2023 será um ano de reconstrução para o jornalismo, indica especial de Abraji e Farol

Os quatro anos de governo Bolsonaro deixaram sequelas significativas para o jornalismo e a democracia brasileira. Escalada da violência contra profissionais, tentativa de desmonte de instituições importantes, atentados claros e velados à ordem democrática, propagação deliberada de desinformação, ataques aos direitos de minorias políticas e negligência em relação às questões ambientais são algumas das marcas desse período.

Apesar de a derrota do atual presidente nas urnas sugerir o início de um ambiente mais seguro para o exercício do jornalismo no país, os profissionais de imprensa deverão permanecer vigilantes e dispostos a transformar esse aprendizado em iniciativas reestruturantes, que ajudem, sobretudo, a reconstruir a democracia e a fortalecer o exercício seguro e amplo da profissão.

Por isso, o próximo ano será de reconstrução tanto para o jornalismo quanto para a democracia brasileira. Esta é a projeção do especial "O jornalismo no Brasil 2023", lançado pelo Farol Jornalismo e pela Abraji nesta segunda-feira (12.dez.2022). Em sua sétima edição, o projeto convidou dez jornalistas e pesquisadores a refletir sobre as lições do período e os desafios que a imprensa poderá enfrentar em 2023.

“Em 2022, sob pancadas, o jornalismo avançou. Em 2023, em seu processo de cicatrização, seus profissionais não terão descanso. Porque no ano que se avizinha o jornalismo precisará transformar suas feridas em consciência, e sua consciência em novas práticas que o afirmem como uma instituição capaz de dar conta dos desafios impostos à sociedade brasileira. Assim, ele cumprirá seu papel como um dos pilares da democracia”, escreve Moreno Cruz Osório no texto introdutório do especial.

"O que fica do Bolsonarismo?", questiona Natalia Viana, diretora executiva da Agência Pública e presidente da Ajor (Associação de Jornalismo Digital). Em seu artigo, ela discorre que, para além de Jair Bolsonaro, o bolsonarismo e as táticas da nova direita digital vieram para ficar, o que cria a necessidade de os jornalistas entenderem melhor os mecanismos de desinformação e o ambiente digital, especialmente para investigar a política nacional.

Viana não vislumbra um cenário muito positivo sobre o clima de hostilização a jornalistas: “Há pouco o que comemorar. Nessa próxima etapa, a imprensa seguirá sendo um alvo preferencial, pois o ódio a ela funciona como elemento aglutinador da identidade bolsonarista”.

A questão da violência contra a categoria também aparece no artigo de Denise Mota, editora na agência de notícias France Presse, onde integra o Comitê de Diversidade, e colunista e autora do blog Preta, Preto, Pretinhos, na Folha de S.Paulo. Ela parte do princípio de que os jornalistas passaram a experimentar um tipo de tratamento já conhecido pelas minorias políticas. “Deixou de ser visto como um interlocutor qualificado, a voz que pautava o debate público, o detentor da verdade constituída, para ser achincalhado, expulso, humilhado, violentado”.

Denise Mota defende que, ao experimentar esse lugar de marginalização, o jornalismo, se realmente quiser tornar a sociedade brasileira mais justa, como se propõe, precisa “compreender os perversos mecanismos que garantem e renovam a subalternização das maiorias minorizadas do país, humilhadas e excluídas como norma há séculos, não em um lapso circunscrito a um mandato presidencial”. E, a partir dessa consciência ampla, adotar práticas fundamentais para cobrir as complexidades do país.

Para Maristela Crispim, editora-chefe da Eco Nordeste, a cobertura ambiental, sobretudo da crise climática, será um dos principais desafios para o jornalismo em 2023. Em seu artigo, ela afirma que os próximos passos dos novos governos devem continuar sendo monitorados com muita atenção: “o jornalismo precisa continuar a vigiar, fiscalizar e educar, ao dar luz à ciência e aos conhecimentos tradicionais, tão caros à manutenção dos serviços ecossistêmicos para as atuais e futuras gerações”. 

Ao ponderarem sobre como combater dois problemas que cresceram significativamente nos últimos anos, a desinformação e o negacionismo, Lucas Thaiynan e Graziela França, da Agência Tatu, de Alagoas, colocam o jornalismo de dados local como protagonista nesta frente de batalha. Eles afirmam que, embora façam um trabalho importante, os grandes núcleos especializados não dão conta de olhar para as demandas hiperlocais, uma vez que estão focados no cenário nacional. “Espera-se que em 2023 novas iniciativas locais possam surgir e ampliar a produção jornalística baseada em dados para além do eixo Rio-São Paulo”.

Ainda sobre desinformação, Isabela Sperandio, gerente de marketing digital e audiências no JOTA, apresenta o SEO (otimização de mecanismo de busca) como uma ferramenta possível para combater o problema e fazer com que o jornalismo de qualidade chegue até as pessoas. “Não só porque os sites precisam de páginas vistas e usuários únicos para sobreviver, mas porque espectros políticos antidemocráticos presentes nessa guerra cultural vão ganhando a disputa do consumo de notícias”, afirmou Sperandio no artigo "SEO e a construção de um jornalismo de qualidade". 

Em um contexto crescente de enfraquecimento de veículos com esfera de atuação local, Isabelle Maciel, cofundadora e editora-chefe do portal Tapajós de Fato, do Pará, sublinha o papel cada vez maior do jornalismo que cobre os assuntos mais próximos das comunidades, com potencial para “ecoar vozes e realidades que muitas vezes não têm espaço na grande mídia tradicional brasileira”.

No artigo “Em 2023, jornalismo local terá a esperança de atuar com liberdade e independência”, ela destacou as vantagens de esse tipo de jornalismo estar presente “onde tudo acontece”, relatando questões que afetam diretamente a vida das pessoas, mas também seus desafios, já que essa proximidade com o território e as fontes facilita o cerceamento do trabalho do jornalista por pessoas que detêm poder na região onde ocorre ao trabalho de investigação.

Professor do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Jacques Mick opina sobre o que pode acontecer com veículos que se alinharam ao Bolsonarismo após a derrota do presidente. O pesquisador aponta quatro estratégias que podem ser implementadas por essas mídias, como continuar fazendo oposição radical ao próximo governo; administrar críticas à nova administração; adotar uma nova postura editorial e apoiá-la; ou abraçar valores jornalísticos clássicos.

Rafiza Varão, professora de Jornalismo e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB), trouxe para o campo da ética sua discussão sobre as dificuldades enfrentadas no jornalismo e pelos jornalistas, de modo geral, no contexto brasileiro, ao menos desde as Jornadas de Junho de 2013.

Após apontar os erros cometidos pela imprensa nos últimos anos, como o apego à ideia de que se deve ouvir sempre os dois lados, focando apenas na imparcialidade e objetividade, sem refletir, por exemplo, acerca dos perigos de ajudar a fomentar opiniões antidemocráticas e contrárias à ciência, a pesquisadora defende que, em 2023, o jornalismo deve ter como lição o entendimento de que a ética profissional não é algo estanque, “uma norma que deve ser seguida de forma irrefletida mesmo que as evidências digam o contrário”.

Varão defende que “isso precisa ser revisto, pois o antidemocrático não pode ser colocado no mesmo patamar do democrático. A ética requer posicionamentos deliberados, não automáticos, pois implica decisões que nem sempre estão previstas por códigos deontológicos”.

Por fim, “Quantas histórias incríveis vamos conseguir contar no ano que vem?”. A indagação é de Tiago Rogero, criador e coordenador do projeto Querino, da Rádio Novelo. Também diretor da Abraji, Rogero levanta uma preocupação relevante acerca de uma questão que pode estar impactando no incentivo a diferentes formatos de podcasts no Brasil: a mentalidade do mercado de financiar apenas produtos de áudio que dão grandes retornos de audiência, que, em sua maioria, são programas que tratam de crimes reais (true crime), os de entrevistas feitas por celebridades com outras celebridades e os de “autoajuda”.

“Por isso, no ano que vem, um esforço da consolidação do podcast como plataforma economicamente viável para o jornalismo passa pelo fortalecimento de formas variadas de financiamento”, defendeu o jornalista.