- 21.10
- 2020
- 16:02
- Maria Esperidião e Pedro Teixeira
Liberdade de expressão
Levantamentos da Abraji e de outras organizações confirmam deterioração da liberdade de imprensa no país
Várias organizações publicaram, nos últimos dias, relatórios com dados alarmantes sobre a situação da liberdade de imprensa no Brasil. Hoje (21.out.2020), a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) anunciou seu próprio monitoramento: foram 102 alertas reportados para discursos estigmatizantes — feitos somente por autoridades públicas — contra jornalistas no Brasil em 2020. Em 2019 foram 59. Ou seja, um aumento de 73%.
O presidente Jair Bolsonaro proferiu 72 dos 102 discursos estigmatizantes registrados pela Abraji desde janeiro de 2020. Nesta categoria, ele é o agressor mais recorrente. Seus filhos, que também ocupam cargos eletivos, estigmatizaram o exercício jornalístico outras 12 vezes.
De acordo com a assessora jurídica da Abraji, Leticia Kleim, discursos estigmatizantes são uma forma de ataque a jornalistas e comunicadores adotada por agentes estatais, autoridades públicas, políticos ou campanhas mobilizadas por eles. “Essas declarações se apoiam em um tom de descredibilização, ofensa, intimidação e visam ao desvalorização sistemática da imprensa como um todo”, ressalta.
Dos 102 registros de discurso estigmatizante, 60 tiveram como alvo a mídia e a atividade jornalística enquanto instituições. O Grupo Globo sofreu 16 ataques, seguido pela Folha de S. Paulo (12).
Os discursos estigmatizantes podem acontecer tanto em compromissos oficiais, como no ambiente digital. Nas lives promovidas às quintas-feiras, em seu canal no YouTube, Bolsonaro estigmatizou jornalistas, veículos ou o exercício jornalístico 16 vezes.
O Relatório Sombra 2019, monitoramento feito pela Abraji junto com 9 entidades latino-americanas, apontou um total de 130 alertas no Brasil no ano passado. Dentre eles, 59 eram discursos estigmatizantes - 45% do total. No dossiê, a rede Voces Del Sur avaliou que os alertas de violações aumentariam no país.
Neste ano, já são mais de 275 alertas totais reportados pela Abraji, e os discursos estigmatizantes representam 37% deles, seguidos por um aumento nos indicadores para agressões, ataques e restrições ao acesso à internet. O Relatório Sombra também considera assassinatos, desaparecimentos forçados, sequestros, detenções arbitrárias, tortura, violações ao acesso à informação, ações judiciais contra mídia e jornalistas, quadros jurídicos fora dos padrões e abusos de poder estatal.
Para o presidente da Abraji, Marcelo Träsel, os números dão a dimensão do ambiente hostil enfrentado pelos profissionais de imprensa.
“O presidente Jair Bolsonaro abandonou as normas de interação entre o Planalto e os jornalistas válidas em Brasília desde o fim da ditadura militar, as quais garantiam um mínimo de civilidade e respeito entre as partes, mesmo nos períodos mais tensos. Infelizmente, muitos de seus ministros e apoiadores políticos vêm seguindo o exemplo e passaram a buscar a intimidação da imprensa, como o prefeito carioca Marcelo Crivella. É um comportamento inaceitável para qualquer mandatário ou servidor público, mas principalmente para o presidente da República.”
Outros relatórios
No dia 20.out.2020, a Repórteres sem Fronteiras divulgou a terceira parte de uma série de publicações sobre a liberdade de imprensa no Brasil em 2020. O documento expõe “os múltiplos mecanismos de censura indireta operados pelo governo Bolsonaro”.
A ONG aponta que Bolsonaro continua atacando jornalistas e dificultando o trabalho de veículos críticos. O relatório destaca a ingerência do governo na gestão da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e o assédio judicial contra profissionais de imprensa, também denunciado pela Abraji.
O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) ironizou a publicação no Twitter e voltou a acusar a imprensa de “divulgar fake news”. Em entrevista à Abraji, Emmanuel Colombié, diretor regional da RSF para a América Latina, afirmou que o relatório mostra que o governo federal contribui para a consolidação de um ambiente cada vez mais hostil ao jornalismo.
“Ainda que a Constituição brasileira garanta a liberdade de imprensa e interdite a censura no país, o que se tem observado é a intensificação dos obstáculos impostos ao livre exercício do jornalismo. A censura indireta é operada por meio de estratégias de ataques coordenados nas redes contra jornalistas e meios de comunicação, restrições de acesso à informação, politização de organismos públicos, favorecimentos na distribuição de verbas publicitárias e desmantelamento da comunicação pública”.
"Total de ataques do 'sistema Bolsonaro' contra a imprensa durante o terceiro trimestre de 2020". Infográfico: RSF
No início da semana, a Artigo 19, mostrou que o Brasil sofreu a maior queda no mundo na avaliação da liberdade de expressão e passou a ser qualificado como um dos países onde existe "restrição" a esse direito.
No informe de 2020, compilado em português aqui, o Brasil ocupa a 94ª posição entre os 161 países avaliados, empatado com Filipinas, abaixo de Hungria e Haiti e atrás de quase todos os países da América do Sul, com exceção da Venezuela. A queda foi de 18 pontos em relação ao ranking de 2019.
Assim como no relatório da RSF, os ataques constantes às mulheres jornalistas no Brasil - já denunciados às instâncias internacionais pela Abraji e por outras organizações - são citados pela Artigo 19, lembrando os nomes de Patricia Campos Mello, da Folha de S. Paulo, e de Bianca Santana, autora de um blog no Ecoa, um canal do portal UOL.
“No Brasil e no mundo, é preciso garantir um ambiente de trabalho seguro para jornalistas, livre de ataques a organizações da sociedade civil e em que a população não encontre barreiras de acesso à informação pública e a uma internet livre de violações de direitos humanos”, escreveu Denise Dourado Dora, diretora executiva da organização no Brasil.
Um levantamento da Fenaj divulgado no dia 14.out.2020 identificou 299 ataques à imprensa proferidos pelo presidente Bolsonaro nos primeiros nove meses de 2020. O presidente utilizou suas redes sociais para disparar nova hostilidade contra os profissionais.
- "Ataque" n° 300: Perderam a boquinha! 👍 pic.twitter.com/WEqi7LzIWs
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) October 15, 2020
Foi divulgado também o Índice Chapultepec, elaborado pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). Segundo o relatório, o continente americano, incluindo os Estados Unidos, sofre "restrição parcial da liberdade de expressão e de imprensa, com a Venezuela a ter a pior classificação”.
Brasil e Bolívia aparecem na lista como lugares com “alta restrição”, segundo o informe apresentado durante a 76ª assembleia da SIP, nesta quarta-feira (21.out.2020). Na análise, feita entre 01.mai.2019 e 30.abr.2020, os pesquisadores concluíram “que o índice confirma o processo de deterioração da frágil democracia brasileira, tendo como protagonista o poder executivo, especialmente o presidente Jair Bolsonaro”.
“A influência do presidente se manifesta verbalmente [grifo da Abraji], com ataques a empresas e profissionais de imprensa, ou formalmente, por meio de atos oficiais, como a seletividade de fundos publicitários. Isso acaba fomentando um clima de intolerância que não contribui para melhorar a liberdade de expressão”, diz o texto.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil