• 01.07
  • 2005
  • 09:02
  • MarceloSoares

Bolivianos migram com sonho de trabalhar

JOÃO BATISTA JR. - REPÓRTER DO FUTURO

São Paulo, 18 de maio de 2005. Enquanto o sol brilha lá fora, dentro da sala há apenas olhos ofuscados por um sonho frustrado. Localizada na Igreja Nossa Senhora da Paz, Liberdade, a Pastoral do Imigrante, sob o comando de Padre Roque, recebe às quartas-feiras os imigrantes ilegais para prestar a eles auxílio jurídico – por meio da advogada Ruth. Salvo algumas exceções, as pessoas ali presentes são todas bolivianas.

Paula Muñoz, 18 anos, grávida de 5 meses, é uma das que esperam pelo atendimento. “Estou aqui porque quero ganhar o dinheiro pelo tempo que trabalhei sem receber nenhum real”. Paula se refere aos dois anos e meio que trabalhou numa tecelagem em regime de escravidão. “Minha patroa não pagava nada porque eu devia a passagem, comida e um aparelho de som pra ela”.

Aos 15 anos de idade, depois de cansar de ser mal tratada pelos tios para os quais sua mãe a entregou quando nasceu, resolveu vir ao Brasil. Soube de uns vizinhos que já tinham vindo para São Paulo e decidiu tentar a sorte. Topou fazer parte de uma caravana de pessoas interessadas em sair da miséria ao preço de R$ 250 a passagem, com a condição que a quantia seria paga em trabalho. “Queria trabalhar e ganhar dinheiro. Na minha cidade só tinha emprego de cozinheira, trabalho que não gosto”, justifica Paula.

“Passei fome porque só tinha mexerica verde pra gente comer”. Com lembranças desagradáveis da viagem que a trouxe ao Brasil, Paula diz não sentir saudades da Bolívia. O trajeto demorou duas semanas para ser completado, uma vez que partiu de sua cidade – Santa Cruz de la Sierra - rumo ao Paraguai, para depois seguir com destino a São Paulo.

Segundo a assessoria de imprensa da Polícia Federal, o método mais comum é entrar no país usando a condição de turista. “Depois de vencido o prazo legal de turista, alguns permanecem no país em situação irregular”, informa a PF. Acontece que não são apenas alguns. De acordo com dados de 2001, o consulado boliviano estima que existam cerca de 60 mil imigrantes na capital paulista, sendo que apenas 15 mil são cadastrados.

Instalada no Brasil, Paula foi morar e trabalhar em uma oficina de costura localizada no Bom Retiro. Lembra que, logo que chegou, a proprietária do local – “não falo o nome dela porque ela é muito ruim e eu ainda quero receber meu dinheiro” – disse que os brasileiros não gostavam de bolivianos e que, caso a polícia os visse nas ruas sem documentos, iria espancá-los. Sendo assim, Paula e seus compatriotas sentiam temor de sair da senzala de panos.

Depois de passar dois anos e meio trabalhando no local, resolveu seguir os conselhos de uma amiga. Criou coragem para recorrer à pastoral dos latinos. Estava cansada de não ser remunerada pelas 14 horas de trabalho diário. Apelou à advogada da entidade para ser ressarcida pelo período em que trabalhou como escrava, mas o processo de acordo ainda está em andamento. “Sim, eu também vou pagar pelo serviço da advogada, mas pelo menos vou ver a cor do dinheiro”, diz Paula.

O acordo não ocorre nos tribunais. Ernesto Martinez Galindo, um dos voluntários que atuam na pastoral, explica que a burocracia toma muito tempo, por isso muitas das decisões ocorrem entre o boliviano e o proprietário por intermédio da advogada. Esse método de solucionar os problemas dos bolivianos faz com que haja uma perpetuação do ciclo de exclusão, uma vez que a Justiça não tem chance de coibir as senzalas do terceiro milênio.

A Pastoral também atua em conjunto com o Centro do Migrante, instalado ao lado da Igreja Nossa Senhora da Paz. Atualmente, apenas três bolivianos moram no Centro. O pároco diretor da entidade, Juan Plaza, justifica a baixa presença ao afirmar que eles chegam ao país com local e trabalho certo. “Aqui atendemos pessoas de todos os lugares, desde que não sejam do Estado de São Paulo. Temos muitos nordestinos”, diz padre Juan.

CPI
“O que nós queremos fazer não é apenas um documento que reúna as informações de vários órgãos, mas elaborar proposta que permita que possamos cobrar depois”. É dessa forma que Sonia Francine, vereadora petista mais conhecida como Soninha, destaca a verdadeira intenção da Comissão Parlamentar de Inquérito que está em andamento na Câmara dos Vereadores de São Paulo, da qual ela é relatora.

Soninha diz que após o período de análises de documentos e investigação, quer que a CPI resulte em ações concretas para melhorar a situação dos bolivianos submetidos às condições de trabalho escravo na cidade de São Paulo.
A vereadora destaca que uma das formas de diminuir o fluxo migratório ilegal seria restringir o lucro dos donos de tecelagens que utilizam mão-de-obra escrava. Para isso, a população deve se questionar sobre os preços baixíssimos das roupas comercializadas na região central da capital paulista. “O vestido é tão barato assim porque é mesmo ou porque o jeito que ele é produzido não cumpre uma série de condições?”, questiona Soninha.

Alguns setores da sociedade atuam por meio da comunicação social como forma de minimizar o problema dos escravos bolivianos. A jornalista Camila Rossi cobre fatos sobre os escravos imigrantes na cidade de São Paulo para a ONG Repórter Brasil. “Acho que a imprensa dá alguma atenção ao caso quando acontece algum episódio que chama para a questão. Porém, acredito que a mídia não toca nos pontos mais relevantes que permeiam o tema e não discute os pontos mais polêmicos envolvidos nisso tudo”.

Para tentar mudar o quadro apontado por Camila, Gustavo Prado - peruano radicado no Brasil há 5 anos - resolveu fundar um jornal. “Voz Latina”, com tiragem de 10 mil exemplares e periodicidade mensal, chega à sua terceira edição com o propósito de informar à comunidade hispânica todos os assuntos que os dizem respeito de uma forma mais direta. “Falamos de dignidade e sentimento de união”, orgulha-se Prado. Ações da diplomacia brasileira, situação dos imigrantes e política urbana paulistana foram assuntos abordados nas duas primeiras edições do jornal.

NOVA VIDA
Na vida sofrida de imigrante, os valores se tornam diferentes. Os dois fatos que a adolescente boliviana Paula Muñoz destaca como os melhores que ocorreram em sua vida foram a gravidez e o seu atual emprego. A nova patroa - uma brasileira casada com um paraguaio – paga R$ 0,40 centavos por peça de roupa que produz em suas 12 horas de jornada, de segunda a sábado. Além do mais, “ela é amiga, me ajuda em tudo. Me leva pro hospital com os documentos dela e deixa a gente sair pra passear”.

Quanto à gravidez, a menina diz que seu filho é a esperança de uma vida melhor. Sabe que depois de dar à luz em território brasileiro terá o direito de permanência irrestrita no país, toda sua documentação será legalizada e terá, acredita com ingenuidade, melhores condições de trabalho. O pai da criança voltou para a Bolívia assim que soube que iria ser pai. “Mas ele vai querer voltar quando nascer, porque poderá ficar no Brasil pra sempre”.

Paula vê beleza na cidade de São Paulo. “Não tem areia e tem muito carro”. Caseira, sai de vez em quando para dançar forró com umas amigas. “Os brasileiros são mais bonitos porque são altos. Na Bolívia, os homens são baixos porque carregam muito peso”. No entanto, reclama que “as meninas daqui dizem que os meninos usam muita maconha”. Termina a conversa fazendo uma triste constatação: os bolivianos que moram no Brasil são “bêbados”. “Já vi muita amiga tomando tapa na cara do namorado por causa de pinga”.
Assinatura Abraji