Clima de insegurança no Vale do Javari
  • 05.01
  • 2023
  • 11:30
  • Sérgio Ramalho

Liberdade de expressão

Clima de insegurança no Vale do Javari

Foto: Dom Phillips e Bruno Pereira. Reprodução: Twitter e Daniel Marenco/Ag. O Globo.

Sete meses após as execuções do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, a sensação de impunidade só fez aumentar o medo entre indígenas e ativistas em Atalaia do Norte (AM). A escalada da insegurança é fruto de ações de invasores envolvidos na exploração predatória no território demarcado. Lideranças da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) estimam que ao menos onze representantes de povos originários sofreram ameaças de morte.

Atalaia do Norte. Pedro Prado/Abraji. 

No fim da madrugada de 3.dez.2022, um incêndio suspeito consumiu a casa do ativista Júlio Juscelino de Souza Mesquita, em Atalaia do Norte. O imóvel foi totalmente destruído pelas chamas e elevou a tensão no município, onde fica localizada parte da Terra Indígena do Vale do Javari, no extremo oeste do estado do Amazonas. 

Confira o vídeo do momento do incêndio:

 

O fogo na casa de Juscelino é o episódio mais recente numa sucessão de conflitos registrados no último semestre naquele município. Há duas hipóteses sob investigação para tentar esclarecer as causas do incêndio. A primeira teria relação direta com a participação da vítima na defesa das causas ambientais e dos povos originários. 

Já a segunda suposição envolve dependentes químicos, que costumavam invadir o terreno do ativista para consumir drogas. O que em certa medida não está totalmente dissociado da ação dos invasores da TI. Um inquérito aberto pela PF, após as mortes de Dom e Bruno, sugere que o narcotráfico está por trás do financiamento das expedições predatórias no território demarcado.

Contudo, o Ministério Público Federal e as polícias Federal e Civil do Amazonas não comentam o caso sob a justificativa de que as investigações tramitam em sigilo. As chamas que destruíram a casa de Juscelino tiveram início pouco antes do amanhecer e foram gravadas por indígenas e ativistas. 

A equipe da Abraji teve seu primeiro contato com Juscelino quando esteve em Atalaia do Norte, cinco dias após a descoberta dos corpos de Dom e Bruno, em 15.jun.2022. O ativista era amigo pessoal do indigenista e ex-coordenador da Funai, Bruno Pereira, que mantinha uma rede de colaboradores voltada à coleta de informações sobre a atuação dos invasores e para a defesa da TI.

Embora o nome do ativista não figure na lista de lideranças ameaçadas na região, um dos diretores da Univaja ouvidos pela Abraji diz acreditar que o incêndio foi uma represália:

“Juscelino e outros colaboradores sempre foram identificados como defensores dos povos originários e do meio ambiente. O que os colocou sob constante pressão dos envolvidos nas invasões à TI, que acusam os ativistas brancos de traição por passarem informações sobre as atividades de caça, pesca e extração de madeira à Univaja e às polícias”, disse o indígena ouvido pela Abraji, que por segurança terá o nome mantido em sigilo.

O indígena ressalta que Juscelino teve a casa incendiada pouco mais de uma semana depois de a Polícia Federal ter detido Romário da Silva Oliveira, primo de Amarildo de Oliveira, o Pelado, assassino confesso de Bruno e Dom. Romário é apontado em depoimentos como um dos participantes do atentado a tiros a um grupo da etnia Kanamari.


Primo de pelado, preso em 25.nov.2022. Crédito: Fonte que não deseja ser identificada.

Denunciado pela Associação dos Kanamari do Vale do Javari, o atentado aconteceu por volta das 9h30 do dia 9.nov.2022, próximo à localidade conhecida como Volta do Bindá, na calha do rio Itacoaí, dentro da TI. Ao menos 30 indígenas da etnia Kanamari, a maioria mulheres e crianças, retornavam em pequenas embarcações de um encontro de lideranças da Univaja, quando avistaram os invasores que estavam em um barco carregado com pirarucus e tracajás. 

Romário liderava o grupo de invasores. Ele carregava uma espingarda e tinha o rosto coberto por uma camisa. Ao se aproximar das embarcações dos Kanamari, o primo de Pelado inicialmente tentou cooptar os indígenas oferecendo tracajás e pirarucus. Diante da recusa da líder do grupo, ele passou a fazer ameaças de morte e chegou a apontar a arma em direção à mulher.

Em seguida, Romário disparou tiros contra algumas das canoas, obrigando os indígenas a buscarem refúgio na margem do Itacoaí. Apesar da tensão, a líder Kanamari denunciou o grupo à Polícia Federal, o que resultou na prisão do suspeito. 

De acordo com os indígenas, Romário teria assumido a função de Amarildo na organização criminosa envolvida nas expedições predatórias na TI. As invasões coordenadas pelo primo de Pelado estariam sendo financiadas por um dos filhos de Ruben Dario Villar Coelho, o Colômbia. O herdeiro de Colômbia teria assumido o comando das atividades ilegais no período em que o pai esteve preso em Tabatinga e Manaus. 

Colômbia, como é conhecido, foi preso na quinta-feira, 7.jul.2022, ao se apresentar à Polícia Federal, em Tabatinga (AM). Acompanhado por um advogado, Villar foi à PF para se defender das suspeitas de financiar as invasões e de ser o mandante das mortes de Dom e Bruno. Ele, entretanto, carregava duas identidades: uma brasileira e outra colombiana. Por isso acabou preso em flagrante por falsidade ideológica.

Citado em dois inquéritos da PF por suspeita de ser um dos mandantes das duas execuções e de comandar a organização criminosa responsável pelas invasões à TI, Colômbia foi colocado em prisão domiciliar pelo juiz Fabiano Verli, da Justiça Federal de Tabatinga, em outubro.

O MPF recorreu, mas em 18.out.2022, o magistrado confirmou a decisão, que previa o pagamento de fiança de R$15 mil, além do uso de tornozeleira eletrônica. Colômbia deveria permanecer em prisão domiciliar em Manaus, mas logo após ter deixado o cárcere, o suspeito foi visto em Benjamin Constant e em Tabatinga, de acordo com moradores locais.

Festa para comemorar a volta de Colômbia

Uma semana após Colômbia ser encaminhado à prisão domiciliar em Manaus, o Programa Tim Lopes, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), recebeu informações de que o suspeito teria retornado à tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. Villar sequer teria ficado no imóvel informado pela sua defesa, em juízo, como seu endereço em Manaus.

Colômbia teria ido direto para Benjamin Constant, no lado brasileiro do Rio Javari. É numa península chamada Islândia, no lado peruano do rio, que fica a sua base de atividades ilegais. Há relatos de que Colômbia foi recebido com uma grande festa, com direito a churrasco, bebidas e DJ. 

Assim como os traficantes das facções criminosas em atividade no Rio de Janeiro, o bando chefiado por Colômbia usa as festas para lucrar com a venda de drogas, bebidas e cooptar os jovens da região, carente de atividades culturais.

As denúncias sobre a fuga de Colômbia levaram o Programa Tim Lopes a retornar a Manaus no fim de novembro, com o objetivo de coletar mais informações, entrevistar policiais federais, procuradores da República e o próprio Colômbia. Por decisão do juiz Fabiano Verli, o suspeito deveria permanecer recluso, com tornozeleira eletrônica, em um imóvel em Manaus.

Na quarta-feira, 30.nov.2022, a assessoria de imprensa do MPF informou por e-mail que não seria possível agendar entrevistas com os representantes do órgão envolvidos nas investigações. Resposta semelhante à empregada pela PF. A alegação para o silêncio foi de que os inquéritos estão sob sigilo.

No mesmo dia a reportagem entrou em contato com o advogado Eduardo Souza Rodrigues, que atua na defesa de Colômbia. Logo na primeira investida, por celular, Rodrigues desligou o telefone, sem dar resposta. O advogado também não respondeu às mensagens enviadas pelo aplicativo WhatsApp.

No texto, foi solicitada uma entrevista com Villar em Manaus. O advogado também ignorou a mensagem. A reação de Rodrigues só fez aumentar as suspeitas de que Colômbia teria escapado assim que pagou fiança. A reportagem voltou a entrar em contato com o MPF e a PF, às 10h22 de segunda-feira, 5.dez.2022. Desta vez ressaltando nas mensagens a informação de que o suspeito havia sido visto em Benjamin Constant, a 1.118 quilômetros da capital do Amazonas. 

Em resposta, a assessoria de imprensa do MPF informou apenas que o caso estava sob investigação. No dia seguinte, um oficial de Justiça foi designado pela Justiça Federal a intimar Ruben Villar no endereço de Manaus informado pelo advogado do suspeito.

O oficial de Justiça, porém, não encontrou sinal de Colômbia no imóvel. Uma moradora, que se apresentou como proprietária, negou que ele tenha morado na casa, o que foi detalhado em relatório pelo servidor. Diante da resposta, o juiz Fabiano Verli decretou novamente a prisão de Colômbia, que foi pego na terça-feira, 20.dez.2022. Desta vez, para evitar nova fuga, a PF vai solicitar que ele seja transferido para um presídio federal de segurança máxima.

Colômbia - preso em Tabatinga - Divulgação.

Tanto o MPF quanto a PF não deram detalhes sobre a prisão de Colômbia, tampouco informaram se uma nova investigação foi instaurada para apurar falhas na concessão da prisão domiciliar. Ruben Villar além de não ter permanecido em Manaus, como determinava a medida judicial, também não se apresentou para colocar a tornozeleira eletrônica.

Bruno e Dom foram assassinados em 5.jun.2022. O principal suspeito do duplo homicídio, Amarildo Oliveira, o Pelado, foi transferido em novembro para uma prisão federal de segurança máxima em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Outros dois suspeitos do crime foram denunciados em julho pelo Ministério Público Federal: Oseney da Costa de Oliveira, o Dos Santos, e Jefferson da Silva Lima, o Pelado da Dinha. Além do duplo homicídio, Dos Santos e Pelado da Dinha foram denunciados por ocultação de cadáver.


A casa de um tio de Pelado, que fica à beira do rio por onde Bruno e Dom passaram e foram atacados. Pedro Prado/ Abraji.

Em 5.set.2022, a Abraji revelou que dois dos indiciados pela PF por participação nas execuções do jornalista inglês e do indigenista trabalhavam na prefeitura de Atalaia do Norte. Jânio Freitas de Souza e Otávio da Costa Oliveira foram contratados na gestão do prefeito Dênis Linder Rojas de Paiva (União Brasil). Otávio também é irmão de Amarildo.

Jânio de Souza e Otávio Oliveira ocupam as funções de auxiliar de serviços gerais e microscopista, respectivamente, nas secretarias de Interior e de Saúde. De acordo com a folha de pagamento de julho passado, ambos receberam salários de R$ 1.212,00 e R$ 1.750,00. Embora tenham sido presos pela Polícia Federal no dia 5.ago.2022, a prefeitura não informou se os suspeitos foram exonerados.

Libertação de suspeitos foi criticada pela Univaja

Colômbia não foi o único preso pela PF por suspeita de envolvimento nas mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips a receber o benefício de aguardar o julgamento em prisão domiciliar. Na terça-feira, 6.dez.2022, o juiz Fabiano Verli concedeu liberdade provisória a Laurimar Lopes Alves. Casado com uma das irmãs de Amarildo, o assassino confesso, Caboclo, como Laurimar é conhecido nas comunidades ribeirinhas de São Gabriel e São Rafael, teria participado da ocultação dos corpos de Bruno e Dom.

De acordo com as investigações, Caboclo teria ajudado a transportar os corpos esquartejados para o lado oposto do rio Itacoaí. Os despojos de Dom e Bruno foram arrastados por mais de um quilômetro mata adentro e enterrados numa área considerada o quintal da casa de Oseney da Costa Oliveira, o Dos Santos, irmão de Amarildo. 


Os serrotes, facão e motosserra supostamente usados no crime. Pedro Prado/ Abraji. 

Laurimar, segundo a medida judicial, teve que pagar fiança de R$ 2 mil. O suspeito deve comparecer, mensalmente, à Justiça de Tabatinga, ficando em prisão domiciliar, com exceção de quatro horas diárias de trabalho. A Justiça não informou a atividade exercida por Caboclo e tampouco onde ele trabalha.

A iniciativa do juiz Verli de conceder prisão domiciliar aos dois suspeitos foi criticada em nota pela Univaja. O documento foi divulgado em 8.dez.2022. No texto, os indígenas ressaltam o “imenso repúdio e indignação” com as decisões do Judiciário amazonense:

“Esse fato corrobora o que nós, há muito tempo, estamos denunciando sobre o descaso das autoridades brasileiras competentes em solucionar o caso e, o que é mais preocupante, de não estarem tomando nenhuma providência hábil e emergencial para conter a atuação do crime organizado dentro e nas adjacências da TI Vale do Javari. Além disso, precisamos de ações efetivas para garantir que nada disso aconteça a nós (lideranças indígenas) e aos nossos parentes. Nossos parentes, lideranças e os servidores da Funai continuam sendo ameaçados, além de viver em um clima de insegurança e de tensão. A morosidade dos órgãos responsáveis para solucionar é alta! Nos parece que as investigações estão sendo feitas de forma paliativa ou que estão simplesmente paradas”.

Um indigenista que conversou com a Abraji, na condição de anonimato, informou que a Univaja vem recebendo denúncias sobre o envolvimento de Colômbia com o que ele chama de “máfia de pesca e caça que vem acontecendo há muito tempo”. Em entrevista à Abraji, ele falou ainda da expectativa de um julgamento e uma punição exemplar, para evitar o sentimento de impunidade e insegurança na região. “As mortes deles aconteceram de uma forma cruel, com ocultação de cadáveres, esquartejamento. São crimes gravíssimos. E nós não queremos continuar reféns dessa gente. Aquilo foi um aviso de que o próximo pode ser pior. Essa é a mensagem deles. A morte do Bruno foi um exemplo para que as outras pessoas não continuem fazendo o seu trabalho porque o fim pode ser igual ou pior”, afirma o indígena.

O assassinato do jornalista britânico Dom Philips foi o quinto caso incluído no Programa Tim Lopes, iniciativa da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Dom Phillips acompanhava o indigenista Bruno Pereira em uma expedição pelo Vale do Javari. O correspondente, colaborador de longa data do jornal The Guardian, estava escrevendo um livro sobre como salvar a Amazônia, no qual fazia referência a violações de direitos humanos na região.
 

Assinatura Abraji