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O que uma startup jornalística fracassada pode nos ensinar sobre envolver leitores na produção de reportagens
Publicado originalmente em inglês no site do GIJN. Traduzido por Breno Costa, do GIJN Português
Quando o OpenFile foi lançado, em 2010, a fechada comunidade midiática canadense reagiu com um entusiasmo discretamente cético. Jornais tradicionais, incluindo o The Globe and Mail e o National Post, disseram que o OpenFile iria revolucionar o jornalismo online… ou que, ao menos, “redefiniria” esse jornalismo.
Por trás das manchetes estava um conceito elegante: peça aos leitores que te digam o que eles acham que é importante e tome decisões editoriais a partir disso. Dois anos mais tarde, a indústria da mídia assistia com igual fascínio a suspensão das publicações do OpenFile, uma briga amarga com freelancers não pagos e o eventual encerramento do site.
“O Canadá não tenta as coisas duas vezes”, disse o ex-editor do OpenFile David Topping.
Quando uma empresa de mídia tenta algo novo e fracassa, isso é usado como um exemplo de por que aquela ideia nunca deveria ser experimentada novamente. Ainda assim, a organização produziu várias histórias interessantes ao colocar sua audiência no centro de seu trabalho, provando que cidadãos que têm conhecimento da mídia e que se engajam nas suas comunidades irão participar se houver um caminho aberto para eles nesse sentido. A parte que o OpenFile não percebeu - e que serve de alerta para startups de mídia hoje em dia - é como financiar o engajamento do leitor de forma que jornalistas possam dedicar mais tempo para atingir segmentos mais amplos de suas comunidades.
Alto valor no conhecimento local
A ideia de abrir um arquivo tem um certo charme envolvido. Esperava-se que arquivos digitais pudessem gerar um acúmulo de conhecimentos ao passo que leitores adicionassem links, comentários, fotos, vídeos e documentos sobre assuntos de interesse das suas comunidades. Nos áureos dias, era exatamente como a OpenFile trabalhava. Usando códigos postais como geolocalizadores, leitores em Toronto, Vancouver, Calgary, Montreal, Halifax e Ottawa poderiam abrir arquivos e leitores que viviam próximos desses locais poderiam acrescentar informações. Se o achado se encaixasse nos critérios editoriais para que fosse considerada uma boa história, um editor passaria o arquivo para um repórter.
Imediatamente, OpenFile encontrou “alto valor” no conhecimento local, algo que a mídia tradicional estava desperdiçando, diz Wilf Dinnick, fundador da OpenFile. Os repórteres também começaram a avançar mais em suas reportagens. “Nós tínhamos contatos, e-mails diretos e um monte de informação”, conta Dinnick.
Uma vez que um arquivo era aberto, ele nunca era fechado. Jornalistas eram encorajados a atualizar suas matérias, a fazer correções de forma transparente. Lorax B. Horne, uma jornalista da OpenFile em Halifax, descreve cada história como “um elo na corrente que poderia continuar se ligando no tempo”, eventualmente criando um “arquivo de notícias locais que poderia crescer ao longo do tempo”.
Essas histórias impulsionadas por leitores representam uma disrupção em relação ao modelo tradicional da mídia para contar histórias. No estágio um do modelo, uma única pessoa abre o arquivo. No caso do OpenFile, essa pessoa é geralmente alguém com alto engajamento na sua comunidade, educada e com conhecimento de mídia. Uma vez que essa pessoa abre o arquivo, eles têm um incentivo para compartilhá-lo com outras pessoas (estágio dois), incluindo stakeholders que estão menos engajados mas que podem acrescentar suas próprias ideias ao arquivo. A principal contribuição do OpenFile ocorre no terceiro estágio do modelo, onde um assunto local é transformado em uma história que é relevante para uma audiência mais ampla. A esperança é que algumas das pessoas no terceiro estágio irão passar para o primeiro estágio e iniciar o processo novamente. Se cada um dos estágios caminham juntos, “você tem um modelo bastante efetivo”, diz Dinnick.
Na prática jornalística tradicional, um jornalista e/ou seu editor decide o que a história será e então compartilha isso com a comunidade ampliada. “Muito frequentemente, a história que você começa no início do dia parece muito com aquela que você termina ao fim do dia, na redação”, afirma Dinnick. Quando aquele modelo é virado de cabeça pra baixo, histórias que às vezes parecem ridículas se revelam importantes.
“Nós aprendemos que nós não devemos descartar (uma história) apenas porque ela não é articulada de uma forma que nós, como jornalistas, faríamos”, diz Dinnick.
Muitos ex-colaboradores do OpenFile apontam a matéria 204 Beech como um sinal precoce de sucesso. Tudo começou com uma casa de campo centenária em um grande terreno no bairro The Beach, na região leste de Toronto. [Nota: o conteúdo do site não foi arquivado, então não é possível apontar para links]. Geoff Teehan, co-fundador da agência digital Teehan + Lax e agora diretor de design de produto no Facebook, havia comprado a propriedade alguns meses antes. Ele planejava demolir a casa e construir uma nova para acomodar sua esposa, que havia sido diagnosticada com um distúrbio neurológico raro que exigia que ela usasse uma cadeira de rodas. Eles estavam prestes a entrar com pedido de licença de construção quando os vizinhos souberam que a propriedade seria destruída e alegaram que a casa tinha valor histórico e não deveria ser alterada.
Jon Lax, co-fundador da Teehan + Lax, abriu um arquivo sobre o assunto e teve a primeira história em sua caixa de entrada uma semana depois. O OpenFile foi “super responsivo”, disse Lax. “Foi reconfortante saber que alguém estava prestando atenção. Ter um terceiro dizendo ‘isso é importante o suficiente para ser contado’ é muito importante”.
Josh O'Kane, o repórter designado para o arquivo, acabou cobrindo a história de 204 Beech durante a maior parte do verão, culminando em uma história que revelava um problema mais amplo no departamento de patrimônio da cidade. O'Kane obteve uma correspondência interna da equipe da cidade mostrando que o departamento tinha pouco pessoal. Havia um único pesquisador empregado na época que podia revisar as edificações, comprovando o argumento de Teehan de que o departamento de patrimônio estava "extremamente necessitado de uma reforma".
Como a equipe editorial do OpenFile se recusou a abandonar o assunto e continuou a dedicar recursos à investigação, O'Kane escreveu uma matéria local que destacava um problema que transcendia o debate sobre o padrão do Não No Meu Quintal (NIMBY, na sigla em inglês). "Isso me mostrou que não há história pequena demais que te impeça de manter contato com as pessoas, porque você nunca sabe se essa história tem outro tópico sobre o qual você poderia escrever", disse ele.
Lax credita ao design do site e à resposta rápida da editora-chefe, Kathy Vey, sua experiência positiva com o OpenFile. Sem um processo tão simples, Lax duvida que tenha sabido como sugerir uma pauta para um jornalista. Embora ele saiba que outras organizações de notícias incluem formulários de "sugira uma pauta" em seus sites, ele acha que seria difícil encontrá-lo e a mensagem poderia ir parar numa caixa de e-mail que ninguém abre. Mesmo se o repórter tivesse chegado a uma conclusão diferente, Lax disse que ele ainda teria considerado a história um sucesso porque o sistema interno do OpenFile funcionava como ele achava que deveria.
Craig Silverman, o diretor de jornalismo digital que ajudou a lançar o OpenFile, lembra a experiência do 204 Beech como "estimulante". Foi uma das primeiras vezes que o OpenFile viu todo o potencial de seu modelo: as pessoas estavam se aglutinando em uma área geográfica e as pessoas que moravam no bairro queriam saber mais e contribuir para a reportagem. Eles também queriam ver a história se espalhar para fora da comunidade, provando que quanto mais pessoas você envolve na sua produção de jornalismo, maior a sua rede se torna. "Nós sentimos que, se muitas das histórias que fizemos fossem assim, o OpenFile seria uma coisa realmente poderosa", disse Silverman.
Ron Tite, um diretor criativo e agora CEO da agência de publicidade Church + State, foi o leitor por trás de outra história de sucesso em 2012. Na época, Tite morava perto de Liberty Village, um bairro promissor na região oeste de Toronto que estava se tornando bem conhecido por seus bares da moda, cafés e moradores da área criativa. O único problema era um matadouro, onde milhares de porcos eram abatidos todos os dias. O fedor que soprava do prédio em um dia úmido de verão era suficiente para deixar as pessoas nauseadas. Ron se perguntou por que a cidade promoveria o desenvolvimento urbano em um bairro que abrigava algo tão horrível. Então ele abriu um arquivo.
Tite recebeu um telefonema de um repórter da OpenFile e ouviu Mike Layton, vereador de sua região, que reiterou a perspectiva da cidade sobre o matadouro. A partir da história do OpenFile, Tite descobriu que o matadouro era a única oportunidade de emprego no centro para muitas das pessoas que moravam no bairro há décadas - muito antes de ele e seus vizinhos da moda chegarem.
Tite se viu compartilhando a história com sua comunidade e explicando o valor do matadouro sempre que ouvia alguém reclamar do seu cheiro. Mais importante, ele disse, a experiência “tirou a venda que cobria meus olhos” e deu a ele um apreço maior pelo lugar onde ele morava. "Eu não sabia nada sobre a grande população imigrante que vivia na área e trabalhava (no matadouro)", disse Tite. "Havia toda essa parte da comunidade que eu estava disposto a descartar por causa de um cheiro."
Outras histórias notáveis do OpenFile
Forever21 chega a Ottawa: Um leitor em Ottawa perguntou por que uma loja em um shopping de Ottawa estava fechada há tanto tempo. Um repórter do OpenFile ligou para o gerente geral do shopping que lhe disse que se tornaria uma loja da Forever21. A OpenFile quebrou a história antes que a Forever21 tivesse a chance de fazer seu anúncio, tornando-se uma das histórias mais populares da agência.
BikeFile: A cidade de Toronto divulgou estatísticas sobre mortes de ciclistas na cidade, e a OpenFile decidiu retratar o problema nacionalmente usando um mapa interativo. Algumas cidades não divulgavam seus dados. Então, o OpenFile pediu aos leitores que preenchessem as lacunas em suas comunidades.
Flor desaparecida: OpenFile colocou flores em um mapa de Toronto para mostrar onde os soldados viviam antes de lutarem e morrerem na Primeira Guerra Mundial. Uma leitora escreveu para dizer que seu tio estava desaparecido do mapa, levando a OpenFile a publicar uma história sobre soldado cuja vida quase foi apagada dos registros públicos.
Problemas no encanamento
A J-Source reconheceu Dinnick como o Jornalista Canadense do Ano em janeiro de 2012 por “engajar cidadãos com jornalismo local de serviço público em um ambiente independente, sem o apoio ou a rede de segurança de quem trabalha dentro de uma organização de notícias estabelecida”.
Mas enquanto a OpenFile celebrava seus sucessos jornalísticos, a empresa ainda estava tentando descobrir como ganhar dinheiro. O OpenFile começou com vários milhões de dólares em investimento de um investidor anjo anônimo. Pelos cálculos de Dinnick, um jornal gastava em média cerca de US$ 1,000 para publicar uma matéria. Ele esperava produzir histórias por um pouco menos e vendê-las de volta aos jornais para obter lucro. Infelizmente, ele não conseguiu decolar rápido o suficiente para manter o OpenFile em execução.
Em setembro de 2012, o OpenFile suspendeu a publicação. Hoje, existe apenas como uma página inicial e uma conta no Twitter congelada no tempo.
Estas são as três principais lições de engajamento que achamos que podem ser colhidas a partir da saída repentina do OpenFile da cena midiática canadense.
Lição # 1: Saiba o que você é
Antes de pedir um pouco do tempo de alguém, seja ele uma fonte, um voluntário ou um colega, descubra exatamente o que você deseja alcançar e construa uma organização que seja poderosamente projetada para que isso aconteça.
Se ele pudesse fazer isso novamente, Dinnick disse que teria passado os primeiros meses focando em como tornar o fluxo de usuários intuitivo - antes de levantar qualquer dinheiro - e então ele teria vendido o produto para outras empresas de mídia. “Seria tudo uma questão de utilidade: colocar o widget OpenFile no maior número possível de sites de notícias e estabelecer o fluxo de usuários para garantir que qualquer pessoa pudesse sugerir uma história”, disse Dinnick. Isso não quer dizer que os editores e jornalistas não estavam fornecendo valor para a empresa e a comunidade, ele disse. Mas produzir histórias afastou o foco da verdadeira intenção do OpenFile, que era melhorar o engajamento da comunidade e colocar essas histórias no mundo da maneira mais eficiente possível.
Lição #2: Engajamento da comunidade é um trabalho full time
Seja realista quanto à quantidade de recursos que o envolvimento da comunidade exige e meça o sucesso com base no que você está tentando alcançar (veja o primeiro tópico). A luta para encontrar um fluxo de receita levou o OpenFile a se concentrar em cliques para atrair investimentos em anúncios. Em algum momento, o OpenFile começou a mudar para algo diferente, disse Neal Ozano, editor de Halifax. Ele queria ser "uma coisa que interessa à comunidade", mas também queria ser competitivo com outros meios de comunicação, disse ele. Isso significava que o conteúdo precisava ser bombeado diariamente, o que não se encaixava na velocidade com que as histórias sugeridas pela comunidade evoluíram. Editores estavam tentando o seu melhor para angariar ideias de histórias da comunidade, mas eles também estavam ocupados atribuindo histórias, editando-as e interagindo com os leitores nas redes sociais.
Eventualmente, ficou evidente que seria impossível criar conexões fortes com apenas um editor em cada cidade, então a OpenFile contratou editores adicionais para cada cidade além de um editor comunitário em Toronto, que era responsável por aumentar o alcance das mídias sociais. Mas mesmo com as novas contratações, o editor fundador Silverman disse que a OpenFile pediu muito de seus editores e escritores.
"Acho que muitas organizações de notícias perceberam que o engajamento da comunidade é um trabalho de tempo integral", disse Silverman. Se você espera que os jornalistas se envolvam com a comunidade, você precisa entender que é preciso esforço e certas habilidades. Os editores precisam descobrir formas de ajudar os jornalistas a fazer esse tipo de trabalho, talvez formando equipes que possam sustentar a quantidade de trabalho necessária, disse ele.
Também é importante para os editores serem realistas em relação à saída, disse Silverman. Se os editores se concentram apenas no número de histórias que um jornalista produz, eles estão ignorando outros indicadores importantes, como a quantidade de envolvimento que uma comunidade tem com o trabalho do jornalista. A infraestrutura necessária para gerenciar e recompensar o engajamento da comunidade corretamente é “a grande coisa” que os editores e gerentes precisam pensar, disse Silverman.
Lição # 3: Conheça seu público onde eles estão
Identifique seu público e vá aos lugares onde eles participam, tanto online quanto pessoalmente. Tenha em mente que isso leva muito tempo (veja o segundo tópico), então seja cuidadoso sobre como você usa seus recursos.
“Nós subestimamos o quão difícil seria atrair novos leitores e novas ideias para a história. Descobri que as mídias sociais e o boca-a-boca não eram suficientes para o que eu estava tentando fazer em Toronto. E eu esperava que fossem”, disse David Topping, editor do OpenFile em Toronto.
Não é necessariamente aquela ideia de que, se você construir, eles virão. "Existe um passo antes que eles encontrem seu veículo, e você pode estar incrivelmente desconectado disso", afirma Topping. Silverman acrescenta: "Não é que as pessoas não queiram ajudar ou não tenham informações úteis suficientes, mas você precisa fazer um esforço para alcançá-las onde elas estão."
Consequentemente, as pessoas que encontravam o site do OpenFile eram apenas um subconjunto do público-alvo que os editores esperavam alcançar: pessoas engajadas, educadas e conhecedoras da mídia que tinham tempo e interesse para sugerir uma história. Isso tornava mais provável que o OpenFile recebesse um certo tipo de ideia de história, transformando-a em um site de questões urbanas, em vez de um site de notícias mais amplo que oferecesse uma plataforma às comunidades carentes.
O sucesso transitório do OpenFile provou que as comunidades têm histórias não contadas que estão ansiosas para compartilhar e que os jornalistas trabalham com eles com sucesso quando recebem recursos para envolver os leitores de uma maneira significativa.
As histórias sugeridas pelo leitor que o OpenFile produzia tinham a capacidade de “promover uma compreensão e um cuidado pelos lugares que as pessoas vivem”, diz Topping. Bem feitas, essas histórias também produziram empatia e engajamento pelo processo jornalístico. Mas, no final, o OpenFile não conseguiu manter o fluxo de histórias sugeridas pelo leitor necessárias para sustentar o site. "Por um tempo (sugestões da história) chegaram, então elas meio que se esgotaram", disse Ozano, editor de Halifax. Tornou-se mais fácil executar o site como um site de notícias regular e empurrar freelancers para encontrar mais histórias.
Quanto aos jornalistas que querem integrar o engajamento da comunidade em seu trabalho, o conselho de Silverman é simples: “Apresente-se com um senso de abertura e humildade e diga: ‘Você sabe mais do que eu. Aqui está o que eu quero tentar. Veja como eu adoraria se você pudesse ajudar. O que você pode fazer?’. Não se trata de criar um formulário e esperar que coisas mágicas aconteçam, mas, na verdade, ter o trabalho de chegar nas pessoas e conhecê-las.
Algumas das pessoas com quem falamos descrevem um buraco no jornalismo, com o formato do OpenFile. Esse buraco nunca foi preenchido. Outros estão mais otimistas de que novas empresas como a Hearken entraram em cena para preencher a lacuna e os jornalistas estão cada vez mais engajados com seu público nas redes sociais e através de eventos ao vivo. Independentemente de seu legado no cenário da mídia, o OpenFile prova que as comunidades têm histórias não contadas, que estão ansiosas para compartilhá-las e que os jornalistas trabalham junto com elas com sucesso quando recebem recursos para se envolver com os leitores de maneira prolongada e sustentável.
Publicado originalmente em inglês no site do GIJN. Traduzido por Breno Costa, do GIJN Português