- 26.03
- 2010
- 15:59
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Banco de dados ajuda repórteres do Paraná a revelar irregularidades na Assembleia Legislativa do Estado
Utilizando técnicas de Reportagem Com Auxílio do Computador (RAC) e um criterioso trabalho investigativo, o jornal Gazeta do Povo, em parceria com a RPCTV, do Paraná, produziu uma série de reportagens publicadas desde o dia 16 de março. As revelações deflagraram uma crise dentro da Assembléia do Estado, que gerou o afastamento de um dos homens fortes da casa havia mais de 20 anos, o diretor geral Abib Miguel e de seu braço direito, o diretor administrativo José Ary Nassif, protestos de estudantes e a instauração de um inquérito da Polícia Federal para apurar as denúncias, além de investigações do Ministério Público e do Tribunal de Contas do Estado.
Intitulada “Diários Secretos”, a série se debruça sobre o descontrole na movimentação de funcionários dentro da Assembleia por meio da publicação de atos, num caso parecido com o dos atos secretos do Senado. Todo o trabalho, que durou cerca de dois anos, se baseou na organização de um banco de dados com informações encontradas em mais de 700 diários oficiais sem a devida publicidade. “O trabalho que fizemos pode ser reproduzido em qualquer Assembleia do Brasil, em qualquer Estado ou cidade”, diz a jornalista da Gazeta Katia Brembatti, uma das autoras da série.
Segundo a jornalista, o tema que se desenvolveria nas reportagens surgiu em julho de 2008 em decorrência do chamado “Escândalo dos Gafanhotos”, em que se descobriu que os salários de vários servidores eram pagos numa mesma conta, possivelmente de um laranja. Seguindo a denúncia, jornalistas foram atrás dos diários oficiais para checar a movimentação de funcionários da Câmara, mas não conseguiram encontrá-los na internet, na biblioteca pública ou na biblioteca da casa. “Nos perguntávamos: ‘Como um diário oficial não pode ser encontrado?’ E vimos que, se era tão difícil termos acesso, havia algo errado”, conta Brembatti. Além dela, também trabalharam no projeto Karlos Kohlbach, da Gazeta, James Alberti e Gabriel Tabatcheik, da RPCTV, que faz parte do mesmo grupo de comunicação.
Diante das dificuldades, a equipe começou a buscar os diários de outras formas, como fontes dentro da Assembleia. De 2008 a 2009, conseguiram juntar 724 diários oficiais, que eram até então mantidos em grande parte nos arquivos da Câmara, onde só poderiam ser acessados com autorização do diretor-geral Abib Miguel, acusado de envolvimento na contratação de mais de 20 servidores fantasmas. “De 2006 para cá, temos certeza de que temos todos os diários numerados”, diz Brembatti. Além desses, existem também os chamados “diários avulsos”, responsáveis por mais de 50% dos atos da casa, e que não contam nem ao menos com numeração, diminuindo ainda mais o seu controle.
Abraji
O desafio era, então, lidar com a enorme quantidade de informação a que passaram a ter acesso com os diários. Os jornalistas chegaram à conclusão de que a melhor forma de fazer isso era digitar qualquer dado relativo à movimentação dos funcionários e armazená-los num banco de dados feito com o Excel. “Quem era contratado, quem se aposentava, quem era exonerado... sempre que encontrávamos uma movimentação no meio dos diários oficiais, anotávamos”, conta Brembatti. A jornalista já tinha aprendido algumas técnicas para organizar bancos de dados no Congresso da Abraji de 2008, realizado em Belo Horizonte. “Quando eu voltei do Congresso, me perguntaram o que era legal, o que dava para repassar para os colegas, e um curso que servia para qualquer editoria era o sobre bancos de dados”. Segundo a jornalista, já quando o banco sobre os diários secretos estava sendo feito, José Roberto de Toledo, coordenador de cursos e projetos da Abraji, foi chamado para ministrar o curso de RAC (Reportagem com Auxílio do Computador) aos jornalistas da Gazeta do Povo. “Aproveitamos para tirar várias dúvidas”, conta.
Brembatti relata que, no começo do trabalho, em julho de 2008, as anotações eram feitas de forma independente, durante o tempo que sobrava. Em março de 2009, o trabalho teve um novo impulso, quando a Assembleia divulgou, pela primeira vez, uma lista com os nomes de todos os seus servidores. A partir da lista, começaram a chegar denúncias ao jornal. “Escrevemos algumas matérias, mas era como espremer formiguinhas, não dava a dimensão do que acontecia”.
Para contestar a lista, o trabalho teria que ser muito maior. A partir de abril de 2009, alguns dias passaram a ser separados exclusivamente para o banco de dados. Brembatti conta que, negociando com a diretoria, chegou a ficar vários meses focada no projeto. Segundo ela, o apoio da chefia veio naturalmente, conforme os jornalistas apresentavam os resultados dos trabalhos, como um diário de outubro de 2006, em que havia 53 exonerações no mesmo dia vindas do mesmo gabinete - o que mostrava que deveriam haver, ao menos, 53 pessoas trabalhando para um mesmo deputado.
Brembatti conta que, mesmo tendo material para ser publicado, a opção foi por segurar as reportagens até ter tudo apurado, para que os deputados não pudessem apagar as provas usando da facilidade que tinham em sacar diários e nomeações de uma hora pra outra. Quando estourou o escândalo dos atos secretos do Senado, em junho de 2009, alguns diretores chegaram a sugerir que se publicassem reportagens com base no que os jornalistas já tinham. “Faltava apurar os casos que tínhamos, ainda faltava ir a campo. Não dava, no momento, pra colar um caso no outro, mas a repercussão do que aconteceu no Senado colaborou para mostrar a importância daquilo que estávamos fazendo”, conta a jornalista.
Repercussão
A partir do dia 16 de março, a primeira reportagem da série foi publicada, explicando a situação de descontrole dos diários oficiais da casa. Segundo a jornalista, foi uma tentativa de evitar que novas provas fossem fabricadas. Em seguida, os vários casos de irregularidades, como funcionários fantasma, trabalhadores recebendo benefícios do Programa de Demissão Voluntária e depois sendo recontratados, supersalários, “empréstimos” de servidores da Assembleia para outros órgãos públicos e a repercussão de todas essas denúncias passaram a ser publicados diariamente, na Gazeta e na RPCTV.
Brembatti conta que foi surpreendida pela recepção ao trabalho, que temia ser demasiado “árido” para o público. Com a manifestação dos leitores, ela pode ver, no entanto, “o quanto é importante investir em qualidade, muitos leitores disseram ‘dá gosto de financiar um trabalho desses’”. Quando tiramos um repórter do dia-a-dia e mandamos para uma reportagem investigativa, tem um retorno de qualidade, e os leitores percebem”, diz.
O banco de dados usado como base para a série foi aberto na internet, e pode ser usado agora em consultas do público. A jornalista conta que ele tem sido utilizado por veículos do interior do Paraná, aprofundando o trabalho que seu grupo começou. “Cada jornal local tem condições muito melhores para cobrir a sua região do que nós, eles conhecem a sua realidade, as relações entre os políticos”, diz. A jornalista vê a abertura do banco de dados como um reconhecimento de que é impossível para a redação analisar todas as suas informações sozinha, sem apelar para o chamado “jornalismo interativo”. “Não queremos construir o jornal sozinhos”, diz.
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