Facebook e Whatsapp. “Tenho mais de 1,5 mil números bloqueados”, disse o jornalista na ocasião, em entrevista à Abraji. Os ataques vinham de fãs descontentes com a opinião que Pereira emitia sobre determinados clubes como comentarista de futebol.

A repórter da ESPN e diretora da Abraji Gabriela Moreira também se queixou quando, em dezembro de 2015, foi alvo de assédio de torcedores enquanto cobria a final da Copa do Brasil entre Palmeiras e Santos. Durante quarenta minutos, Moreira teve de trabalhar ouvindo dezenas de pessoas chamando-na de “vagabunda”, entre outros xingamentos. 

Segundo a repórter, que cobre esportes há anos, a prática é recorrente em sua carreira. “O machismo não se instala somente no futebol. É que, aqui, ele ganha ares de licença poética. O machismo que vi na polícia e na política é o mesmo. Mas aqui, ele sai entre um ‘olê, olê, olá’ e vez em quando, depois de um ‘Chupa’”, desabafou no Facebook na época.

Desconfiada de que a violência no Brasil é subnotificada, Sparre está em busca de novos casos de jornalistas que tenham sofrido ataques e outros tipos de violação à liberdade de expressão no exercício da cobertura esportiva. Em entrevista à Abraji, ela pediu que aqueles que conheçam essas histórias as enviem ao endereço [email protected]. Embora não fale português, a pesquisadora aceita textos escritos em qualquer língua. Os novos casos serão incluídos em sua lista.

Assinatura Abraji