Abraji faz levantamento de jornalistas bloqueados por agentes públicos nas redes sociais
  • 28.05
  • 2020
  • 08:30
  • Abraji

Acesso à Informação

Abraji faz levantamento de jornalistas bloqueados por agentes públicos nas redes sociais

Em 18.mai.2020, mais um jornalista foi barrado virtualmente no canal pessoal de um integrante de alto escalão do governo. O presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, bloqueou, em sua conta do Twitter, o repórter e editor Pedro Borges, da agência Alma Preta, especializada na cobertura da temática racial. O caso reabriu a discussão sobre se esse tipo de barreira pode ser considerada infração ao direito constitucional de acesso à informação e levou a Abraji a iniciar um censo sobre a prática desses cancelamentos nas redes sociais.

A partir desta quinta-feira (28.mai.2020) profissionais de sites independentes, coletivos e da grande imprensa poderão preencher um formulário relatando algumas informações, como, por exemplo, quais autoridades ou representantes do poder público tomaram essa iniciativa de cancelamento, anexando também um print da tela com a mensagem de bloqueio.

Com o banco de informações, a Abraji poderá monitorar o problema e estimular o debate sobre a legalidade dessas ações no momento em que contas extra-oficiais nas redes sociais se tornaram um meio para divulgar decisões oficiais. Clique aqui para preencher o formulário. 


Os casos recentes

O repórter Pedro Borges vinha acompanhando a conta de Sergio Camargo, cujas declarações contrariam os princípios da Fundação Cultural Palmares, criada para fortalecer a cultura negra no Brasil. A agência Alma Preta publicou recentemente reportagens sobre demissões na fundação e relatos de intimidação de servidores que discordavam da gestão. 

Borges relata que, como jornalista, nunca fez qualquer comentário na rede pessoal de Sérgio Camargo com ironias e questionamentos. A conta oficial da agência de jornalismo no Twitter só mencionava a conta oficial da Fundação Palmares. Camargo cancelou o acesso de Borges e o agrediu verbalmente, chamando-o de "defensor de bandido, segregacionista e anti-branco", ofensas que levaram a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira) do Sindicato de Jornalistas de São Paulo a emitir nota.

“Precisamos acompanhar as autoridades públicas de maneira objetiva. Faz parte de nossa atividade como jornalista. O objetivo desses ataques é deslegitimar o nosso trabalho. Meu caso não é exceção. É a nova regra. O bloqueio dificulta o exercício da liberdade de imprensa”, afirma Borges.

Em 2019, o jornalista William De Lucca entrou com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal (STF) contra Jair Bolsonaro, questionando o bloqueio feito a ele pelo presidente no Twitter. O argumento da medida jurídica foi de que Bolsonaro utiliza o Twitter como canal oficial da Presidência da República. 

O jornalista postou tuítes em resposta a Bolsonaro sobre as queimadas na região amazônica. Em um deles, De Lucca colocou uma foto do presidente fazendo continência à bandeira dos Estados Unidos, com a seguinte legenda: “Você está bem preocupado com interesses externos, né?”. A tese da defesa do jornalista era de que a postagem não era ofensiva ou difamatória e estaria “dentro do padrão jornalístico e de um padrão de liberdade de opinião e expressão”. Em dez.2019, o procurador-geral da República, Augusto Aras, emitiu parecer em favor do presidente, alegando que as manifestações de Bolsonaro não geram direitos ou obrigações que poderiam classificar a ação de bloqueio como ato administrativo. 

No entendimento de William De Lucca, não existe vida privada de presidente, já que atos cotidianos do mandatário podem ser considerados, por exemplo, condutas vedadas. “Não sou pago com dinheiro público, o Bolsonaro é. Posso fazer o que bem entender com meus canais de comunicação, pois sou um cidadão comum, tenho de prestar contas apenas a mim mesmo. O que Bolsonaro faz é interditar o debate público. Ele quer ser apenas aplaudido. Não quer ouvir o contraditório, nem que outras pessoas levem o contraditório a seus seguidores. Isso ajuda a disseminar notícias falsas, sem ser desmentido. Quem o faz é bloqueado. Isso só reforça o viés autoritário do governo e a tendência à censura que Bolsonaro sempre expressou e que se materializa em seu mandato”, analisa.

A antropóloga, documentarista e professora da Universidade de Brasília (UnB), Débora Diniz, também tentou o desbloqueio dela no Twitter pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou o pedido da pesquisadora e de 111 advogadas, alegando que a conta do ministro não é um espaço de ato administrativo qualificado. Na sexta-feira (22.mai.2020) o mesmo ministro fez três tuítes para divulgar decisões recentes do ministério envolvendo o Enem.


O que dizem especialistas

Especialistas ouvidos pela Abraji esclarecem que as interpretações atuais são binárias: por um lado, existe um consenso de que as redes sociais de pessoas que ocupam cargos de governança são pessoais; de outro, admite-se que há a possibilidade de cerceamento à liberdade de expressão no bloqueio de usuários.  

“Por serem contas que são utilizadas, em geral, para anunciar políticas públicas e medidas governamentais, até se poderia considerá-las de interesse público”, afirma Natália Neris, coordenadora da linha de investigação "Desigualdades e Identidades" do InternetLab, centro de pesquisa voltado para estudos relacionados ao direito e à tecnologia.

A pesquisadora pontua que o tema foi entendido exatamente nesses termos em 2018, quando a Justiça norte-americana decidiu que Trump violava a Primeira Emenda da Constituição (que trata de liberdade de expressão) ao impedir usuários do Twitter de acessarem sua página.  

“Não há no Brasil decisão definitiva. No ano de 2019, os advogados Thiago G. Viana e Paulo Iotti formularam uma ação popular citando diferentes casos — entre eles o bloqueio de contas de jornalistas do The Intercept por Jair Bolsonaro — argumentando que bloqueios realizados por autoridades públicas violam o direito à informação”, explica Neris. 

“Acredito que o caso mais recente de bloqueio do jornalista antirracista Pedro Borges recoloca todas as questões acima sobre liberdade de expressão, direito à informação e participação política livre de censura de grupos vulneráveis, que nos últimos anos têm tido a oportunidade de serem mais vocais na esfera pública, seja acompanhando políticas, seja construindo novas narrativas sobre si”, afirma.  

Reprodução

“O que todos os casos parecem revelar é que o uso de contas em redes sociais por autoridades políticas no Brasil possui caráter informativo de atos governamentais diversos. Privar cidadãos de seu acesso pode impedir uma arena pública mais plural e diversa, já que oculta informações e possibilidades de debates abertos. Isso certamente relativizaria a ideia de ‘minha conta, minhas regras’ para esses atores em específico”, opina Neris. 

Caio Machado, advogado, cientista social e pesquisador do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT), também concorda que os bloqueios fragilizam o respeito à transparência e podem abalar os direitos constitucionais. Para Machado, há três pontos importantes a serem observados na eclosão dessas barreiras digitais. 

O primeiro é a confusão entre público e privado: os governantes abrem contas usando dados pessoais (e-mails, telefones) e acabam emitindo comunicados públicos, então essa divisão não se mantém no aspecto comportamental. O segundo argumento é que todo cidadão tem direito a acessar informação sobre seu governo, seja pelas garantias constitucionais, seja por outros dispositivos, como a Lei de Acesso à Informação (LAI). 

“O terceiro ponto é sobre a arquitetura da plataforma. A partir do momento em que o governante emite um comunicado no Twitter, por exemplo, ele abre um espaço no debate público, porque que se cria uma thread, um fio, onde as pessoas comentam e replicam. Ao bloquear indivíduos, o detentor da conta, no caso o governante, impede que certas vozes na sociedade participem desse debate. A ofensa acaba sendo dupla: você impede que o cidadão acesse a informação e que ele participe do debate", conclui.

Ivar Hartmann, doutor em Direito Público e coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-RJ, um dos maiores especialistas do país em direitos digitais e desinformação, lembra que esses movimentos de criar barreiras nas plataformas são mundiais e apartidários. Enquanto não há uma orientação clara a respeito, os jornalistas bloqueados podem mover ações mostrando os prejuízos causados pelo cancelamento.

Segundo o professor, o profissional de imprensa pode, inicialmente, acionar a Justiça apresentando provas que demonstrem o uso do perfil individual do político ou da autoridade para fins oficiais e públicos. Para isso, basta printar posts que comprovem essa prática, por exemplo, de divulgação de atos da gestão. “Documentando essas mensagens nas redes sociais, é possível solicitar ordem judicial de reversão do bloqueio”, orienta. 

Há também a possibilidade de solicitar indenização por danos materiais, mostrando que o bloqueio impossibilitou o jornalista de produzir reportagens e exercer sua profissão. Por último, um pedido de indenização por danos morais — embora seja uma opção mais improvável de ser acatada pelos magistrados.

Na opinião de Luiz Fernando Toledo, jornalista especializado em transparência pública e diretor da Abraji, é um absurdo o entendimento de que as redes dos políticos são pessoais e, portanto, não estariam sujeitas à transparência. “É lá que eles postam seus atos enquanto governantes e quase sempre essas redes são alimentadas por assessores pagos com dinheiro público ou, no mínimo, em horário de trabalho”. 

Assinatura Abraji