- 08.04
- 2022
- 15:52
- Abraji
Formação
A ascensão do jornalismo investigativo científico
Publicado originalmente em inglês por James Fahn no site da GIJN. Traduzido por Ana Assam.
*Foto de capa: A poluição que flui da bacia amazônica estimulou o crescimento de sargaço, inundando as costas do Caribe com margens apodrecidas de macroalgas. Imagem: Shutterstock
Os jornalistas estão usando cada vez mais as ferramentas do jornalismo científico e da ciência para realizar reportagens investigativas e até mesmo para destacar descobertas questionáveis.
A mineração de dados e as imagens de satélite são frequentemente evidenciadas neste novo campo de reportagem científica investigativa, que se mostrou particularmente promissor na descoberta de histórias de saúde e meio ambiente durante esta era da pandemia de covid-19 e dos crescentes impactos das mudanças climáticas. Mas Deborah Blum, diretora do Programa Knight de Jornalismo Científico do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), observa que os jornalistas podem usar essas ferramentas e suas habilidades de “reconhecimento de padrões” para tirar conclusões inovadoras sobre muitos tópicos.
“Os jornalistas precisam entender a ciência implícita e ser meticulosos sobre os fatos.” — Deborah Blum do MIT
“Você tem muitos jornalistas que fazem mineração de dados – escavando bancos de dados e efetivamente extraindo informações – o que está se tornando padrão numa boa reportagem investigativa”, diz Blum. “Na verdade, a internet oferece muitas ferramentas para examinar a ciência. Ao investigar um determinado composto [químico], por exemplo, uso o PubMed e Google Scholar para verificar a ciência por trás de cada pergunta e a credibilidade das fontes”.
Existem, de fato, muitos bancos de dados online e outros recursos que são úteis para o jornalismo científico investigativo. PubMed é um banco de dados que contém mais de 33 milhões de citações e resumos de literatura biomédica. Para citar apenas alguns outros: o Inventário de Emissões Tóxicas, administrado pela Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA); Toxic Docs, operado pela Columbia University e City College de Nova York; Industry Documents da Universidade da Califórnia em San Francisco com memorandos corporativos e relatórios internos ou não publicados; e Safety Gate, o sistema de alerta rápido da União Europeia para produtos não alimentícios perigosos.
Novas ferramentas e técnicas
Enquanto isso, Gustavo Faleiros, o fundador do InfoAmazonia, um site regional de notícias ambientais, é um grande defensor do uso de imagens de satélite e outras técnicas de sensoriamento remoto para dar suporte a uma abordagem de jornalismo científico investigativo conhecida como geojornalismo. “Nossa necessidade de entender o ambiente levou os jornalistas a usarem ciências da terra, análise geoespacial, todos os dados de satélites e sensores remotos, junto com visualização de dados e ferramentas de mapeamento interativo, para explicar as rápidas mudanças que estamos vendo”, diz ele.
Esses líderes do jornalismo têm muitos exemplos de histórias que foram iluminadas por técnicas de ciência investigativa. Faleiros aponta para uma série de histórias que a InfoAmazonia produziu no ano passado em colaboração com a Earth Journalism Network (EJN) da Internews – onde sou diretor executivo – e outros jornalistas nas Américas sobre como a poluição que flui da bacia amazônica estimulou um enorme crescimento de sargaço, inundando as costas caribenhas com margens apodrecidas de macroalgas.
“Encontrar as imagens de satélite em alta resolução – para documentar a maior proliferação de algas do mundo e que a mineração na região do Tapajós no Brasil era uma fonte de poluição tóxica – foi muito importante”, explica Faleiros. “Conseguimos fazer isso graças à nossa parceria com a EarthRise Media” – uma agência digital que apoia reportagens ambientais com ferramentas de alta tecnologia.
Um dos mapas usados pelo BuzzFeed News para ilustrar uma investigação sobre campos de prisioneiros na China. Imagem: captura de tela
Essas técnicas não estão sendo usadas apenas para histórias relacionadas à ciência, observa Faleiros. As histórias vencedoras do Prêmio Pulitzer do BuzzFeed News sobre os campos uigures na província chinesa de Xinjiang foram baseadas na análise de imagens de satélite e modelos arquitetônicos em 3D, revelando sua natureza como centros de detenção. Tanto o Google quanto o Bing haviam borrado essas áreas em seus mapas públicos, então o BuzzFeed usou imagens da Planet, uma empresa com fins lucrativos que fornece imagens detalhadas de satélite, para mostrar que os campos de detenção eram mais extensos do que o governo chinês havia reconhecido. “Os cientistas não se arriscariam a fazer tal pesquisa”, acrescenta.
“Particularmente quando se trata de temas como saúde, meio ambiente e mudanças climáticas, os fenômenos que estamos vendo são cada vez mais complexos e globais… É por isso que esse tipo de jornalismo científico investigativo é cada vez mais importante.” — Gustavo Faleiros
Faleiros, que agora trabalha para a Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center, também está colaborando com Planet e KSAT, uma empresa norueguesa, para fornecer treinamento para bolsistas de jornalismo sobre como realizar análises avançadas de imagens e extrair medições usando filtros espectroscópicos que podem medir mudanças em vegetação. A EJN, enquanto isso, está treinando jornalistas na região do rio Mecom – abrangendo Camboja, Laos, Mianmar, Tailândia e Vietnã – sobre como usar técnicas de jornalismo de dados para melhorar a reportagem ambiental, e publicou recentemente uma lista de conjuntos de dados úteis para questões de investigações ambientais e relacionadas ao clima. Outros grupos com recursos para compartilhar incluem a Society of Environmental Journalists (SEJ, na sigla em inglês), a Associação de Jornalistas de Saúde, a Rede de Jornalismo de Saúde, Repórteres e Editores Investigativos (IRE), a Federação Mundial de Jornalistas Científicos e suas afiliadas nacionais e, claro, a Rede Global de Jornalismo Investigativo.
Blum também usou técnicas de jornalismo científico para descobrir histórias e tirar novas conclusões importantes, como em seu artigo para a Undark Magazine sobre os riscos de usar fórmula de soja para alimentar bebês. “Eu estava vasculhando algumas das revistas científicas, incluindo alguns artigos sobre fórmula de soja e seu efeito sobre os sistemas endócrinos de crianças. Comecei a pesquisar o número de estrogênios no leite de soja e percebi que este é um grande experimento no desenvolvimento humano. Ninguém testou o que significa dar fórmula de soja, que tem 11.000 compostos, para bebês”, explica ela. “Conversei com um funcionário federal e perguntei a ele de forma direta, e ele concordou que estamos conduzindo essencialmente um experimento não planejado sobre a saúde das crianças”.
Liza Gross, repórter do Inside Climate News, que foi anteriormente jornalista científica da PLOS Biology e é especializada em cobrir mudanças climáticas e agricultura na Califórnia, tem outro exemplo de sua própria autoria, como ela descreve aqui. “As pessoas costumavam pensar que os pesticidas mais nocivos estavam sendo aplicados na área de Fresno, mas consegui obter dados de pesquisadores e um especialista em sistema de informações geográficas (GIS) que mostraram quais pesticidas estão sendo aplicados em cada local”, e que quantidades perigosas estavam sendo aplicadas no condado de Ventura, que fica no coração agrícola da Califórnia e próximo a várias escolas.
“Podemos tirar conclusões de pesquisas e dados que os cientistas ainda não obtiveram”, afirma Gross.
O The Great Soy Formula Experiment, da revista Undark, explorou os potenciais impactos na saúde de dar leite de soja para crianças. Imagem: Shutterstock
Impacto da pandemia de covid-19
Blum, Faleiros e Gross acreditam que o advento da covid-19 estimulou muito o jornalismo científico investigativo, à medida que os jornalistas tentam reunir dados sobre as taxas de mortalidade que muitos governos não conseguem coletar ou procuram ativamente esconder. A reportagem da revista The Economist sobre o excesso de mortalidade durante a pandemia é um exemplo disso. No Brasil, acrescenta Faleiros, o jornal Folha está trabalhando em conjunto com O Globo para tentar coletar dados precisos de mortalidade, já que os números do governo não são confiáveis.
A pandemia também oferece um bom exemplo de como o jornalismo investigativo está evoluindo: descobrir histórias e abusos dentro do próprio empreendimento científico. Tanto Blum quanto Gross apontam para o debate sobre a origem do vírus covid-19 – se teve origem em um laboratório ou veio de outras interações entre pessoas e animais, por exemplo, em um mercado úmido de Wuhan – como um exemplo de como os jornalistas precisam manter seu ceticismo mesmo quando cientistas e outros especialistas sugerem inicialmente que a resposta é clara.
“Aqueles que estavam cobrindo a covid-19 estavam possivelmente muito próximos dos cientistas que originalmente descartaram a teoria do vazamento de laboratório, até que David Relman, da Universidade de Stanford, disse que deveríamos investigar isso”, diz Gross.
O rastreador de dados de excesso de mortes The Economist. Imagem: captura de tela
Questionando cientistas — e a própria ciência
“Leon Lederman [o físico vencedor do Prêmio Nobel] observou que todos costumavam aceitar a palavra dos cientistas, mas agora vemos mais disposição por parte dos jornalistas em questionar algumas descobertas, e estamos vendo resistência dos cientistas sobre a cobertura jornalística, também”, diz Blum. “Não devemos ser torcedores fanáticos da ciência. Fazemos investigações independentes e nossa lealdade deve ser para com nosso público”.
O esforço para atender a essas necessidades está vindo não apenas de empresas jornalísticas tradicionais, mas cada vez mais de sites de notícias sem fins lucrativos.
Blum aponta muitos exemplos de jornalistas que investigaram descobertas científicas e o comportamento ético dos próprios cientistas. Entre eles: Sam Kean, autor do recente livro “O Cirurgião do Picador de Gelo”; Azeen Ghorayshi, que expôs repetidamente casos de assédio sexual por parte de cientistas; e voltando ainda mais, a investigação de John Crewdson sobre a alegação de Robert Gallo de ter descoberto o vírus HIV. A investigação de Rebecca Skloot sobre o uso de linhagens celulares em pesquisas médicas, conforme documentado em seu livro “A vida imortal de Henrietta Lacks”, é outro bom exemplo.
Novamente, existem recursos online aos quais os jornalistas podem recorrer ao investigar pesquisas científicas e pesquisadores: o Retraction Watch de Ivan Oransky, fornece atualizações sobre trabalhos acadêmicos que foram retirados, por que e quem são os reincidentes; e a disciplina de investigação científica de Charles Seife, na Universidade de Nova York (NYU). Gross vê uma necessidade urgente de monitorar mais de perto o trabalho de agências científicas governamentais, como, nos EUA, a Food and Drug Administration e a Environmental Protection Agency.
O esforço para atender a essas necessidades está vindo não apenas de empresas jornalísticas tradicionais, mas cada vez mais de sites de notícias sem fins lucrativos como ProPublica, EJN, China Dialogue, Mongabay, Oxpeckers, InfoNile, Environmental Reporting Collective e as agências de financiamento que apoiam essa cobertura. “Estamos vendo cada vez mais fundações investindo dinheiro no jornalismo científico de diferentes maneiras, por causa da covid e das mudanças climáticas em particular”, diz Blum, assinalando como exemplo o prêmio Sharon Begley de Reportagem de Ciência de US$ 20.000 concedido pelo Council for the Advancement of Science Writing.
Gross acrescenta que há muitas fontes de financiamento para matérias voltadas à pesquisa científica. Entre eles estão a Rede de Reportagens Alimentares e Ambientais (FERN), o Fundo para Jornalismo Investigativo (FIJ), Type Investigations, o Fundo para Jornalismo Ambiental da Sociedade de Jornalistas Ambientais (SEJ), o Fundo para Reportagem Investigativa da revista Science e a bolsa Alicia Patterson. Na Europa, o Arcadia Fund também ajudou a estabelecer o novo Earth Investigations Programme, que oferece subsídios a jornalistas de todo o mundo.
Blum ainda gostaria de ver mais esforços desse tipo e acredita que os jornalistas – como observadores treinados para ver padrões em dados e eventos que outros podem deixar passar – têm muito a contribuir quando se trata de investigar fenômenos científicos e o próprio processo científico. “Mas os jornalistas precisam entender a ciência implícita e ser meticulosos com os fatos”, alerta ela.
Faleiros também vê a necessidade de um jornalismo científico profundamente informado. “Principalmente quando se trata de temas como saúde, meio ambiente e mudanças climáticas, os fenômenos que estamos vendo – como os impactos da Amazônia nas chuvas da América do Sul ou a proliferação de algas no Atlântico – são cada vez mais complexos e globais.” ele observa. “É por isso que esse tipo de jornalismo científico investigativo é cada vez mais importante”.