Abraji registra novos casos de censura contra imprensa
  • 21.12
  • 2020
  • 18:46
  • Maria Esperidião e Pedro Teixeira

Liberdade de expressão

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Abraji registra novos casos de censura contra imprensa

Nas últimas semanas de 2020, a Abraji vem registrando mais casos de censura contra iniciativas de jornalismo independente. Os sites Ponte, Alma Preta e Atilados foram obrigados a remover conteúdo, enquanto uma liminar determinou que The Intercept Brasil editasse uma reportagem.

Para o professor Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), o crescimento de bloqueios judiciais contra notícias jornalísticas, apuradas por equipes de jornalistas profissionais, gera um alerta.

“Uma coisa é o combate contra a disseminação de discursos de ódio e o combate democrático à indústria da desinformação. Coisa totalmente distinta é censurar, por via judicial, reportagens e opiniões lastreadas em fatos. É fundamental que fique claro por que as duas coisas são diferentes”, sublinha.

Para a advogada Letícia Kleim, responsável por acompanhar na Abraji casos de sites e jornalistas processados, as decisões não condizem com as garantias constitucionais brasileiras que protegem a liberdade de imprensa. "É importante observar que esses casos refletem uma tendência de uso do Judiciário para assediar jornalistas e calar a imprensa livre, uma realidade na América Latina como um todo."

Nos relatos de censura judicial enviados à Abraji, aparece a decisão de retirar de circulação uma matéria que denunciava racismo. A Justiça de São Paulo determinou, em 27.nov.2020, que os sites Ponte Jornalismo e Alma Preta removessem uma reportagem sobre uma mulher negra condenada a pagar indenização à empresa onde trabalhava devido a injúria racial. A intimação chegou às redações apenas no dia 13.dez.2020.

Os dois veículos noticiaram, em set.2020, a condenação, em tutela de urgência, de Luanna Efigenia de Sousa Teófilo, mulher negra obrigada a pagar mais de R$ 15 mil à sua antiga empresa e a remover das redes sociais postagens nas quais denunciava episódios de suposta injúria racial promovidos por sua ex-chefe.

Após a repercussão das publicações, o desembargador Piva Rodrigues determinou a remoção das matérias “Criticada no trabalho por seu cabelo, Luanna foi condenada a indenizar empresa”, da Ponte, e “Ex-funcionária é condenada a pagar mais de 15 mil reais a empresa após denunciar racismo”, do Alma Preta, no âmbito do mesmo processo contra Luanna Teófilo.

Alegando que Luanna Teófilo pulverizou as acusações em outros veículos, o desembargador estendeu a multa de R$ 2 mil por dia de desobediência à antecipação de tutela não apenas aos dois sites, como também a outras empresas de comunicação que divulgaram a notícia, como o Yahoo.

O processo original foi movido pela dona da agência de comunicação PR Newswire, Thais Cristina Baptista Antoniolli, que entrou com uma uma ação civil contra sua ex-funcionária pedindo a exclusão de posts nas páginas de Facebook, “Tira Isso”, e Twitter, “@tiraissojá”, além de indenização pelo prejuízo subjetivo à sua imagem, via medida cautelar.

O juiz de primeira instância julgou a solicitação improcedente, mas teve sua decisão reformada de maneira monocrática pelo desembargador Piva Neto, após recurso da defesa de Antoniolli.

Os advogados da empresária informaram a existência das reportagens como um esclarecimento ao processo que já havia sido julgado, motivando o novo desdobramento em segunda instância.

Intimados no dia 13.dez.2020, os setores jurídicos de Ponte Jornalismo e Alma Preta ainda avaliam como recorrer da decisão, porque não são partes na apelação cível. Para se preservar da multa pecuniária, a Ponte retirou o corpo do texto da reportagem da página em que estava hospedada, mas ainda manteve a manchete e a justificativa da ausência da matéria, onde é possível encontrar o número do processo que resultou na remoção. O Alma Preta acatou a ordem e suspendeu a circulação do conteúdo.


Atilados

Uma iniciativa de jornalismo independente que entrou no ar em Goiás há apenas 45 dias já foi alvo de censura. Atilados, projeto criado por jovens profissionais para incentivar a produção de reportagens investigativas no estado, acabou de estrear a série “Defesa Ardil” - que revelou as relações de uma advogada e juíza aposentada com uma suposta fraude no mercado imobiliário.

No dia 18.dez.2020, o juiz William Costa Mello, da 30ª Vara Cível de Goiânia, acatou o pedido de Maria Luiza Póvoa Cruz parar retirar a reportagem “As ligações da ex-juíza e advogada de famosos Maria Luiza Póvoa Cruz” do site e do Instagram do Atilados (@atiladosbr), e as gravações do Jornal da Sucesso, divulgados no YouTube.

O juiz determinou que os dois veículos se “abstenham de praticar qualquer ato desabonador relacionado à requerente” e estipulou multa diária de R$ 1 mil se a decisão não fosse cumprida.

Em nota de repúdio divulgada nesta segunda-feira, 21.nov.2020, a Fenaj e o Sindicato de Jornalistas de Goiás afirmaram que a “censura judicial é um atentado à liberdade de informação jornalística, garantida pela Constituição Federal". Também alertam para o perigo da utilização da Justiça para intimidar jornalistas.

Na quinta-feira da semana retrasada, 17.dez.2020, o juiz plantonista Ronnie Paes Sandre tinha rejeitado a primeira tentativa de censura. “Fomos surpreendidos com essa retaliação que não deixa de ser uma estratégia para calar o jornalismo independente”, afirma Yago Sales, editor-chefe e cofundador do Atilados.

"Repercutimos a reportagem do Atilados no programa de rádio e demos espaço para se defenderem, mas decidiram nos processar. Acharam melhor usar a influência no Judiciário para censurar", disse o locutor Messias Nogueira, que apresenta o programa Jornal da Sucesso.


The Intercept Brasil

“Controlar o que a imprensa deve publicar é prática das ditaduras”, escreveram os editores Leandro Demori e Paula Bianchi, no texto publicado no The Intercept Brasil, no dia 20.dez.2020, ao informar aos leitores que a justiça os obrigou a modificar o texto sobre o caso da influenciadora Mariana Ferrer, humilhada durante o julgamento no qual acusava um empresário por estupro. 

Cleni Serly Rauen Vieira, juíza substituta da 3ª Vara Cível da Comarca de Florianópolis, ordenou que o Intercept retificasse a reportagem. Segundo nota publicada pela Abraji nesta segunda-feira, 21.dez.2020, a “determinação não tem precedentes no Judiciário brasileiro e se configura como grave violação à liberdade de imprensa.

O Intercept, o portal catarinense ND+ e a repórter Schirlei Oliveira estão sendo processados pelo juiz Rudson Marcos e pelo promotor Thiago Carriço de Oliveira por danos morais. Os dois pedem, respectivamente, R$ 450 mil
e R$ 300 mil por danos morais.


Censura judicial em números

Mesmo antes de a Abraji consolidar os números de 2020, a quantidade de ações judiciais solicitando remoção de reportagens mais do que duplicou: foram 94 em 2020, e 39, em 2019.

Nesse universo, não constam os processos do TSE, publicados em dez.2020. Apenas no tema "Propaganda Eleitoral", onde as ações de retirada de conteúdo são mais comuns, foram 24.324 processos. O Ctrl-X, projeto da Abraji que registra pedidos de retirada de conteúdo, irá filtrar os casos que se enquadram na sua metodologia e atualizar os dados abertos ao público no início de 2021.

Os dados do Ctrl-X indicam que, em anos eleitorais, processos de retirada de conteúdo tornam-se mais frequentes. O patamar mais alto da série histórica foi atingido em 2018, quando políticos acionaram a justiça 836 vezes em imbróglios que podem levar à censura judicial.

Além das redes sociais, as mais visadas em processos de retirada de conteúdo, veículos de imprensa importantes, como Folha de S.Paulo, InfoGlobo, Editora Abril, Editora Três, UOL e Aos Fatos, aparecem na lista do Ctrl-X. São Paulo lidera como o Estado em que há mais processos que pedem retirada de conteúdo.

O professor da ECA Eugênio Bucci, especialista nas discussões sobre ética e imprensa, destaca que as recentes retaliações judiciais são um descalabro.

“A indústria da desinformação e o discurso do ódio não têm origem certa, confundem o público e beneficiam interesses escusos, quando não ilegais. Como exemplo dessa modalidade de mentiras industrializadas, temos as campanhas difamatórias contra autoridades, contra a Justiça e contra jornalistas profissionais e seus órgãos de imprensa. Já as reportagens que vêm sendo objeto de censura judicial incabível têm origem claramente identificada, seus autores são conhecidos e respondem pelos erros eventuais, apressando-se em corrigi-los.”

Letícia Kleim, assessora jurídica da Abraji, explica que os três casos mostrados nesta reportagem apresentam um ponto comum. Além de serem decisões judiciais de censura a veículos de imprensa, o conteúdo tratava de ações do poder Judiciário.

 “Observamos, então, decisões judiciais censurando matérias sobre outras decisões judiciais. No entanto, o Judiciário, enquanto poder público, também deve estar sob o escrutínio da população, e isso só se faz por meio de uma imprensa livre, na contramão do que tem se mostrado nos casos concretos”.

 

Assinatura Abraji