Censura a filme da Porta dos Fundos demonstra fragilidade da liberdade de expressão
  • 13.01
  • 2020
  • 14:00
  • Juliana Fonteles

Liberdade de expressão

Censura a filme da Porta dos Fundos demonstra fragilidade da liberdade de expressão

(Foto: Divulgação/Porta dos Fundos)

A liberdade de expressão é tratada de diferentes formas nos tribunais brasileiros, o que a coloca sempre em risco. É o que mostrou o desembargador do Rio de Janeiro Benedicto Abicair, que concedeu no dia 07/01 a liminar para que a Netflix suspenda de sua plataforma a exibição do “Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo”, assim como qualquer alusão publicitária ao filme e que a produtora Porta dos Fundos se abstenha de autorizar sua exibição por qualquer outro meio. Para além da medida judicial de censura simples, a decisão foi, então, acompanhada de censura prévia. 

Na fundamentação do pedido, por sua vez, a Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura alegou que, ao retratar Jesus Cristo como um homossexual pueril e usar termos chulos para se referir a personagens fulcrais da religião cristã, esta teria sido vilipendiada e a produção do Porta dos Fundos teria provocado intolerância religiosa, mencionando na petição que os judeus já eram vilipendiados na Europa em suas crenças e valores antes mesmo da solução final, o mesmo tendo ocorrido com os dissidentes do regime bolchevique mandados para os Gulags. 

Após o indeferimento do pedido pela 16ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), Benedicto Abicair deferiu a liminar com base no entendimento de que a continuidade da exibição da produção audiovisual é mais gravosa do que sua suspensão, “até porque o Natal de 2019 já foi comemorado por todos” e que essa seria a decisão mais benéfica para a sociedade brasileira no intuito de “acalmar ânimos”. Dois dias depois, em 09/01, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, concedeu liminar autorizando a exibição da produção. 

Outras tentativas de censura a essa produção já tinham sido realizadas, em dezembro de 2019, no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Dentre elas, está uma ação civil pública ajuizada pelo Conselho Nacional dos Conselhos de Pastores do Brasil (Concepab) em face de Netflix e outras 5 ações no Juizado Especial Cível. Em nenhuma delas foi deferido o pedido para retirada de conteúdo, com base no fundamento de que a liberdade de expressão merece salvaguarda, como prescrito na Constituição Federal. 

Nessa esteira, é válido reavivar que a questão constitucional de contraposição do princípio da liberdade de expressão com outros princípios de igual hierarquia — como o da inviolabilidade da honra e da imagem — foi reconhecida pelo STF como matéria de repercussão geral no RE 662.055/SP, paradigma do Tema 837, em 2015. O Tribunal afirmou que é questão constitucional de maior importância definir os limites da liberdade de expressão e fixar parâmetros para identificar hipóteses em que a publicação deve ser proibida e/ou o declarante condenado ao pagamento de danos morais, ou ainda a outras consequências jurídicas. O mérito do Recurso Extraordinário que vai definir estes pontos, contudo, ainda não foi apreciado e uma decisão da Corte nesse âmbito pode colocar em risco a própria liberdade de expressão. 

Quem é o desembargador que determinou a censura

Benedicto Ultra Abicair foi estagiário por 5 anos em um escritório de sua família, tendo iniciado a carreira de advogado em 1978 e permanecido até 2006, quando se tornou desembargador, nomeado pela então governadora Rosinha Garotinho. 

Conhecido por suas posições conservadoras, o desembargador já defendeu os interesses dos magistrados, sob uma perspectiva corporativista, em texto no Conjur, pontuando “como é difícil e sacrificante a vida na magistratura”  e que “não é verdade que os juízes são “privilegiados” e que recebem ganhos exorbitantes”. Além disso, já escreveu sobre a necessidade de punição severa a donos de cães domésticos e a importância dos trajes tradicionais na profissão jurídica. Também em decisão no processo de acusação de homofobia contra Jair Bolsonaro (sem partido), o desembargador votou a favor de Bolsonaro com fundamento na liberdade de manifestação. “Não vejo como, em uma democracia, censurar o direito de manifestação de quem quer que seja”, afirmou.

Ctrl+X

Esse episódio com o grupo de humor Porta dos Fundos evidencia o cenário agudo de censura judicial nos tribunais brasileiros, objeto de monitoramento do Projeto Ctrl+X

Em 2019, 225 ações judiciais com pedido de retirada de conteúdo foram adicionadas ao Ctrl+X. As buscas foram feitas especialmente nos Tribunais de Justiça de São Paulo, com 169 processos, Ceará, 21, e Amazonas, 24. Os demais processos estão distribuídos no STF, 2, TJ-RJ,1, TJ-DFT,1, TJ-GO, 2, TJ-MG,1, TJ-PR,1, TJ-RS, 2, TRF-PR, 1. 

Entre os requeridos estão jornais, blogs, editoras, jornalistas e empresas de tecnologia. A Netflix foi requerida em 10 ações judiciais, em que seis delas são pedidos de retirada do Especial de Natal em questão, e as demais envolvem uso da imagem. Os requerentes que aparecem no banco de dados variam entre empresas, pessoas expostas na mídia, entidades representativas, entidades religiosas, políticos e outros. Em 19 ações cadastradas no Ctrl+X em 2019, os requerentes são políticos. A maior parte dessas ações — seis — esses políticos requerentes são filiados ao PSDB.

A maior parte das ações ajuizadas — 180 — tem a difamação como fundamento para o pedido de retirada. Do total de ações registradas no Ctrl+X em 2019, 18 tiveram o pedido de retirada deferido em algum momento, 10 tiveram o pedido negado, 27 foram extintas sem julgamento de mérito, e as demais, 170, não tiveram sentença ainda. 

À título comparativo, importa sublinhar que o número de processos registrados no Ctrl+X que foram ajuizados em 2018, ano eleitoral, é de 1.202, distribuídos entre tribunais estaduais da justiça comum e tribunais eleitorais. Desse total, 834 foram interpostos por políticos. Em relação à retirada de conteúdo, nesse ano, 392 pedidos foram indeferidos, 489 tiveram o pedido de retirada deferido liminarmente ou em sentença, 112 foram extintos sem julgamento de mérito, e 209 estão aguardando decisão final. 

No mesmo sentido, 459 processos ajuizados em 2017 foram incluídos no Ctrl+X e 132 foram ajuizados por políticos. Do total, 105 resultaram em não deferimento, 233 obtiveram decisão pela retirada de conteúdo, 25 não obtiveram decisão de mérito e 96 ainda não têm sentença. 

A base de dados do projeto continuará a ser alimentada em 2020 e a previsão é de maior atividade em virtude do período eleitoral. 

Assinatura Abraji